sábado, 24 de outubro de 2015

Mãezinha

Faz agora um ano que a minha mãe morreu e surpreende--me o que ela tem mudado depois de se ir embora. Não falo de idealização, não falo de saudades, falo de transformações reais. Parece-me que nada se alterou em mim em relação a ela, acho apenas que se modificou com o tempo. A nossa relação não foi sempre pacífica, muito poucas vezes foi pacífica, comecei logo por a minha mãe quase ter morrido, com uma eclampsia, quando nasci e, daí para a frente, as suas preocupações comigo não pararam. Meningite, tuberculose, cancros, isto no que diz respeito à saúde, no que diz respeito ao resto mau aluno, mal educado, o meu percurso escolar envergonhava-a, contava que ia ao liceu pedir aos professores que me pusessem na primeira fila visto que eu não ligava nenhuma às aulas, contava que, durante a prova escrita do exame de admissão, enquanto os outros meninos escreviam eu estava sentado ao contrário na carteira, a olhar para o tecto.
- E por aí percebi logo o que ia ser a vida dele
acrescentava, já a ver-me vender Bordas d'Água e pensos rápidos nas esplanadas. Depois era desobediente, malcriado, mentiroso, passava o tempo a ir buscar papel almaço de trinta e cinco linhas para escrever, lia livros que nada tinham em comum com aqueles que devia estudar e roubava-lhe cigarros para fumar às escondidas na janela da casa de banho, todo inclinado para fora por causa do cheiro. Praticamente não falava e desobedecia o mais que podia. Julgo que, na sua ideia, era uma espécie de vagabundo a-social em botão. A minha passagem pela faculdade foi calamitosa, eu que queria trabalhar nas bibliotecas itinerantes da Gulbenkian e, se acabei o curso, foi devido à teimosia do meu pai e ao auxílio do meu irmão João. Faltava às aulas, ia para o cinema encostar, ou deixar que senhoras que nem via encostarem a perna à minha, apresentava-me aos exames com uma ignorância virginal. Para o fim, desesperada, a minha mãe prometeu que me dava a carta de condução se eu fizesse os exames todos na primeira época e, daí para a frente, a partir do quarto ano, passei a fazer os exames todos na primeira época para ter mais tempo de férias para escrever. Aí, na praia, passava quase o verão inteiro fechado no quarto a fabricar obras-primas que deixavam de o ser mal as lia e acabavam, rasgadas com ódio, no lixo. Consciente da minha ausência de talento proclamava com modéstia

- Vou ser o maior génio do mundo
e recomeçava depois de queimar aquilo junto à figueira do quintal. (O meu irmão Pedro apanhava as sobras. Se calhar achava-me um génio igualmente, sei lá, e fazíamos concursos de chichi a ver quem atirava o jacto mais longe.)
Enquanto isto a minha mãe suspirava
- Oh filho
a abanar a cabeça com desgosto, tentava levar-me para o caminho da virtude, alto e fragoso, mas no fim doce, suave e deleitoso (Camões) e eu insistia nas redações, desesperado
- Ainda não é isto, ainda não é isto
sempre com vontade de desistir mas insistindo numa paciência de boi. A minha mãe lá ia aturando estas e outras desgraças, eu considerava-a intolerante e injusta, ela considerava-me uma criatura estranha (estou a ser simpático para comigo) mas, a partir de certa altura, comecei a olhá-la de uma maneira diferente. Trabalhava como uma moura para educar aquele rebanho de filhos, ocupava-se de tudo e, lentamente, começou a acreditar um bocadinho (pouco) em mim. O meu pai não era um homem fácil, nós não éramos muito fáceis, a sua vida não era fácil, o dinheiro não abundava, ela procedia diariamente à multiplicação dos pães e dos peixes (pães e peixes de toda a ordem) e, estranhamente, comecei a desconfiar que gostava dela mas nunca lho mostrei muito nem fui suficientemente grato. Não sei porque misteriosa razão era, muitas vezes, desagradável para ela, brusco, esquivo. Perto do fim comecei a dizer-lhe poemas, eu que já não os escrevia há que tempos (a minha mãe adorava poesia), a ser, de longe em longe, terno para ela, a, imaginem, beijá-la. Depois houve o episódio horrível da morte do Pedro, que continua a doer-me irremediavelmente. Fomos dizer à mãe, a mãe disse
- Tenham misericórdia de mim
a mãe acrescentou
- Uma mãe não tem o direito de estar viva quando um filho morreu
e, passado pouco tempo, desejosa de se ir embora para estar com o filho de novo, faleceu de tristeza. E principiou a aparecer diante de mim uma mulher inteligente, forte (ela que era pequenina e fisicamente frágil), decisiva na formação dos filhos (foi ela, por exemplo, que ensinou a ler), séria, honesta, de uma dignidade exemplar. Agora sim, conversamos às vezes. Agora sim, compreendo o pouco que recebeu da vida, sem queixumes (nunca foi azeda). Agora sim, compreendo que capaz de amar. Isto tudo ganhou depois de morrer e, claro, o que declarei ao princípio estava errado: não foi você, mãe, que mudou. Mudámos os dois. Quer dizer, deixemo-nos de tretas: mudei eu. Tenho o seu retrato na sala, grande, tão no género da maior parte dos seus filhos. Não no meu que saí à família do meu pai. Mas não faz mal, não é? Vim tanto de si como os meus irmãos e metade do sangue que derramei a escrever esta crónica pertence-lhe.

ANTONIO LOBO ANTUNES
http://visao.sapo.pt/opiniao/opiniao_antonioloboantunes/2015-10-16-Maezinha-1

TEMPO!


O tempo vai passar, irmão meu.  
Não fique triste. É mesmo assim.
Tão certo é isso, tão plausível, que chego a estremecer ao saber, ao compreender, ao sentir que não estaremos aqui para vermos, para continuarmos a ver,
A luz amarela da lua que algumas noites cheias têm...
Ou o pôr de sol que se vê de certos lugares mágicos,
Aos pés de despenhadeiros à beira mar.
Nós passaremos pelo tempo que por ora ainda é nosso
E ficarão umas fotografias, algumas notas
E quem sabe um poema velho
Nos advertindo de que a vida (mais que o tempo)
PASSA MESMO.

E que faz tu enquanto ele escoa?