terça-feira, 27 de dezembro de 2011

CASABLANCA

A gente esquece, tem vez, que há obras que se perpetuam, apesar já irem distante a data de nascimento. Ontem vi “Casablanca”, de Michael Curtiz, estrelado por Humphrey Bogart e Ingrid Bergman. Diálogos irretocáveis dos irmãos Epstein (Julius e Philip) e Howard Koch. Fantástico (de verdade!) como um filme de 1942 possa nos comover tanto, trabalhando com destreza o não-dito, o subentendido, com tamanha delicadeza. Nestes tempos de agora em que a pieguice e as mensagens (mais que) explícitas tomam conta de tudo, é mais que merecido um descanso, passagem rápida pelo Rick’s Bar para ouvir o Sam cantar AS TIME GOES BY.

quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

Año Nuevo



A las doce de la noche, por las puertas de la gloria
y al fulgor de perla y oro de una luz extraterrestre,
sale en hombros de cuatro ángeles, y en su silla gestatoria,
San Silvestre.

Más hermoso que un rey mago, lleva puesta la tiara,
de que son bellos diamantes Sirio, Arturo y Orión;
y el anillo de su diestra hecho cual si fuese para
Salomón.

Sus pies cubren los joyeles de la Osa adamantina,
y su capa raras piedras de una ilustre Visapur;
y colgada sobre el pecho resplandece la divina
Cruz del Sur.

Va el pontífice hacia Oriente; ¿va a encontrar el áureo barco
donde al brillo de la aurora viene en triunfo el rey Enero?
Ya la aljaba de Diciembre se fue toda por el arco
del Arquero.

A la orilla del abismo misterioso de lo Eterno
el inmenso Sagitario no se cansa de flechar;
le sustenta el frío Polo, lo corona el blanco Invierno
y le cubre los riñones el vellón azul del mar.

Cada flecha que dispara, cada flecha es una hora;
doce aljabas cada año para él trae el rey Enero;
en la sombra se destaca la figura vencedora
del Arquero.

Al redor de la figura del gigante se oye el vuelo
misterioso y fugitivo de las almas que se van,
y el ruido con que pasa por la bóveda del cielo
con sus alas membranosas el murciélago Satán.

San Silvestre, bajo el palio de un zodíaco de virtudes,
del celeste Vaticano se detiene en los umbrales
mientras himnos y motetes canta un coro de laúdes
inmortales.

Reza el santo y pontifica y al mirar que viene el barco
donde en triunfo llega Enero,
ante Dios bendice al mundo y su brazo abarca el arco
y el Arquero

Rubén Darío

quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

Diálogos

A gente vive, se alegra, se entristece, torce, peleja, descansa pouco, pensa muito, tenta produzir (às vezes coisas boas, às vezes deploráveis), briga, ama, odeia, escreve, se encontra, troca palavras, tapas, beijos, telefonemas, lembra, esquece, esmorece, cai, pragueja, bendiz, torna a se levantar, diz que é pra nunca mais outra vez, faz tudo novamente, erra, acerta, se apequena, se engrandece, amadurece, apodrece até tem vez, lapida, joga fora, festeja, chora, se enfurece, reivindica, quer o melhor, quer o pior, se engaja, se engana, se ilude, acorda, sonha, proseia, poetiza, vai com os amigos, aos trancos e barrancos, vai só, espera, desespera, destrambelha, gera coisas, fatos, objetos, espetáculos, filmes, amores, participa, desestabiliza, diz adeus, promete mudanças, nuanças, novidades, é corajoso, dependendo do dia, do monstro, arrisca, foge, teme, se esconde, tem fé, desejos, cicatrizes, deseja, vive, sofre, ama (ou não) e morre (com certeza).

Eu, particularmente, neste 2011 que agoniza, procurei o mais que pude dialogar com os meus, os que compõem hoje comigo a paisagem do mundo. Eu, que não tenho telefone celular (que me recuso a possuir um desses infernais aparelhinhos), estou com dois blogs (http://www.danthesco.blogspot.com e http://cantoscasasruasequintais.blogspot.com) à espera de que vocês, meus diletos amigos, meus inimigos ocultos, ou declarados divergentes, me escrevam mais, opinem, troquem comigo idéias, falas, observações, críticas.

Teatro, Cinema, Literatura, Música... são mundos também a que pertenço. Quem possa se interessar, me chame, conclame, invoque, pragueje. Eu gosto de conversar.

Às vezes esses troços todos de redes sociais (Facebook, Twitter, Orkut, Gazzag, Hi5, My Space, Skoob, Wallop, etc) me parecem espaços destinados a tanto lixo, que chego a desanimar. Por isso, hoje, pensei que podia contar com vocês, pedir a atenção, o entendimento, para a gente conversar mais, dialogar mais, ficar mais juntos na construção de um diálogo neste nascente 2012. Quem puder, comece ai pelos blogs acima citados, participem. Será um prazer imenso ficar junto a vocês, vez em quando, um tantinho que seja.

quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

II

Sim. Multidões. Sabemos. Uma face para cada situação, um sorriso para cada esquina, uma opinião para cada episódio, um pensamento para cada hora do dia.., tudo mutável, adaptável, flexível, encaixado, combinado, justaposto! Mas nada autêntico, verdadeiro, inteiro, genuíno. Não mais.

Como quem antigamente vendia bugigangas nos portões das casas, de rua em rua, aquele velho homem do carnê, que oferecia panelas, travesseiros, tesouras, livros, bonecos, conforme a necessidade das freguesas, cavamos, esculpimos, erigimos, para cada obstáculo, barreira, fosso, fossa, embaraço, impedimento, uma saída pela direita, pela esquerda, para baixo, para o alto, de viés, à francesa, como for. Importante é se sair bem na coluna, no registro, na fotografia, ser genial... ou melhor, parecer.

No fim, somado tudo e passada a régua, o que sobra é uma indagação sem respostas: Quantas máscaras conseguimos esconder, meu bem, por debaixo da maquilagem? Quantas por sob a pele do rosto? Quantas vezes hoje na vida se consegue ser sincero, verdadeiramente sincero e não só em partes, pela metade, a prazo, e dizer a que se veio, o que se sente, como se vê, o que se quer?

Quando conheci você, há muitos anos, era ainda uma criança miúda, quase de colo ainda e, pelo que lembro - malgrado a minha memória parca, porca, sofrida, em rota de virar branca página -, havia luz na sua fronte. Curiosa, inquieta, cheia de viço, sem vícios, tinha ímpetos de ir além das curvas da estrada, pedia com olhar de anjo para irmos ver o que estava para além e, quando a noite caia, já tínhamos andado léguas, numa estrada de silêncio e pó.

Dava gosto ir vê-la. Dava alegria encontrá-la com direito a braços abertos e sorrisos largos. Aonde foram parar os seus festivos desejos de bem-vindo? Em que parte exata da estrada você deixou de ser você?

sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

Vagalume

Isso fazia parte da inteireza de meus sonhos.
Guardava a sete chaves,
Como quem escondia tesouros no quintal,
Um segredo sagrado nas arcas do sótão.

Mesmo com toda injustiça posta,
Com toda peleja que é levar avante a vidinha bosta,
Com as cores em decaídas de semitons
Com sofridos partos de cada dia,
Se pudesse ser seria
Poeta, daqueles, bons.

Ah! Quem me dera o dom de
Fazer passar por palavras
As imagens comoventes
Mãe com um pote d’água na cabeça
Lençol balançando em poentes
Varais de roupas lavadas
Deságuas do riachinho
E um menininho, eu,
À sombra de uma mangueira
Esperando a enxaguada hora
Pra daí voltar para casa,
Com cheiro de café preto de pilão
Em fim de tarde chuviscosa
Pouco antes da gente ingressar
Na noite dos candeeiros.

Se um dia eu fosse poeta
Pintaria em aquarelas
Esse sons de vagalumes
Com a vovó costurando
Os pedaços de mim sobrados
Em lençóis de retalhos.

quinta-feira, 1 de dezembro de 2011


"Aqueles que passam por nós, não vão sós, não nos deixam sós. Deixam um pouco de si, levam um pouco de nós".
 Antoine de Saint-Exupéry


quarta-feira, 30 de novembro de 2011

Pissoa

Não sei se tem voz, vez em quando, em vocês, meus amigos, um desespero de não saber ao certo aonde ir, o que de si fazer e se sentir, meio assim, alquebrado e só. Dá dó um sujeito amofinado, trancafiado no quarto escuro de sua própria existência. Calculo o pulo, meço o medo, o tamanho do abismo, me esquivo, não vou, não logo, um pouco depois. Mas há ocasiões em que ir um pouco depois já é ir tarde demais. Quem segurará a minha mão, se acaso eu escapulir do penhasco, ribanceira embaixo? Quem vai abrir meu pára-quedas no antes do baque? Quem sonhará que me viu ir, anjo solto e sem asas? Quem falará de nossos cheiros, beijos, e afeições? Quem escreverá poemas e comporá canções com o nosso rosto e gosto pela vida, mesmo ferida, mesmo tristinha, mesmo festinha, mesmo daninha, danada, sernonada? Ah!, Pessoa, Pessoinha, quem lembrará de nós depois que morrermos?

sexta-feira, 25 de novembro de 2011

Marina e Alberto




Principiou ontem, na unidade do Cais de Santa Rita, em Recife, a II Mostra SESC de Literatura Contemporânea. Tão bom, meu Deus!, encontrar a Colasanti, sábia sem amarguras, lúcida no seu olhar sobre a vida, o mundo, o tempo, a função do escritor, a efemeridade e a permanência das coisas e dos seres.
Tão bom sentir as marcas indeléveis que as palavras vão esculpindo na alma da gente, quando num susto alguém aparece voluntariosamente e recita um poema amado, composto por um poeta igualmente amado, mas já encantado dos calendários. Tão bom quando esse recitador, orador, bardo, põe alma no seu dizer e nos emociona, arrepios aos borbotões. Como nos presenteou ontem a viúva do Alberto da Cunha Melo.
A vida é ávida... mesmo!

O Presente

O que hoje recebes
e não podes pegar, guardar
em panos e papéis laminados,
é imperecível,
presente onipresente.
Estás com ele na chuva
e não temes que se desfaça.
Estás com ele na multidão
e não o escondes dos mutilados.
O que não existe para os homens
deles estará protegido,
o que os homens não vêem
não poderão espedaçar.
Eis o que não te denuncia
porque não tem face
nem volume para ser jogado no mar.
Eis o que é jovem a cada lembrança
porque não tem data
e série, para envelhecer.
O que hoje recebes
não pode ser devolvido.

Alberto da Cunha Melo

terça-feira, 22 de novembro de 2011

Eu e Tu




Tu crês?
Não em Deus, pergunto, por causa que Deus é outra história,
Não cabe Ele aqui, existindo ou não, vivo ou morto,
Em poucas linhas mal traçadas minhas.
Pergunto se acreditas no diálogo sincero e aberto com o mundo...
É possível ainda?
Eu creio.
Nem sempre por meio de palavras, o mundo também proseia comigo, tem vez.
Ontem estava relendo o Buber.
E deu de novo aquela dita incontida vontade de voltar a escrever.
Mas os meus escritos, postos na internet, precisam de pessoas que os leiam,
Que os comentem,
Que interajam, que dialoguem com ele.
Eu falo, nomeio, escrevo, digo, versejo, quando posso.
Sempre à espera de que alguém venha,
De onde vier,
Confabular, bulir comigo.
Se este punhado de SOS
Alcançar-te, faz fé de me dizer
Qualquer coisa,
Qualquer palavra serve
Para a gente sentir que não está tão só.

http://www.danthesco.blogspot.com/

quarta-feira, 9 de novembro de 2011

Recuerdo Infantil

Una tarde parda y fría de invierno.
Los colegiales estudian.
Monotonía de lluvia tras los cristales Es la clase.
En un cartel se representa a Caín fugitivo, y muerto
Abel, junto a una mancha carmín.
Con timbre sonoro y hueco truena el maestro,
un anciano mal vestido, enjuto y seco, que lleva un libro en la mano.
Y todo un coro infantil va cantando la lecciòn: mil veces ciento, cien mil;
mil veces mil, un millòn.
Una tarde parda y fría de invierno. Los colegiales estudian. Monotonía de la lluvia en los cristales.
(Antônio Machado in "Cantares")

Veneza

Oh! Veneza suja
Desse meu país!
Escuta, Meretriz,
Este filho teu,
Que saiu de casa
Pra viver bem longe
E mesmo tão distante
Nunca te esqueceu

Como tens passado
Tuas noites quentes?
E o teu verão sem fim
Não te abrasou?
O mar que te arrebenta,
Como tu suportas?
E o lixo que te adorna,
Quem te enfeitou?

Nas águas do teu rio
Ainda existe vida?
Nas pontes que costuram
Os pedaços teus,
Nas ruas e avenidas
Cantarão os blocos,
Delirando sobre a terra
Onde se verteu

O sangue de teus filhos
Que tombaram cedo
Sem medo de lutar
Por belos ideais
Mas viraram temas
De canções antigas
Troças dos destroços
De outros carnavais

Eu compus poemas
Com de grande tristeza
Como um cristão lastima
Ter matado Deus
Mas no mais secreto
De seu coração
Desconfia em silêncio
De que não morreu...

... meu amor por ti Oh!
Veneza suja desse meu país Oh!
Veneza suja desse meu país Escuta,
Meretriz, Este filho teu
Que mesmo tão distante
Nunca te esqueceu

quarta-feira, 26 de outubro de 2011

Como meninos nos quintais à noite
Pouco antes de dormir
Nos sentamos uma vez para escutar as histórias tuas
Dos teus tempos de criança, vó
E sonhar com o que não vimos,
Com as tuas lembranças, tuas reinações, peraltices e
Sonhamos ser protagonistas do teu filme em preto e branco.
Assim, sem nos darmos conta,
Vemos-te virar uma personagem
Que nossos filhos sonharão
Sem nunca terem te visto e escutado.
E é assim que nós também nos transformaremos em
Personagens, como tu, imortais
Na alma de outros,
Nossos parentes desconhecidos
Porque ainda distantes no futuro.

segunda-feira, 8 de agosto de 2011

O nome das coisas


Outro dia fui comprar um abajur. A mocinha me olhou e perguntou:
- Luminária?
Eu olhei em volta, tinha uma porção de abajur.
- Não, abajur mesmo, eu disse.
- De teto?
Fiquei olhando meio pasmo para a vendedora, para o teto, para a rua. Ou eu estava muito velho ou ela estava muito nova.
-No meu tempo - e isso faz pouco tempo - o abajur a gente punha no criado-mudo, na mesinha da sala.
E lá em cima era lustre.
- Lustre?
Descobri que agora é tudo luminária.
Passou por spot, virou luminária.
Pra mim isso é pior que bandeirinha virar auxiliar de arbitragem, e passe (no futebol) chamar-se agora assistência.
Quem são os idiotas que ficam o dia inteiro pensando nessas coisas?
Mudar o nome das coisas?
Por que eles não mudam o próprio nome?
A mocinha-da-luminária, por exemplo, se chamava Mariclaire.
Desconfio até que já tivesse mudado de nome.
Pra que mudar o nome das coisas?
Eu moro numa rua que se chama Rodovia Tertuliano de Brito Xavier. Sabem como se chamava antes?
Caminho do Rei.
Pode? Pode!
Coisa de vereador com minhoca na cabeça e tio para homenagear.
Mas lustres e abajur, gente, é demais.
Programação de televisão virou grade.
Deve ser para prender o espectador mais desavisado.
Entrega em domicílio virou delivery.
Agenda de correio, mailing.
São os publicitários, os agentes de 'marquetingui'?
Quer coisa mais bonita do que criado-mudo?
Existe nome melhor para aquilo?
Pois agora as lojas vendem mesa-de-apoio.
Considerando-se a estratégica posição ao lado da cama, posso até imaginar para que tipo de apoio serve.
Antigamente virava-se santo, agora vira-se beato, como se já não bastassem todas as carolas beatas que temos por aí.
Mudar o nome de deputado para putado ninguém tem coragem, né?
Nem de senador para sonhador. Sonhadores da República, não soa bem?
E uma bancada de putados?
A turma dos dez por cento agora se chama lobista! E a palavra não vem de lobo, mas parece.
E por que é que agora as aeromoças não querem mais ser chamadas assim?
Agora são comissárias. Não entendo: a palavra comissária vem de comissão,não é? Aeromoça é tão bom e terno como criado-mudo.
Pior se as aeromoças virassem moças-de-apoio, taí uma idéia.
E tem umas palavras que surgem de repente do nada.
Luau - Isso é novo. Quando eu era jovem, se alguém falasse essa palavra ou fosse participar de um luau, era olhado meio de lado. Era pior que tomar vinho rosê. Coisa de bicha, isso de luau.
Mas a vantagem de ser um pouco mais velho é saber que o computador que hoje todo mundo tem em casa e que na intimidade é chamado de micro, nasceu com o nome de cérebro-eletrônico. Sabia dessa?
E sabia que o primeiro computador, perdão cérebro-eletrônico, pesava 14 toneladas?
E que, na inauguração do primeiro, os gênios da época diziam que, até o final do século, se poderia fazer computadores de apenas uma tonelada?
Outra palavrinha nova é stress.
Pode ter certeza, minha jovem, que, antes de inventarem a palavra, quase ninguém tinha stress.
Mais ou menos como a TPM. Se a palavra está aí a gente tem de sofrer com ela, não é mesmo?
No meu tempo o máximo que a gente ficava era de saco cheio.
Estressada, só a turma do Luau.
E agora me diga: por que é que em algumas casas existe jardim de inverno e não jardim de verão?
E se você quiser mudar o nome desta crônica para lingüiça, pode.
Desde que coloque o devido trema.
Também conhecido como dois pinguinhos.
(Mario Prata)

segunda-feira, 1 de agosto de 2011

Sherlooock


Tão bom descobrir o mundo! Saber das coisas, abrir os olhos às descobertas!
Estava lembrando a pouco de que Januário, uns três ou quatro anos atrás, já perto do horário do restaurante do Tavares Correia fechar, sentar-se comigo à mesa e comentarmos sobre isso de descobrir as coisas novas. Eu me referia à possibilidade de novas paixões, ao fogo de se meter na vida de alguém novamente, da euforia que isso trás. Ele falou de seu pequeno Anjinho, de sete anos de idade, que uma semana antes, em Recife, havia, com um sorriso matreiro, como quem pega a gente com as calças na mão, encurralado o pai:
- Aaaah! Pensa que eu não sei, né?!
- Heim?
- Você pensa que eu não sei de nada!
- Não sabe o quê, filho?
- Que você já namorou a mamãe!
A criança havia visto os dois, pai e mãe, num álbum de fotografias, quando eram ainda namorados. Quando a criança nasceu, pouco menos de um mês, os pais se separaram. E agora, sete anos depois, o anjinho investigador tinha finalmente descoberto a prova cabal de um tempo havido antes dele vir ao mundo para bisbilhotar os álbuns.

Palavra por palavra

Palavra por palavra
Eu desfio esta canção
Em contas de miçangas
Em milongas e orações
E abro então meu peito
Pra deixar o coração
Falar de coisas tristes
Num acorde de violão

Não quero escarnecer
Do amor que a gente teve um dia
Mas amor é planta fina
Descuidada, atrofia
E assim se foi minguante
A lua cheia de alegria
Esfriando pouco a pouco
Quando vimos, já morria

Palavra por palavra
Já não sei como dizer
Desculpe qualquer coisa
Não queria lhe ofender
Durante tanto tempo
Você foi meu bem-querer
Agora não é nada
Só canção de maldizer.

segunda-feira, 4 de julho de 2011

Filipluma

Tudo o que é sólido

Desmancha no ar
O que era firme desapareceu
Apenas o fugaz permanece e dura
O que era eterno a pouco se perdeu

Se perdeu na encruzilhada
Na promessa na estrada na esquina
Na escuridão da noite calada
Desespero Deus Jogatina
Solidão a dois e emboscada

O anel que era de vidro quebrou
O amor que era pra sempre morreu
O anjo lá do bosque mudou
Depois que ele se foi feneceu
Brilho ladrilhante da rua
Em que eu quis morar com você

Vida breve
O amor maior do mundo
Leve bruma
Por mais que seja amor profundo
Filipluma
Não durará mais que um segundo

(mesmo que dure a vida a inteira)



quarta-feira, 22 de junho de 2011

Tempo Pedido

Quase uma ode em razão de um tempo perdido ganho em tempo grande de um grande amor.
Ou
O tigre que atravessou a ponte esqueceu o cordeiro e a ponte caiu. O tigre foi-se. O cordeiro permanece. O amor é estranho.

Quase cicratiza a ferida ferida empapada de açúcar mas, o tempo não quis!
Além desse doce interno que come e fatalmente não matará
Pois, fatalmente já é mortal
Cambaleia a cabeça que o corpo insepara.

Ratos Roem a Rolha do Remédio Ruim do Rei de Roma
e Falcão jogou muita bola.
O remédio ruim seria veneno
A rolha roída apenas migalhas.

O rato roeu a rolha e morreu
O rei bebeu o remédio ruim e curou-se
Nem o rei estava doente
Tampouco o rato era suicida.

Mas ratos e reis se parecem
Como se parecem os amantes com ratos e reis.

A vida perdeu a graça
Quando a graça perdeu graça.

Rói rato que quando rói
Rói o de fora e o de dentro
Rói rato que roer completo
É roer quase o pensamento.

Bebe rei o ruim remédio
Dantes fora e depois por dentro
Embeba-se remédio do interno rei
Como se o avesso fosse o centro.

Ah! Circunflexos voadores!
Que destapam letras.
Órfã ortografia que errar é humano
Voa, voa, em sua rigidez.

Quando chove uso chapeuzinho
Cubro letras com guarda-chuvas.

Almir Rodrigues
1998/2010

terça-feira, 21 de junho de 2011

Transição perene

Ai!
Percebendo que tudo sabia
o engodo da vida refloresce vívido.
Cada ato parece ocultar,
parece poder ocultar,
outrem,
de vários, de muitos
e não se esquece em você.

Seu outro, no travesseiro vizinho,
são seus olhos.

Percrustam,
os acúmulos estapafúrdios,
gordurosos
no corpo já balofo
- não redondo e circular.

E...

Desassossego do arfar, o peso,
o cansaço, a não vontade,
desmonta,
põe a um canto,
traz a sofreguidão.

Não são seus olhos,
seu outro, no travesseiro vizinho.

E...

Constante é a vigília
alerta em você
imberbe e dissimuladora.
Finge não existir o original,
que é, sempre foi,
lado a lado,
o eterno morto,
o não vivente,
só o desconhecimento,
de si em si.

Respira e se eleva,
a compreensão se ocupa!

Toda a divisão
no corpo único
vaza seus complementos.

Seu outro, no travesseiro vizinho,
não são seus olhos.

Agora, a distinta hora,
não mais trará o frescor,
pelo menos consigo.

O que nunca se reconheceu
sabendo estar vivo e
não vivente,
foi vencido pelo seu ir.

Seu outro deitado ao lado
olha-te com olhos
que nem dele são
nem olhos seus serão.

Não há mais tempo!
A brevidade eterna da vida
cumpriu-se. (em você).

Ninguém saberá que faltou o reconhecimento.

Ninguém saberá
amiúde
do reconhecimento.

Dei por 27/12/2009

Almir Rodrigues

quinta-feira, 2 de junho de 2011

I

O nome não lhe direi. Não agora. Isso mataria de pronto o possível interesse que você venha a ter na minha narrativa e a história aqui é o que de verdade importa. Eu preciso de você atento para me acompanhar, preciso espantar o seu sono, tirá-lo da inércia, da solidão de seu umbigo, preciso lhe estapear um pouco no rosto, socar o seu estômago se for necessário, para que você acorde e me siga, como um cego segue atado a um cão-guia, que não é o seu, e que portanto não obedece a nenhum de seus comandos, pelas beiras dos abismos, por estradas lodacentas, cheias de perigos e expectativas, no meio da noite, na mata escura e virgem; vou levar você comigo por viagens de trem através da Europa, ou sob o sol dos trópicos, a cavalo, à pé, de bicicleta, empenhados, nós dois, na caça de um ser, sem o qual nada valeria à pena ser sofrido; e isso tudo para aprisioná-la um tempo me depois libertá-la e torná-la mais consciente dos riscos do caminho; ou melhor, tudo apenas para que, ao cabo, depois dos grilhões, ela possa vir a saber mais.
Estes labirintos de palavras, estas frases e linhas, uma a uma mal traçadas neste caderno sujo e bolorento, vão trazer você comigo. Essa é a minha esperança, o meu desejo. Sozinho não faço nada. Sem você a minha derrota é líquida e certa.
Talvez essa história, os lugares por onde andei, as pessoas que conheci, as mulheres por quem fui amado, os homens que vi na iminência da morte, possam surtir um efeito mais cativante em seus pensamentos, possam lhe enredar na minha trama. Por isso, se dissesse logo no principio por qual nome você me conhece, que graça teria o restante da história? Isso seria pôr o fim logo no princípio, pois que já estaria assim desvendado o enigma, já dadas as chaves. E é necessário, mantê-lo comigo o máximo de tempo possível antes que chegue a derradeira página, a ultima palavra, o ponto final. É mister alguns mistérios para que valha a pena o trajeto que iremos percorrer.
E, para arrematar tudo de uma vez por todas, que é afinal um nome?
Antes do nome, o homem. Antes do escritor, a pessoa. E uma pessoa é mais que um nome. Ou não é? Acho que sim. Pois se uma pessoa não passasse de um reles nome eu seria várias pessoas numa só e a um só tempo. Sozinho eu seria muitos.
E pensando bem, talvez sejamos mesmo, você e eu, multidões.

quarta-feira, 1 de junho de 2011

O HOMEM SEM QUALIDADES

"A criança é criativa porque é crescimento e se cria a si própria. É como um rei, porque impõe ao mundo as suas ideias, os seus sentimentos e as suas fantasias. Ignora o mundo do acaso, pré-elaborado, e constrói o seu próprio mundo de ideais. Tem uma sexualidade própria. Os adultos cometem um pecado bárbaro ao destruir a criatividade da criança pelo roubo do seu mundo, sufocando-a com um saber artificial e morto, e orientando-a no sentido de finalidades que lhe são estranhas. A criança é sem finalidade, cria brincando e crescendo suavemente; se não for perturbada pela violência, não aceita nada que não possa verdadeiramente assimilar; todo o objecto em que toca vive, a criança é cosmos, mundo, vê as últimas coisas, o absoluto, ainda que não saiba dar-lhes expressão: mas mata-se a criança ensinando-a a ater-se a finalidades e agrilhoando-a a uma rotina vulgar a que, hipocritamente, se chama realidade."

Robert Musil, em "O Homem sem Qualidades"

domingo, 29 de maio de 2011

O Amor Acaba


O amor acaba. Numa esquina, por exemplo, num domingo de lua nova, depois de teatro e silêncio; acaba em cafés engordurados, diferentes dos parques de ouro onde começou a pulsar; de repente, ao meio do cigarro que ele atira de raiva contra um automóvel ou que ela esmaga no cinzeiro repleto, polvilhando de cinzas o escarlate das unhas; na acidez da aurora tropical, depois duma noite votada à alegria póstuma, que não veio; e acaba o amor no desenlace das mãos no cinema, como tentáculos saciados, e elas se movimentam no escuro como dois polvos de solidão; como se as mãos soubessem antes que o amor tinha acabado; na insônia dos braços luminosos do relógio; e acaba o amor nas sorveterias diante do colorido iceberg, entre frisos de alumínio e espelhos monótonos; e no olhar do cavaleiro errante que passou pela pensão; às vezes acaba o amor nos braços torturados de Jesus, filho crucificado de todas as mulheres; mecanicamente, no elevador, como se lhe faltasse energia; no andar diferente da irmã dentro de casa o amor pode acabar; na epifania da pretensão ridícula dos bigodes; nas ligas, nas cintas, nos brincos e nas silabadas femininas; quando a alma se habitua às províncias empoeiradas da Ásia, onde o amor pode ser outra coisa, o amor pode acabar; na compulsão da simplicidade simplesmente; no sábado, depois de três goles mornos de gim à beira da piscina; no filho tantas vezes semeado, às vezes vingado por alguns dias, mas que não floresceu, abrindo parágrafos de ódio inexplicável entre o pólen e o gineceu de duas flores; em apartamentos refrigerados, atapetados, aturdidos de delicadezas, onde há mais encanto que desejo; e o amor acaba na poeira que vertem os crepúsculos, caindo imperceptível no beijo de ir e vir; em salas esmaltadas com sangue, suor e desespero; nos roteiros do tédio para o tédio, na barca, no trem, no ônibus, ida e volta de nada para nada; em cavernas de sala e quarto conjugados o amor se eriça e acaba; no inferno o amor não começa; na usura o amor se dissolve; em Brasília o amor pode virar pó; no Rio, frivolidade; em Belo Horizonte, remorso; em São Paulo, dinheiro; uma carta que chegou depois, o amor acaba; uma carta que chegou antes, e o amor acaba; na descontrolada fantasia da libido; às vezes acaba na mesma música que começou, com o mesmo drinque, diante dos mesmos cisnes; e muitas vezes acaba em ouro e diamante, dispersado entre astros; e acaba nas encruzilhadas de Paris, Londres, Nova York; no coração que se dilata e quebra, e o médico sentencia imprestável para o amor; e acaba no longo périplo, tocando em todos os portos, até se desfazer em mares gelados; e acaba depois que se viu a bruma que veste o mundo; na janela que se abre, na janela que se fecha; às vezes não acaba e é simplesmente esquecido como um espelho de bolsa, que continua reverberando sem razão até que alguém, humilde, o carregue consigo; às vezes o amor acaba como se fora melhor nunca ter existido; mas pode acabar com doçura e esperança; uma palavra, muda ou articulada, e acaba o amor; na verdade; o álcool; de manhã, de tarde, de noite; na floração excessiva da primavera; no abuso do verão; na dissonância do outono; no conforto do inverno; em todos os lugares o amor acaba; a qualquer hora o amor acaba; por qualquer motivo o amor acaba; para recomeçar em todos os lugares e a qualquer minuto o amor acaba.

Paulo Mendes Campos

segunda-feira, 23 de maio de 2011

Os Poemas

Os poemas são pássaros que chegam
não se sabe de onde e pousam
no livro que lês.
Quando fechas o livro, eles alçam vôo
como de um alçapão.
Eles não têm pouso
nem porto;
alimentam-se um instante em cada
par de mãos e partem.
E olhas, então, essas tuas mãos vazias,
no maravilhado espanto de saberes
que o alimento deles já estava em ti...

Mario Quintana - Esconderijos do Tempo

Projeto de Prefácio

Sábias agudezas... refinamentos...
- não!
Nada disso encontrarás aqui.
Um poema não é para te distraíres
como com essas imagens mutantes de caleidoscópios.
Um poema não é quando te deténs para apreciar um detalhe
Um poema não é também quando paras no fim,
porque um verdadeiro poema continua sempre...
Um poema que não te ajude a viver e não saiba preparar-te para a morte
não tem sentido: é um pobre chocalho de palavras.

Mario Quintana

sábado, 21 de maio de 2011

Carlitos

Estava revendo “O Garoto”, de Chaplin. Que alegria reencontrar quem nos faz bem! Meu primeiro encontro com Carlitos, lembro, foi quando eu tinha 08 ou 09 anos, num festival domingueiro, no comecinho dos anos 80, pela TV Globo (fazia pouco que Chaplin havia morrido, numa noite de natal, em 1977). Inesquecível!
“O Garoto” foi rodado em 1921. Daqui há pouco, um século. Resolvi testá-lo com o0s meus pequenos. Ainda agradaria às crianças 3D de hoje? Qual não foi a surpresa ao constatar que o que é para sempre para sempre é. As crianças ficaram tão felizes com a descoberta que queriam que o tema de aniversário deles fosse o Carlitos. Não é fantástico? Pena é a TV aberta não voltar a exibir um festival Charlie Chaplin, nem que fossem apenas os curtas, bem menos conhecidos do grande público.

terça-feira, 17 de maio de 2011

Lucelena Sem Pitoca

Era cor de manteiga a porta de madeira pesada, rude que nem as almas dos que lá viviam, gastada de muito inverno e verão, em duas partes composta. E era laranja madura o sol manhecente tingindo as campinas, cinzentas no longe. Fazia friagem naquela manhã, um mundaréu de neblina, quando o menino abriu a parte de cima da porta, para espiar o mundo nascer do escuro, lerdo, sem pressa, mofino. Na casa só três estavam acesos já, desde cedinho: ele, a mãe e a avó. O café de pilão flutuava um aroma bom na cozinha velha de picumã cacheada. De olhos postos no fora, ele olhou pro alto, pro céu de mingau, e reparou sem espanto que logo “vai garoar!”. Garoou-se. Envelopado como estava num lençol de retalhos, correu pra junto da lenha do fogo, pra perto das brasas, e aqueceu pés e mãos... ô, frio danado de grande! “Bota a sandália nos pé, Fulaninho!”, ralhou a avó catando de já o feijão do almoço, ainda na luz da candeia. “O cuscuz já já sai”, pensava. Escutou o pai pigarrento, um gôgo sem fim, que nem bicho na rede da camarinha, rodeado de muriçoca. Dava pra ouvir os rangidos e os tossidos dali donde estava, uma tosse nojenta por cima da cumeeira. O galo inventou, meio sem convicção, de um pronto de cantar sem fé, feito os passarim nas copas saudando sem muita festa o dia tristonho. Dentro, afora os ralhos da avó mandando o menino calçar sandália, por um tempo comprido mais nada se ouviu, nada se disse, só o silêncio falava, o resto calado ficou. Eles eram desses de laia muda, que nem de dor xingava o azar de chutar por acaso pedra na estrada. Desde miúdos que tinham aprendido a poupar as palavras, a viver de silêncios, ilhados cada um na sua vida. Costumavam dizer “Para entendedor bom poucas bastam”, quando as conversas iam se espichando nas visitas poucas, quase nenhuma, que quando em vez recebiam. Os olhos falavam mais que a boca e calar era a lei.
Mas o que acontece é que, querendo ou não, como disse lá no alto, ele era um menino e portanto afeito à descumprir os acordados, não tanto por mal, por desacato, mas tão-somente por que dentro bem dentro, no escuro do silêncio de seu coração, vivia escondida, fingida de muda uma cascata de perguntas sem fim que não cessava de cair, de despencar em largas águas, em seu juízo, um num sei quanto de curiosidade ante os mistérios que via no mundo. As coisas eram enigma e inquietude o tempo todo. Ele pensava e pensava e mais que pensava, e tinha vontade de falar, mas receava as broncas, os cascudos, os ralhos, as caras feias. Mas tem hora que, num se sabe o porquê, a gente num agüenta a pressão da cascata e o medo fica menor que o desejo de falar.
- Ô mãe, posso perguntar uma coisa?
A mãe ocupada estava, ocupada continuou a fritar ovos e ferver leite para ajuntar ao cuscuz, conforme fosse o gosto de cada um.
- Ô mainha...?
- Hum?!
- Posso perguntar?
- Pode calar a boca!
Tempo.
- Vó?
- Hum?
- Ô Vó?
- Hum?
- Posso perguntar uma coisa?
Ocupada estava, ocupada continuou, a velha, a sua lida de catar feijão no tampo da mesa. E sem despregar olho dos grãos ruminou numa voz de pouca altura:
- O que era?
- Tô intrigado...
- Com quê?
- Umas coisa.
Tempo.
- Tô intrigado, voinha, com umas coisa!
Tempo.
- Voinha?
- Avante, menino! Eu já ouvi. Com quê tá intrigado?
- A pitoca da gente cai?
- Comé?
- A minha pitoca vai cair quando eu crescer?
- Que história é essa, Fulaninho?
- Menino, isso é coisa de se perguntar pra avó?
- Oxe! Mas eu num perguntei se podia perguntar?
- Mas justo sem-vergonhice? Dê-se o respeito, rapá!
- Desculpa, vó!, já choroso.
- Deixa, Maria, deixa que eu respondo ao inocente!
- Mas dona Quitéria!
A avó chamou o menino pra junto dela. Sentou-o no colo.
- Meu amor, porque a pergunta descabida?
- É que eu fiquei com medo, vó. Tanto medo que até sonhei!
- Medo de quê?
- Dela cair de tão dura que fica às vez!
- Fulaninho!
- E eu queria saber somente se a pitoca da gente cai e a gente fica assim que nem a Lucelena.
- Oxente, menino! E como é que você sabe que Lucelena num tem pitoca?
- Ela tava ontem tomando banho sem cuidado na beira do rio e eu espiei por riba da moita. A pitoca minha deu um pulo e empinou para riba, mais dura que o cacete de vovô Neoleo, pensei que fosse cair fora...
- Passa já por quarto antes que eu te mate, menino!
- Mas mãe!
- PASSA!
E ele voou dali chorando, de volta ao ventre da rede, antes do cuscuz sair do fogo.
- Menino tem cada uma, né?! Deus do céu, tende piedade!
E voltou o silêncio a reinar na casa velha por uns tempos mais.
A avó no seu canto se riu baixinho, discreta, sem alarde, por dentro, para nem dar asa ao neto ferido na ignorancia e nem lenha ao enfezamento da mãe bronca.

domingo, 15 de maio de 2011

...

Falta vinho e boa companhia na noite insone.
No quarto fechado, tu ouves Patti Smith
E folheias Shakespeare,
Trechos ligeiros de “Romeu e Julieta”.
Engraçado! Como faz alegre à gente um genuino amor,
Mesmo que de ficção,
Feito com maestria de palavras, palavras, palavras!
É aí então que te dá esta vontade repentina de acender a luz,
sentar e escrever;
de também tu, mais modestamente, tecer textos para todos e ninguém!
Podes assim voltar à cama e adormecer feliz,
Sem vinhos e companhias outras
Além de tu e teus imtempestivos fantasmas!

segunda-feira, 9 de maio de 2011

TV

Outro dia estava conversando aqui sobre as redes de televisão, o quanto são ruins as programações e tudo. Ontem eu e alguns amigos mais velhos estávamos a nos lembrar de bons programas vigentes na TV no fim dos anos 70 e até meados da década de 80. Saudosismo? E daí? Não vou negar: faz falta a Vila Sésamo, a TV Criança, o Daniel Azulay, Tio Maneco, Bazzar Tem Tudo, Sitio do Pica-Pau Amarelo, o Balão Mágico, Os Muppets... ou não faz? E os desenhos (Tartaruga Touche, Zé Colmeia, Scoobe Doo, Pepe Legal, Coelho Ricochete, Carangos e Motocas, A Formiga e o Tamanduá, a linha, Zé Buscapé, a Pantera Cor-de-Rosa, a Cobrinha Azul, Ligeirinho, Wally Gator, Esquilo Sem Grilo, Shazan, Pinoquio, Familia Muzzarela, Grande Polegar, Toro e Pancho, Mightor, Marco, Mandachuva, Magilla, Lippy e Hardy, Leão da Montanha, King Kong, Jonny Quest, Jambo e Ruivão, É o Lobo, Dogtanham, Mister Magoo e os Smurfes), não fazem falta?
Para quem não conhece certamente, não. Mas quem presenciou uma televisão para crianças com qualidade, com certeza deve se ressentir pelo que é oferecido hoje à infância, em termos de qualidade. Ou não?

quinta-feira, 5 de maio de 2011

A Paleta do Mundo


Diderot explicou uma vez a Catarina II que, antes de resolver escrever um livro, perguntava a si mesmo se seria a pessoa mais indicada para fazê-lo. ‘Examino, primeiro, se a obra pode ser mais bem feita por mim do que por outra pessoa, e faço-a. Se tiver a mínima desconfiança de que pode ser mais bem feita por outro do que por mim, qualquer que seja a vantagem que ela me traga, remeto-lha, pois o ponto importante não é fazer eu a obra, mas que ela se faça.’
Não há conselho mais honesto, mais sensato, mais útil, nem sequer mais amável, pelo que nos faz docemente esperar que alguns dos que escrevem hoje esses livros e livros que só um doloroso e indeclinável dever nos faz ler até ao fim, venham um dia a aceitá-lo...
“O ponto importante não é fazer eu a obra, mas que ela se faça”.

Mário Dionísio em “A Paleta e o Mundo”.

quarta-feira, 4 de maio de 2011

REDES

Há quinze anos, perguntaram ao Luiz Mauricio Carvalheira porque ele não tinha televisão em casa. Eu estava presente na sala e lembro de que a resposta foi algo como: “Prefiro comprar uma rede, aonde lerei meus livros”.
Eu também, seu Luiz, ando alienado, como dizem por ai. Não leio jornais, noticiários, rádios, revistas... Do mundo, poucas notícias só, um quase nada. Abisma-me tanta coisa ruim, tanta maldade, tanta judiação, embora saiba na idéia que é necessário saber delas todas, tentar compreender a essência do Mal, tentar empreender uma luta contra, formar grupos de apoio e resistência a isso e aquilo, mas que posso fazer se nada disso no coração me apetece? Talvez com uma televisão paga, via satélite ou a cabo, pudesse voltar a me seduzir, mas a televisão aberta tal qual hoje temos (salvo uma ou outra exceção) é de uma lástima sem tamanho. Então tranquilamente me detenho no que acho mais essencial.

Não deixo de ir ao cinema e ao teatro, duas de minhas paixões inomináveis. E comprei já uma rede, aonde entro, espreguiço, leio e sonho.
Às vezes me acomete uma vontade engraçada de escrever. Noutras, me vem melodia e entabulo uma canção, mas por ora não sinto falta de mais nada.

quinta-feira, 28 de abril de 2011

FLORBELA, BELA FLOR

Ser poeta é ser mais alto, é ser maior
Do que os homens! Morder como quem beija!
É ser mendigo e dar como quem seja
Rei do Reino de Aquém e de Além Dor!

É ter de mil desejos o esplendor
E não saber sequer que se deseja!
É ter cá dentro um astro que flameja,
É ter garras e asas de condor!


É ter fome, é ter sede de Infinito!
Por elmo, as manhãs de oiro e de cetim...
É condensar o mundo num só grito!

E é amar-te, assim, perdidamente...
É seres alma, e sangue, e vida em mim
E dizê-lo cantando a toda a gente!

Florbela Espanca

Calendarios

Estão correndo os dias e as noites. O cromo despenca seus frutos, folha por folha, a cada manhã. Calendários voam da parede e outro logo se estabelece para de novo dar lugar a outro e outro e outro, numa via e volta sem fim. O relógio não pára do avanço e notícias boas não fazem a compra do jornal. Olho para os meus filhos, miúdos ainda para compreender, e penso no que serão deles nos anos que estão por vir. E os filhos dos filhos deles?
Luto para manter um sorriso e cantar uma canção mais alegre, mas tem dias que não dá, meu Deus!
Não quero parecer tão triste ou mais triste do que sou, Aninha. Mas que posso fazer se assim é? Tem dias que a gente acredita na melhora das coisas, quer ser otimista, quer ser zen, quer achar graça nas coisas todas, por fé no porvir, uma Ana Maria Braga da vida, mas há dias em que tudo, tudo, tudo parece mesmo distante de fim feliz, se é que fim feliz há.
Espio os meus pais ainda vivos, mas já velhos, já cansados. Até onde durarão junto a mim? Minha mãe côa um café cheiroso e quente e, sempre que estou nas cercanias, me convida para um lanche de entardecer em sua mesa: café, tapioca, pão e queijo. Até onde brindaremos o convívio?
Na ultima sexta-feira santa morreu a mãe de uma amiga para as bandas do Ceará. A mãe de outro está em vias de se ir em Recife mesmo. E um amigo acaba de me confessar de que há possibilidades de câncer de pele nele habitar. Isso sem falar nas atrocidades dos quase anônimos que vemos na TV. Não faz muito um doido aí andou a matar adolescentes numa escola no Rio.
Sei, sei... dirão que este meu blog é de muita tristeza só. Vocês têm o direito de nem lê-lo, dele se desligar e ir atrás das festinhas. Eu mesmo até que fazia gosto de cantar uma canção mais alegre. E entôo melodias mais doces, tem dias. Mas na força não, fica feio. Música boa não é aquela que a gente canta, é antes aquela canta a gente quando tem precisão.
hoje canto pouco, ou melhor, nem canto. Só contemplo o rio correr, enquanto a vida vai passando sem pressa para outras margens.

segunda-feira, 25 de abril de 2011

Poemas sem titulo

Queria poder escrever canções mais belas, se possível fosse
Compor melodias que amenizassem dores
Lenitivos para corações doídos
Risadas largas para bocas estreitas
E manter a chama acesa por um tempo mais
Para ver crescer os filhos, assisti-los nas quedas que virão
E escrever poesias
Misturando-as ao ressono do amor cansado, madrugador,
Edredom de chuviscosos invernos e neblinas opacas.
Ah! Que delícia é estar aqui ainda, amigo velho,
Ainda que seja para dizer bobagens
Não ter passado é mais uma vez aguardar futuros
É mais uma vez permanecer presente.
Eu espero e enquanto espero, vou caminhando,
Nestes rumos de fim de mundo
Rodeado de pastos verdes
E estradas desertas
Com as velhas canções de sempre.

domingo, 10 de abril de 2011

Inverno




Com as suas agulhas de vidro bordado
Mais uma vez o inverno chega
Seus clarões e flashes de prata
Seus trovões de terra cindida
Poética de água celeste
Que seja bem vinda

segunda-feira, 4 de abril de 2011

Da Ontológica Voragem



Não lembro de um dia sequer em que eu tenha desejado muito na vida ser ator. Quando fiz o meu primeiro curso de formação mais vertical, há duas décadas, percebi que havia colegas de sobra querendo subir ao palco, ficar sob os refletores, ter o nome no jornal, coisas desse tipo... e isso muitas vezes me roubava a paciência. Para mim, mais importante era entender o que era “fazer teatro”, qual a necessidade que se tinha de se produzir algo tão efêmero e tão cheio de dores de cabeça. E qual a necessidade tem uma pessoa de sair de casa, à noite, para “ver teatro”. O que tinha aquilo tudo de mágico e sedutor? Algumas criações me pegavam mais que outras. Algumas me exasperavam (de tão ruins!) mais que outras... e quase nunca eu me achava satisfeito: nem com o que fazia, nem com o que assistia. Um amigo meu, na época, dizia: “Deus do Céu, como tu é muito chato!”. E sou.
Eu ficava sempre de lado, tentando entender aquele troço todo, o “como” se fazia, que ideias, que surpresas, as idas e vindas, as angústias da criação, a alegria das descobertas. Sabia que sabia pouco. E que era preciso saber mais, fuçar mais, garimpar mais fundo, estudar mais, ler mais, ver mais filmes, e mais peças, e mais Arte Pictórica e mais Música. Minha ignorancia do mundo eu devia à formação escolar, que se deu 100% em escola pública (depois eu descobri que não, tem muita gente com escola decente, que também é ignorante pra caramba)e lá nunca se falava sobre coisas, fatos, pessoas (poetas, dramaturgos, cineastas, pintores, romancistas), movimentos, que ainda hoje me parecem essenciais. A escola não ensinava a pensar. E quando fui parar no teatro pra valer, o não-saber me cobrou juros altos.
Anos mais tarde, quando finalmente me vi com algumas possibilidades de vir a trabalhar como ator, me dispus a sê-lo com os que considerava os “melhores diretores da cidade”. E estive presente em espetáculos para crianças, para jovens, para adultos, dublando bonecos, recitando poesia, fazendo “leituras dramatizadas”, substituindo colegas em produções de qualidade duvidosa, mas quase nada, muito pouco, me deixava feliz.
Uma vez confidenciei a um colega de trabalho que achava teatro (Arte em geral) um troço muito ligado à Filosofia. Fui rechaçado. “Arte é Arte”, me disse. “Filosofia é filosofia”. Engraçado eu não depositar muita fé neste tipo de afirmativa, uma vez que eu tinha tendência a acreditar em muita gente mais velha que eu, com experiência mais larga no fazer artístico.
Mas, se isso fosse verdade, que arte não tem nada a ver com filosofia, porque existia Fellini? E Mizogushi? E Tarkovsky? E Rodin? E Rilke? E Woolf? E Mann? E Broch? E Musil? No dia em que assisti pela primeira vez um filme de Bergman (“O Sétimo Selo), quase não dormi. Começava a entender que arte pode não ser só entretenimento (nada contra o entretenimento), que podia ser algo mais denso, mais forte, mais enigmático. Acho que foi por ai que comecei a me interessar por dirigir espetáculos e, aos pouco, fui deixando esmaecer a ideia de ser ator.
Cada dia mais apaixonado pela Filosofia, pelo Mítico, pelo Místico, pelo Simbólico, pelo Numinoso, pelo indizível, me vejo às vezes na iminência de enlouquecer. “Por que não deixa então o teatro e vai se danar a escrever tratados de Metafísica?”, podem perguntar. É que a minha forma de dar vazão ao que acredito, ao que considero essencial, é fazer com que a Filosofia possa habitar o meu campo de trabalho predileto; escrevo metafísica no campo nu do palco. Por isso não posso dissociá-los naquilo que faço, por que é imperidoso para mim fazer assim e faço com todo o meu ser... e só dessa forma me sinto (um pouco) realizado. Não é para dar conselhos a ninguém, não é para passar “mensagem” nenhuma. Não é para achar que essa é a melhor maneira, que ela dilacera com as demais. É apenas para tentar compreender melhor a época em que vivemos e quem somos em meio a isso tudo. É o meu jeito de escrever e pensar as coisas todas. Só isso. E isso é tudo.

sexta-feira, 4 de março de 2011

O INFELIZ CARNAVAL DE PERNAMBUCO


Um dia ouvi o José Wilker dizer em um programa domingueiro de televisão que a classe política brasileira era o que havia menos de confiável em nosso país, era de uma decepção sem tamanho. Isso, se não me engano, foi um depoimento dado na época da morte do Airton Senna e o Wilker tinha acabado de recitar Brecht: “Infeliz do país que precisa de heróis”.
Pois bem, passado já algum tempo, sem desejo nenhum de ser herói de nada, muito me espanta que a assertiva do Wilker continue valendo. Esse carnaval de Pernambuco é de uma idiotia gritante. E nada será feito por que de nada adianta reclamar a sociedade civil organizada (ou não). Os nosso “representantes” continuarão não nos representando. A representação “sabe” mais que os representados.
Feliz Carnaval, para quem puder ter bom carnaval. Para outros, as cinzas da quarta-feira se antecipam e tomam já conta da festa toda.

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

Patti Smith e Tomás Gutiérrez Alea


Há muita coisa envolta em véu de mistérios... burramente se acha que se sabe e aí vem sempre algo novo, verde, virgem, nos assustar com a sua presença. Isso me faz pensar como é bom sair da ignorância, um tanto que seja.
Quando estive em Cuba ano passado me falaram de um cineasta de que até então (perdoem a grosseria) eu não ouvira falar: Tomás Guitiérrez Aléa. Do mesmo modo que um outro amigo me disse esta semana de Patti Smith, cantora norte americana, de que nem se quer eu desconfiava da existência. Embora ainda me falte conferir, garimpar informações mais precisas, o que costumo fazer sempre que me descubro ignorante disso ou daquilo, deixo aqui as sugestões para os que também desconhecem.

terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

O LADO ESCURO DO CISNE



Saio feliz do cinema, esta semana. Com uma sensação de leveza por dentro. Não tanto pelo filme, que é bem pesado. Mas pela forma como roteiristas, diretor e atrizes conseguem fazer um pesadelo oscilante entre a beleza da dança e o processo de enlouquecimento da protagonista. É estarrecedor, de dar agonia às vezes, mas de muito bom gosto. Além do mais, sempre é muito bom ver uma grande atriz em cena. Natalie Portman está simplesmente possuída, absolutamente fora do comum, em Cisne Negro (EUA, 2010, 108 min). O filme, dirigido por Darren Aronofsky e roteirizado por Mark Heyman, Andrés Heinz e John McLaughlin, sob muitos aspectos me lembrou o filme "Possessão", dirigido em 1981 por Andrzej Zulawski, e atuado por Isabelle Adjani, então com 26 anos de idade. Parece à primeira vista um filme de terror, mas não é. Trata-se de um olhar surreal, radical, abissal, sobre os labirintos da alma humana. Imperdiveis!