sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

Amante da Algazarra

Não sou eu quem dá coices ferradurados no ar.
É esta estranha criatura que fez de mim seu encosto.
É ela !!!
Todo mundo sabe, sou uma lisa flor de pessoa,
Sem espinho de roseira nem áspera lixa de folha de figueira.

Esta amante da balbúrdia cavalga encostada ao meu sóbrio ombro
Vixe!!!
Enquanto caminho a pé, pedestre -- peregrino atônito até a morte.
Sem motivo nenhum de pranto ou angústia rouca ou desalento:
Não sou eu quem dá coices ferradurados no ar.
É esta estranha criatura que fez de mim seu encosto
E se apossou do estojo de minha figura e dela expeliu o estofo.

Quem corre desabrida
Sem ceder a concha do ouvido
A ninguém que dela discorde
É esta
Selvagem sombra acavalada que faz versos como quem morde.


Waly Salomão

TRAVAR CONHECIMENTO COM A NOITE

Sou um que travou conhecimento com a noite.
Eu fui passear na chuva - e na chuva voltei.
Deixei longe a luz mais distante da cidade.
...
Olhei a mais triste ruela da cidade.
Passei pelo vigia em sua ronda
E para não explicar baixei os olhos.
...
Fiquei imóvel sem o barulho dos meus passos
Quando de longe um grito interrompido
Veio, por sobre as casas, de outra rua,
...
Mas não era chamado ou despedida;
E mais longe ainda, numa altura incrível,
Contra o céu, havia um relógio iluminando
...
Proclamando que a hora não era certa nem errada.
Fui um que travou conhecimento com a noite.
 
 Robert Frost

FESTA

tinha estendido minha orfandade
sobre a mesa, como um mapa.
Desenhei o itinerário
até meu lugar ao vento.
Os que chegam não me encontram.
Os que espero não existem.

E tinha bebido licores furiosos
para transmutar os rostos
num anjo, em copos vazios.


ALEJANDRA PIZARNIK
"Uma coisa, até não ser inteira, é ruído, e inteira, é silêncio."

ANTONIO PORCHIA
En una noche que debió ser de lluvia
o en el muelle de un puerto tal vez inexistente
o en una tarde clara, sentado a una mesa sin nadie,
se me cayó una parte mía.
No ha dejado ningún hueco.
Es más: pareciera algo que ha llegado
y no algo que se ha ido.
Pero ahora,
en las noches sin lluvia,
en las ciudades sin muelles,
en las mesas sin tardes,
me siento de repente mucho más solo
y no me animo a palparme,
aunque todo parezca estar en su sitio,
quizá todavía un poco más que antes.
Y sospecho que hubiera sido preferible
quedarme en aquella perdida parte mía
y no en este casi todo
que aún sigue sin caer.

ROBERTO JUARROZ
¿Cómo amar lo imperfecto,
si escuchamos a través de las cosas
cómo nos llama lo perfecto?

¿Cómo alcanzar a seguir
en la caída o el fracaso de las cosas
la huella de lo que no cae ni fracasa?

Quizá debamos aprender que lo imperfecto
es otra forma de la perfección:
la forma que la perfección asume
para poder ser amada.

ROBERTO JUARROZ

quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

Lá se foi Carminha Miranda


Morreu hoje pela manhã a filósofa pernambucana Maria do Carmo Tavares de Miranda, aos 86 anos. Alguém a conhecia, alguém leu um de seus livros, quem sabia de sua obra, de sua existência? Eu mesmo a ignorava completamente, até ainda a pouco, quando um colega de trabalho me interrogou a seu respeito. Não, não sabia dela.
Nascida em Vitória de Santo Antão, em 1926, era apaixonada pela aventura do ser. Correu atrás de seus sonhos e se tornou assistente de Martin Heidegger na Alemanha dos anos 1950. Hoje é considerada pelo pensamento europeu uma das expressões mais altas da intelectualidade brasileira. E eu, que nunca ouvi falar seu nome! Pena não a ter conhecido. Pena já tê-la encontrado saindo de sua floresta. Mas vou caçar o seu legado.
Isso me traz novamente a ideia de que há tantos artistas e pensadores que nos são tão próximos, tão vizinhos e tão anônimos, desconhecidos da maioria absoluta. E a gente podia travar um diálogo germinador e perdemos a chance! Agora a conversa com só poderá se dar de outra forma, válida também, mas talvez menos calorosa.
Ô Deus, dá-nos a capacidade de reconhecer o gênio de nossos pares, aplaudi-los e abraça-los, antes que voltem ao pó! Principalmente os que não estão a fim de ficar todo o tempo se autopromovendo nos facebooks da vida, os que se mantêm velados e silenciosos, mas estão plenos de criação!

terça-feira, 11 de dezembro de 2012

“Os cacos da vida, colados,
Formam uma estranha xícara.
Sem uso,
Ela nos espia do aparador”.

Drummond

“Há que dizer, ao mesmo tempo, que os surtos de coragem, assim com os ímpetos de sinceridade, necessitam de uma ocasião ou de uma dificuldade para existir em ato, isto é, meritoriamente, custosamente, perigosamente, e que uma maneira de ser corajosa conserva no entanto toda a sua sublime evidência.”

Jankélévitch

segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

“A unidade de todos os mundos está em que eles formam sistemas de signos emitidos por pessoas, objetos, matérias; não se descobre nenhuma verdade, não se aprende nada, se não por decifração e interpretação. Mas a pluralidade dos mundos consiste no fato de que estes signos não são do mesmo tipo, não aparecem da mesma maneira, não podem ser decifrados do mesmo modo, não mantêm com o seu sentido uma relação idêntica”.

Gilles Deleuze
“Pode-se ser muito hábil em decifrar os signos de uma especialidade, mas continuar idiota em tudo o mais”.

Gilles Deleuze
"Aprender diz respeito essencialmente aos signos. Os signos são objetos de um aprendizado temporal, não de um saber abstrato. Aprender é, de início, considerar uma matéria, um objeto, um ser, como se emitissem signos a serem decifrados, interpretados.  Não existe aprendiz que não seja ‘egiptólogo’ de alguma coisa. Alguém só se torna marceneiro tornando-se sensível aos signos da madeira, e médico tornando-se sensível aos signos da doença. (...) Tudo que nos ensina alguma coisa emite signos, todo ato de aprender é uma interpretação de signos ou de hieróglifos."

Gilles Deleuze

quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

“É aquilo que fazemos, em que participamos real e constantemente e não apenas de forma ocasional, aquilo de que qualquer pessoa se ocupa constantemente, e nós próprios também, é afinal o critério pelo qual determinamos o que qualquer um alguma vez é, e o que somos. Este faz sapatos e, assim, é sapateiro. Aquele professa a profissão de instruir e educar e, pelo que faz, é professor. Este exerce o ministério das armas e, daí, é soldado. Aquele ocupa-se da produção de livros que, no índice público dos livreiros, aparecem catalogados na categoria “Filosofia” e é, por isso, um filósofo. Aquilo em que uma pessoa participa com persistência, o que faz, determina o que É.
Mas, sabendo O QUE somos, saberemos QUEM somos?”

Martin Heidegger

quarta-feira, 5 de dezembro de 2012

“Os homens crêem que o instante terminal de sua vida libera, por si só, uma mensagem: a morte seria o momento de revelações, momento solene por recapitular o passado e pela novidade desconhecida de que é portadora. É o fim que, retrospectivamente, ilumina com uma súbita claridade uma vida inteira, de agora em diante, terminada, consagrando-lhe valor (...). Só a morte transforma uma vida em destino.”

Jankélévitch

O HOMEM REVOLTADO


“Que é um homem revoltado? Um homem que diz não. Mas, se ele recusa, não renuncia: é também um homem que diz sim, desde o seu primeiro movimento. Um escravo, que recebeu ordens durante toda a sua vida, julga subitamente inaceitável um novo comando. Qual é o significado deste ‘não’?
“Significa, por exemplo, ‘as coisas já duraram demais’, ‘até aí, sim; a partir daí, não’; ‘assim já é demais’, e, ainda, ‘há um limite que você quer ultrapassar’. (…) Encontra-se a mesma ideia de limite no sentimento do revoltado de que o outro ‘exagera’, que estende o seu direito além de uma fronteira a partir da qual um outro direito o enfrenta e o delimita. Desta forma, o movimento de revolta apoia-se ao mesmo tempo na recusa categórica de uma intromissão julgada intolerável e na certeza confusa de um direito efetivo ou, mais exatamente, na impressão do revoltado de que ele ‘tem o direito de…’. A revolta não ocorre sem o sentimento de que, de alguma forma e em algum lugar, se tem razão. (…) Ele [o revoltado] demonstra, com obstinação, que traz em si algo que ‘vale a pena’ e que deve ser levado em conta. De certa maneira, ele contrapõe à ordem que o oprime uma espécie de direito de não ser oprimido além daquilo que pode admitir.
“O revoltado, no sentido etimológico, é alguém que se rebela.”
Albert Camus (1913-1960)