Era cor de manteiga a porta de madeira pesada, rude que nem as almas dos que lá viviam, gastada de muito inverno e verão, em duas partes composta. E era laranja madura o sol manhecente tingindo as campinas, cinzentas no longe. Fazia friagem naquela manhã, um mundaréu de neblina, quando o menino abriu a parte de cima da porta, para espiar o mundo nascer do escuro, lerdo, sem pressa, mofino. Na casa só três estavam acesos já, desde cedinho: ele, a mãe e a avó. O café de pilão flutuava um aroma bom na cozinha velha de picumã cacheada. De olhos postos no fora, ele olhou pro alto, pro céu de mingau, e reparou sem espanto que logo “vai garoar!”. Garoou-se. Envelopado como estava num lençol de retalhos, correu pra junto da lenha do fogo, pra perto das brasas, e aqueceu pés e mãos... ô, frio danado de grande! “Bota a sandália nos pé, Fulaninho!”, ralhou a avó catando de já o feijão do almoço, ainda na luz da candeia. “O cuscuz já já sai”, pensava. Escutou o pai pigarrento, um gôgo sem fim, que nem bicho na rede da camarinha, rodeado de muriçoca. Dava pra ouvir os rangidos e os tossidos dali donde estava, uma tosse nojenta por cima da cumeeira. O galo inventou, meio sem convicção, de um pronto de cantar sem fé, feito os passarim nas copas saudando sem muita festa o dia tristonho. Dentro, afora os ralhos da avó mandando o menino calçar sandália, por um tempo comprido mais nada se ouviu, nada se disse, só o silêncio falava, o resto calado ficou. Eles eram desses de laia muda, que nem de dor xingava o azar de chutar por acaso pedra na estrada. Desde miúdos que tinham aprendido a poupar as palavras, a viver de silêncios, ilhados cada um na sua vida. Costumavam dizer “Para entendedor bom poucas bastam”, quando as conversas iam se espichando nas visitas poucas, quase nenhuma, que quando em vez recebiam. Os olhos falavam mais que a boca e calar era a lei.
Mas o que acontece é que, querendo ou não, como disse lá no alto, ele era um menino e portanto afeito à descumprir os acordados, não tanto por mal, por desacato, mas tão-somente por que dentro bem dentro, no escuro do silêncio de seu coração, vivia escondida, fingida de muda uma cascata de perguntas sem fim que não cessava de cair, de despencar em largas águas, em seu juízo, um num sei quanto de curiosidade ante os mistérios que via no mundo. As coisas eram enigma e inquietude o tempo todo. Ele pensava e pensava e mais que pensava, e tinha vontade de falar, mas receava as broncas, os cascudos, os ralhos, as caras feias. Mas tem hora que, num se sabe o porquê, a gente num agüenta a pressão da cascata e o medo fica menor que o desejo de falar.
- Ô mãe, posso perguntar uma coisa?
A mãe ocupada estava, ocupada continuou a fritar ovos e ferver leite para ajuntar ao cuscuz, conforme fosse o gosto de cada um.
- Ô mainha...?
- Hum?!
- Posso perguntar?
- Pode calar a boca!
Tempo.
- Vó?
- Hum?
- Ô Vó?
- Hum?
- Posso perguntar uma coisa?
Ocupada estava, ocupada continuou, a velha, a sua lida de catar feijão no tampo da mesa. E sem despregar olho dos grãos ruminou numa voz de pouca altura:
- O que era?
- Tô intrigado...
- Com quê?
- Umas coisa.
Tempo.
- Tô intrigado, voinha, com umas coisa!
Tempo.
- Voinha?
- Avante, menino! Eu já ouvi. Com quê tá intrigado?
- A pitoca da gente cai?
- Comé?
- A minha pitoca vai cair quando eu crescer?
- Que história é essa, Fulaninho?
- Menino, isso é coisa de se perguntar pra avó?
- Oxe! Mas eu num perguntei se podia perguntar?
- Mas justo sem-vergonhice? Dê-se o respeito, rapá!
- Desculpa, vó!, já choroso.
- Deixa, Maria, deixa que eu respondo ao inocente!
- Mas dona Quitéria!
A avó chamou o menino pra junto dela. Sentou-o no colo.
- Meu amor, porque a pergunta descabida?
- É que eu fiquei com medo, vó. Tanto medo que até sonhei!
- Medo de quê?
- Dela cair de tão dura que fica às vez!
- Fulaninho!
- E eu queria saber somente se a pitoca da gente cai e a gente fica assim que nem a Lucelena.
- Oxente, menino! E como é que você sabe que Lucelena num tem pitoca?
- Ela tava ontem tomando banho sem cuidado na beira do rio e eu espiei por riba da moita. A pitoca minha deu um pulo e empinou para riba, mais dura que o cacete de vovô Neoleo, pensei que fosse cair fora...
- Passa já por quarto antes que eu te mate, menino!
- Mas mãe!
- PASSA!
E ele voou dali chorando, de volta ao ventre da rede, antes do cuscuz sair do fogo.
- Menino tem cada uma, né?! Deus do céu, tende piedade!
E voltou o silêncio a reinar na casa velha por uns tempos mais.
A avó no seu canto se riu baixinho, discreta, sem alarde, por dentro, para nem dar asa ao neto ferido na ignorancia e nem lenha ao enfezamento da mãe bronca.
Nenhum comentário:
Postar um comentário