segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

“Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.
E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.
Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe — todos eles príncipes — na vida…
Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,
Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?
Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?
Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos — mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que venho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.”

(Trecho de “Poema em Linha Reta”, de Fernando Pessoa)

Dos planos que hão de vingar em 2015.


1.       Encontrar novos espaços (internos e externos) de criação;
2.      Estrear “Olhos de Café Quente”;
3.      Dar continuidade ao “Le Petit”;
4.      Viajar à Praga, Lausanne, Firenze e Torino (onde Nietzsche teria perdido o juízo);
5.      Achar tempos para a delicadeza;
6.      Ler vários dos livros que estão à espera;
7.      Fazer um filme (doc. ou fic.);
8.     Escrever mais;
9.      Fotografar mais;
10.  Desenhar mais;
11.   Tentar o mestrado;
12.  Voltar com a banda;
13.  Comer melhor;
14.  Dormir melhor;
15.   Nadar mais;
16.  Dar mais risadas;
17.   Ouvir mais músicas;
18.  Ir mais vezes ao interior;
19.  Estar mais junto dos meus pais;
20. Agarrar mais meus filhos;
21.  Dar mais beijos;
22. Não dizer ‘sim’ a tudo o que me aparece;

23. Começar a desenvolver mais detalhadamente dois projetos sonhados: um espetáculo sobre uma fábula medieval e outro sobre a maldade humana.
“Será que a natureza da atividade de pensar, o hábito
de examinar, refletir sobre qualquer acontecimento,poderia
condicionar as pessoas a não fazer o mal? Estará entre
os atributos da atividade do pensar, em sua natureza
intrínseca, a possibilidade de evitar que se faça o mal? Ou
será que podemos detectar uma das expressões do mal, qual
seja, o mal banal como fruto do não exercício do pensar?”


Hannah Arendt

quarta-feira, 17 de dezembro de 2014

Era uma vez eu e meus 06 anos de idade!
Minha irmã vestidinha de branco.
Eu também arrumado com a camisa xadrez azul
Prontos para entrar no taxi cor de jerimum de meu pai.
Minha mãe chamando lá longe.
A gente correndo na estrada.
Os grilos dizendo amém.
O pisca-pisca dos vagalumes lá longe
A escurecença do fim de tarde.
Poças d’água refletindo
Um Pôr de sol aguado e frio.
A alegria chegando mansa.
Nós prontos todos para o passeio.
A promessa de uma festa
Na casa de algum parente.
Uma vontade grande de alegria.
Felizes todos com tão pouco!

Com tão pouco éramos plenos.
- Fé! – me disse.
(E dizendo me abraçou)
- Não quero te ver só, nem triste.
(E abraçando me sorriu... um sorriso luminoso inteiro)
- Vai começar tudo novamente, né?!
- Sim, vai!
- Mais uma vez o ano novo. Mais uma vez o desejo de que tudo seja leve
belo e feliz no mundo. Mais uma vez crer no futuro apesar dos presentes.
- Sim, acredito – lhe disse. - Não por nada, mas somente por que você existe.
(E sorrindo lhe abracei um abraço sincero inteiro)
Por que você está aí, milagrosamente aí
E segura a minha mão com força quando as coisas ficam feias.
E canta qualquer coisa quando a vida silencia.
E por isso, só por isso, sei, amanhã será melhor.

Feliz 2015!

https://www.youtube.com/watch?v=kbzmmflKskQ


O presente

  “O que hoje recebes
  e não podes pegar, guardar
  em panos e papéis laminados,
  é imperecível,
  presente onipresente.
  Estás com ele na chuva
  e não temes que se desfaça.
  Estás com ele na multidão
  e não o escondes dos mutilados.
  O que não existe para os homens
  deles estará protegido,
  o que os homens não vêem
  não poderão espedaçar.
  Eis o que não te denuncia
  porque não tem face
  nem volume para ser jogado no mar.
  Eis o que é jovem a cada lembrança
  porque não tem data
  e série, para envelhecer.
  O que hoje recebes
  não pode ser devolvido.”


Alberto da Cunha Melo

terça-feira, 16 de dezembro de 2014

“Fazer um filme consiste em acumular experiências e, ao mesmo tempo, em abandonar algumas. Isso deveria fazer SEMPRE parte da profissão de cineasta. Quais são as experiências constantes e imutáveis que nos ajudam a fazer melhor nosso trabalho de diretor, QUAIS SÃO AS EXPEDIÊNCIAS DE QUE PRECISAMOS NOS LIVRAR PARA ENCONTRAR ALGO NOVO? É preciso acumular, por um lado, e se livrar, por outro, MANTENDO UM CERTO VAZIO. É PRECISO ESTAR DIANTE DO DESCONHECIDO parta ter o desejo de filmar”.


Jia Zhangke
"O teatro é uma arte bonita e difícil. Exige que se recomece do quase nada a cada novo lance. É ofício de gladiador, trabalho pra sujeito forte. Mesmo que a arena seja a da absoluta delicadeza. Porque ou o artista está ali, na peleja, agarrando e fazendo luzir o pensamento na hora mesmo em que a cena acontece ou... perdeu, irmão. 
Nem uma cenografia bacana, nem uma luz bonita, nem um elenco que canta e sapateia, nada garante o teatro . Menos ainda "as melhores intenções". Pelo contrário, o palco tem ojeriza às almas virtuosas. Porque a cena viva é, antes de tudo isso, um lugar de embate e não necessariamente de expressão da virtude ou da autopiedade.
Por isso as dramaturgias íntimas, os teatros do eu, são enganosos. Traduzir o mundo nas bordas do umbigo não é tarefa fácil. Nesse caso ou você é um poeta "fudido" pela vida e muito sensível a ponto de ter aprendido que o entorno existe, que você não está sozinho, que tem mais gente no jogo; ou vai ver o palco se fechar em copas e dizer "não, amigo@,obrigado. Nos veremos na próxima".

Kill Abreu

sábado, 13 de dezembro de 2014

“A alfabetização visual proporcionaria não apenas ler melhor o livro, mas também valorizar a importância e beleza das letras, dos espaços em branco, das cores, da diagramação das páginas e a relação entre texto e imagem. Acentuando o livro como objeto de magia e descoberta, ele seria melhor incorporado ao cotidiano das crianças”.

RUI DE OLIVEIRA


sexta-feira, 12 de dezembro de 2014

“Como parecem insossos os estímulos do meio imediato em comparação com aqueles que, berrantes, continuamente cintilam na tela; como fica entediante a rotina de cada um diante de tudo aquilo de excitante que as mídias incessantemente veiculam. Os estímulos do ambiente do dia a dia não são páreo para a torrente de excitação midiática do espetacular; eles ficam abaixo do limite do que o aparato sensorial pode absorver, possuem um pobre aqui e agora, mas nenhum AÍ. (...) Cada imagem, cada som luta pelo seu próprio AÍ, de forma que imagens e sons se sucedem uns aos outros cada vez mais rápida e violentamente.”

Christoph Türcke

terça-feira, 9 de dezembro de 2014

DAS PRIMAVERAS DESPERTAS



Quis escrever um poema em que coubessem todos vocês, cada rosto, cada olhar, cada sorriso, cada angústia contemplada, mas não posso. Seria um poema simples de poucas palavras, um haikai de sílabas escassas, suficientemente hábil para refletir a minha alegria, mais que isso, a minha felicidade, em ter presenciado o acontecimento de ontem no palco do Marco Camarotti. Mas não dá, haja vista a minha pouca habilidade com o minimalismo.
Por isso, peço de antemão desculpas por abusar do encadeamento de um sem numero de palavras, na tentativa de tocar os corações mais intranquilos.
Conheci certa vez um jardineiro desempregado que vivia de porta em porta oferecendo os seus préstimos em troca de alguns trocados. E mesmo quando lhe diziam não ter dinheiro e nem interesse em seus serviços, ele, vendo a decrepitude de alguns jardins, pedia que lhes dessem ao menos comida, mas que o deixassem mexer nas plantas de qualquer maneira.
E o homem ia com suas ferramentas e passava manhãs e tardes até que tivesse concluído a sua atividade, até que estivesse satisfeito. Olhando-o na laboriosa ação de restituir à vida as flores quase mortas, em livrar os canteiros das ervas daninhas, em transplantar daqui para ali as pequenas mudas, via algo fantástico acontecer (creiam!): é que ele, o jardineiro, na tarefa de jardinagem, se realizava jardineiro em plenitude. É como se tivesse para isso nascido, para um ato pleno numa tarefa de aparência trivial.
Ele voltava nos dias seguintes, nas semanas seguintes para ver se tinha valido à pena o empenho. E ficava esfuziante ao ver que algumas mudas tinham vingado.
Ontem à noite, ao sair do teatro para a rua, ao ir para casa descansar, depois de ver a Primavera de vocês, a história do jardineiro me veio de novo à mente. É que a nítida sensação de que vale à pena o plantio surpreende quando tantas coisas ruins, mal feitas, de mal gosto, impera no Teatro feito em Recife. Às vezes até bem intencionadas, mas quem disse que boas intenções fazem boas obras?
Saí do Camarotti com a certeza de que o Teatro é mesmo a mais potente forma de comunicação humana, sem disfarces, sem maquilagens, sem enfeites, sem truques, presentificando a experiência mágica que é (apesar dos obstáculos, apesar do medo, apesar da imensa responsabilidade, apesar das deficiências) a exultante alegria de erigir um jardim a muitas mãos.
Sim, é um exercício. Sim, vemos que alguns compraram a proposta mais que outros. Mas que felicidade em vê-los ali, todos, juntos, na mesma canção!
Agradecido por demais pela poesia viva, pela graça alcançada, por me ampliar a esfera do ser, por me fazer chorar e rir com vocês, meus colegas de trabalho, meus famintos jardineiros em botão. Grato pelos abraços, pelos sorrisos, pelo encanto, pela beleza, pelo crescimento. Grato pela honra de ter tido um dia com vocês o compartilhamento de  uma experiência tão delicada. Grato por estarem ainda ai, fortes, apesar das feridas.
Tão bom ver os corpos, as vozes, as movimentações.
Tão bom ver o trabalho, o suor, os olhares.
Tão bom sentir que algo de gostoso está se desenrolando, se expandindo, ganhando presença, ancorando o agora no passado e no futuro a um só tempo.
Tão bom algo assumido em processo, com todos os problemas não solucionados (que já é alguma solução).
É que a parede por rebocar tem lá a sua beleza. E os andaimes da construção guarda também a sua poesia.
E o jardineiro que espera o botão da flor da Primevera, apesar do Inverno, torce para que dê bons frutos o seu suor.
Que este exercício guarde em vocês um solo fértil!
Por que estamos todos muito, muito, muito precisados disso.


(Aos que fazem o Curso de Interpretação para Teatro do SESC Santo Amaro)

domingo, 7 de dezembro de 2014

Se acaso a minha obra envelhecer
E o meu olho de artista ficar cego
A ponto de não conseguir mais perceber
A beleza do feio, a feiúra do belo,
O grotesco do sublime, O piegas do sincero,
Quero, ao menos ouvir dos amigos
(espero!)
A impressão (mesmo inexata)
Da sensação que meu trabalho lhes causou.

Pois não se vai ao teatro como se entra no sarcófago
De Tutancâmon.
Vai-se ao teatro (ou ao cinema) para se ter uma experiência
Diferenciada do mundo, da vida, de tudo.
É triste um artista se achar genial,
Quando na verdade.
Passada a régua, finalizada a conta,
Faz obras que ficariam melhor
No período medieval.
Pois já nascem mortas, mofadas, enrijecidas,
Com pouco fôlego para fazer sonhar, pensar, tocar
A quem quer que seja.
Um mestre cozinheiro
Que perdeu a mão,
É preciso que saiba que a perdeu,
Para que talvez num esforço de entranhas
Possa se dar ao trabalho
De sair de seu lugar confortável
Para se redescobrir novamente (ia dizer, se reinventar)
Senhor da cozinha.




quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

“O tempo revela o charme das coisas sem charme. É por isso que o tempo é poeta. Só os poetas e pintores são capazes de conhecer de imediato o charme do presente. [...] Utrillo [1883-1955] pintava um poste ou um muro num subúrbio sórdido... e isso fazia sonhar. O que os poetas e pintores sabem traduzir no presente, o tempo o traduz para nós que não somos nem pintores nem poetas. É o tempo que é poeta para nós". 

JANKELEVITCH

"Estar em plena luz, na evidência, na presença total, quando as coisas estão imóveis no ar do meio-dia, é lá que o mistério é mais perturbador". 

JANKELEVITCH



“O que vive uma existência vegetativa apenas morre: muito tarde e muito lentamente. Quem vive sossegadamente e como que em estado de espera costuma se extinguir lentamente: é essa A SINA DA EXISTÊNCIA MÉDIA, de uma existência que transcorre a meio caminho entre o viver e o morrer, e que nunca está nem verdadeiramente viva nem verdadeiramente morta. Em compensação, o homem que vive intensamente morrerá apaixonadamente, às vezes heroicamente: é o destino das vidas breves, e é também o destino do herói cuja existência dramática é incessantemente ameaçada, incessantemente  reconquistada e finalmente perdida outra vez. Perdida para sempre!”

JANKELEVITCH


“Seja para amar, seja para brigar, seja para jogar malha, a condição prévia das condições prévias, em todos os casos, é existir. Se não se começa por isso, nada começará.”  

JANKELEVITCH



“O não-ser da morte resolve a fortiori e de uma só vez, da maneira mais radical e mais expeditiva, todos os compromissos de uma vida ativa, sem que seja necessário enumerar nem detalhar nem desmarcar os encontros um a um!”


JANKELEVITCH
“O verbo ser é o verbo fundamental, o mais geral e o mais determinado, o mais neutro e o mais vazio, o menos técnico por conseguinte, já que não requer nem esforço, nem aprendizado, nem especialização de nenhum tipo: porque para ser é só ser! A improvisação basta.”

JANKELEVITCH


“A lógica leva você de A a B.
A imaginação leva você a qualquer lugar”


A. Einstein

DA PROFISSÃO DO POETA

“Operário do canto, me apresento
sem marca ou cicatriz, limpas as mãos,
minha alma limpa, a face descoberta,
aberto o peito, e – expresso documento –
a palavra conforme o pensamento.
Fui chamado a cantar e para tanto
há um mar de som no búzio de meu canto.
Trabalho à noite e sem revezamentos.
Se há mais quem cante, cantaremos juntos;
Sem se tornar com isso menos pura,
A voz sobe uma oitava na mistura.
Não canto onde não seja a boca livre,
Onde não haja ouvidos limpos e almas
afeitas a escutar sem preconceito.”


Geir Campos

sábado, 15 de novembro de 2014

Quebec Xavier foi uma das minhas poucas alegrias na UFPE. A gente sonhava em fazer um curta-metragem juntos. Tocava Billie Holiday numa vitrolae uma mulher receberia muitos homens: Ivo Barreto, Irandhir Santos e Calixto Neto estavam em nossas intençoes de elenco. Aí a moça fugiu comigo e me levou ao Ricardo Brenannd para me mostrar uma escultura delicada de uma dama da noite francesa, linda e que tinha a cara de Quebec! A questão é que pouco antes de entrar no Museu, dei de frente com um imenso e autentico Rodin! Um pensador! E caí no choro, sem direito a mais nada a não ser olhar, olhar, olhar...
Sabe, deu uma vontade de deixar tudo, tudo, tudo e ir por aí, mundo afora,   nas estradas, sem rastros ou indícios de paradeiro. Um Chaplin desaparecendo na poeira da rua enquanto uma roda escura vai fechando pouco a pouco, impedindo-nos de saber exatamente em qual momento do caminho ele sumiu de fato.
O meu primeiro (e único) mestre de teatro foi Almir Rodrigues. Pacientemente tecer  uma obra, sem desesperos. Saber errar, saber experimentar, trazer coisas novas e inesperadas, testar tudo de uma outra maneira, aprender a ver, aprender a ouvir uma imagem, aprender a se mover lentamente entre os destroços, duvidando de tudo o que nos dizem ser líquido e certo. Com Almir, aprendi a duvidar dos mestres, dele mesmo inclusive.
Em março faço 41. Estranho, quando ontem, ou anteontem mesmo, fiz 14!
Eu e o Richard Bach. Se pudermos deixar uma ideia ganindo lá fora, a gente deixa. A questão é que às vezes a ideia não é um cachorrinho. A gente escuta a porta arrebentar e a ideia nos pegar pelo pescoço: "Ou nos bota no papel ou não te deixamos em paz". Quantas vezes guardei os papéis e o lápis e eles fizeram barulho a madrugada inteira sem me deixar dormir, bulindo, dentro da gaveta, até que eu voltasse a acender a luz e as escrevesse até o amanhecer!
Fui fazer teatro por que não sabia mesmo o que fazer de mim. Estava numa encruzilhada e aquilo era a única coisa que me fazia sentir mais vivo. Tinha dúvidas quanto a meus talentos (como ainda hoje é assim). Talvez devesse ter ido para outro lugar (talvez ainda deva). Mas a arte me abriu uma perspectiva que me é impossivel abrir mão (nem que seja como espectador)
Monteiro Lobato foi a primeira grande paixão literária. "Reinações de Narizinho" era um deleite para os meus 07 anos de idade. Temia que o livro chegasse ao fim. Li até a metade em poucos dias, mas o restante levei mais tempo porque regateava, para que não acabasse logo. Emília ainda é para mim a mais fantástica personagem feminina da Literatura Brasileira. Ah, que saudades daquele Sítio e das jaboticabas tiradas do pé!
Com Sérgio Leone, aprendi que cinema pode ser uma grande diversão. "Três Homens em Conflito", "Era Uma vez na América" são exemplos máximos disso: violento e tocante como é viver. Mas foi com Bergman que comecei a sentir que cinema podia ser um espelho doído da humanidade. E quando, numa noite de sabado, debaixo de muita chuva, acompanhado por uma namorada que sempre chegava atrasada aos encontros, entramos no Teatro Arraial para assistir ao "Sétimo Selo",  (sabe-se lá em que ano), percebi que o mundo se transformava na justa medida em que o filme transformava a minha visao do mundo.
Quando, pela primeira vez, perdi um grande amor, pensei que fosse morrer. Levei meses para voltar a respirar direito. Para azar meu, faltavam 10 dias para o meu aniversário. E o bolo amargava como se fosse feito de fumo. Alguém tinha morrido e, incrível, parecia que esse alguém era nada mais nada menos que eu mesmo.
Um dia, por acaso, fui parar dentro de uma velha capela, numa comunidade da periferia de Recife. Estavam fazendo um Auto de Natal. Faltava a melhor iluminação, não havia um figurino lá tão bom, a maquilagem era canhestra, mas a vontade do elenco de fazer com que algo nos tocasse nos tocava de fato, verdadeiramente. No final, José e Maria fugiam pelo deserto e o elenco cantava uma música do Geraldo Azevedo. Assim mesmo. Um milagre então aconteceu: sem esperar o melhor dos espetáculos, fui abduzido pela força dos amantes.
Ter um filho foi uma experiência grandiosa… Não é algo tão besta quanto querem uns acreditar. Pelo menos, não foi para mim. Na tarde em que o vi face a face pela primeira vez, senti o mundo girar sob os meus pés. Parece, de repente, que nunca mais seremos os mesmos, que algo foi alterado pra sempre: é que alguém que não havia, agora há. Uma mágica tão contundente quanto aquela outra, só que inversa: alguém que havia, já não há mais.
Fico pensando que estou sempre no lugar e na hora errada. Como se o tempo brincasse comigo, como se a vida fosse acontecer a cada segundo, mas sempre acontecesse um adiamento, como se alguém lá em cima estivesse sem ter o que fazer e resolveu testar a minha paciência, cruelmente…
Fico pensando que estou sempre no lugar e na hora errada. Como se o tempo brincasse comigo, como se a vida fosse acontecer a cada segundo, mas sempre acontecesse um adiamento, como se alguém lá em cima estivesse sem ter o que fazer e resolveu testar a minha paciência, cruelmente…

terça-feira, 7 de outubro de 2014

Você sai da reunião mais cansado do que quando entrou.
Era um piano antes. Agora são dois e um pianista gordo montado em cima.
Doem suas costas. E sua cabeça gira em muitas dimensões,
Noutras direções,
Tateando palavras, juntando cacos que façam algum sentido.
Miranda, a majestade de cultura pífia, como tantas outras majestades,
Manda que todos se calem para que possa desfilar seu poderzinho tacanho.
Você desvia o olhar para a janela de vidro baço.
Mantém lá fora, o quanto pode, o seu olhar, seus pensamentos seus sonhos.
Aqui tudo isso vale nadas.
Percebe no fim de tarde, quase noite,
A tempestade evoluir num cinzento céu de setembro.
Enquanto se avoluma a cauda do piano
E o gordo pianista cria árias
Em acordes desarmônicos.


sexta-feira, 3 de outubro de 2014

… para não dormir na soparia.

Ana Paula Sá

Era só uma garoa quando eu voltava pra casa depois da labuta, as ruas já desertas, e eu pensava quanto tempo se passou desde a última garoa que eu tomei por estas mesmas ruas, e avaliava a diferença entre a chuva no interior e a chuva na capital (meu pragmatismo sem fim).
Chuva no interior não abala o mundo, não instala o caos no trânsito, não traz a garantia do banho arremessado pelos pneus. Chuva no interior aumenta a solidão das ruas e a gente consegue ver as sombras brincando nas poças, de repente preenchendo os espaços, agora mais ocupados que antes. Chuva no interior traz essa felicidade suprema da água que cai milagrosamente dos céus, que lava o chão, os telhados, as árvores, que traz uma correnteza pelas ladeiras de poeira seca.
E enquanto eu jantava, a chuva virou temporal. A amiga ligou para dizer que não ia sair de casa para dar aula, porque tava difícil sair, e eu achei exagero. A criança gritou porque o guarda-chuvas caiu (pena que não guarda mesmo). Eu olhei pro poste e sorri. Torci para que não passasse mesmo e espantesse o político que insiste no comício farsesco (me permitam o termo). E ouvi que no sertão chove assim por estes dias. (Que maravilha!). E ouvi a ligação: "põe os baldes nas pingueiras para recolher água e lavar os cabelos", porque esta água é melhor. E eu que negava a dica materna de lavar os cabelos com água mineral, rejeitei o presente do botijão de água para este fim específico, por convicção humanitária diante do absurdo crime, acreditei na senhora a minha frente, feliz por novas águas para o cabelo, para a cabeça, para a alma.
Vim pelas ruas… (para casa) dois quarteirões apenas. Cabelos em bicas, calçados assobiando águas, casaco protegendo metade do corpo. Alma inundada. Alegria e prece, para que estas águas lavem os caminhos, as vidas, as esperanças. Levem as tristezas, mazelas, amarguras, disputas. Fortaleça nossos espíritos e encham as cachoeiras dos sertões, para que eu possa novamente me inundar nas suas águas, fortalecer meu espírito.

quarta-feira, 1 de outubro de 2014

A pergunta que deve ser feita hoje (e que efetivamente faço) é: por que é que há tanta gente DESONESTA? Por que é que a probidade, a honradez, o decoro, andam tão capengas e fora de moda? E não é só na política, não. Infelizmente. As diversas searas (Saaras?!) da vida social estão assoladas completamente pela falta de compreensão do espaço do outro, de respeito por este outro, de boa vontade para com a alteridade. E se alguém pode dar rasteiras, puxar tapetes, com carinhas de bom moço, dificilmente não o fará. Claro que não são todos (graças aos céus!).  Mas tem gente que virou professor da Universidade por conchavo, por safadeza, por afinidades eletivas (afetivas) mais que por real mérito (alias tem tanta gente sem mérito nestas instituições de ensino que nem vale a pena ficar falando nisso). Tem tanto policial que se entende acima de qualquer direito de quase todo cidadão que lhe passa na frente, que é de dar nojo. Tão bom que fossem multados os senhores policias que estacionam em lugares proibidos. (Não entendem que o “proibido” é para qualquer um, inclusive para eles mesmos, os representantes da Lei?) Há tantos artista que são “geniais” e as suas “genialidades” lhes dão, acreditam, poderes de passar por cima de qualquer um reles mortal. Há tantos juízes, que pelo amor de Deus! Sim, há tantos outros que por qualquer patente baixa se lança nos picos do manda-manda. Vocês têm ideia de quanta gente F-D-P te sorri e o sorriso é só uma forma de disfarçar o mal caráter, de dar boa aparência ao esgoto que lhes vai por dentro? Sim, devem estar pensando: “Que cara mais casmurro!”. Casmurro não. Cheio. Perdoe-me. É que ando de fato muito cheio de muita coisa e de muita gente (que nem gente mesmo de verdade é).


domingo, 28 de setembro de 2014


“Isto tem a ver com minha infância parisiense, as idas e vindas entre o subúrbio onde habitavam meus pais e o colégio do nono distrito no qual, no começo dos anos 1930, eu fazia meus estudos secundários. Nessa época, as ruas de Paris eram animadas por numerosos cantores de rua. Eu adorava ouvi-los: tinha meus cantos preferidos, como a rua do Fauborg Montmartre, a rua Saint-Denis, meu bairro de estudante pobre. Ora, o que percebíamos dessas canções? Éramos quinze ou vinte troca-pernas em trupe ao redor de um cantor. Ouvia-se uma ária, melodia muito simples, para que na última copla pudéssemos retomá-la em coro. Havia um texto, em geral muito fácil, que se podia comprar por alguns trocados, impresso grosseiramente em folhas volantes. Além disso, havia o jogo. O que nos havia atraído era o espetáculo. Um espetáculo que me prendia, apesar da hora de meu trem que avançava e me fazia correr em seguida até a Estação do Norte.
Havia o homem, o camelô, sua parlapatice, porque ele vendia as canções, apregoava e passava o chapéu; as folhas volantes em bagunça num guarda-chuva emborcado na beira da calçada. Havia o grupo, o riso das meninas, sobretudo no fim da tarde, na hora em que as vendedoras saíam de suas lojas, a rua em volta, os barulhos do mundo e, por cima, o céu de Paris que, no começo do inverno, sob as nuvens de neve, se tornava violeta. Mais ou menos tudo isto fazia parte da canção. ERA A CANÇÃO”.

Paul Zumthor

quinta-feira, 25 de setembro de 2014

Pensei em botar internet em minha casa. Mas se botasse não dormiria mais. Passaria a noite escrevendo bobagens. Prefiro ler. Isso me fez lembrar o Luiz Mauricio Carvalheira que ao invés de comprar uma TV, comprou foi uma rede, por que além de útil era ócio. 

A Queda de ÍCaro - René Milot


Visitei minhas avós. 94 anos cada uma. A preta e a branca.
Cansadas de guerra, se queixam das dores que a vida longa lhes trouxe.
Choro quando lembro de que um dia correram atrás de mim, me deram colo e castigo.
A preta era um consolo no sítio sem luz. A gente ficava ouvindo rádionovela quando o candeeiro se apagava. Uma noite o meu dente danou-se a doer e a pobre varou a noite me ajudando no que podia. Nas minhas férias voltava a Aldeia, para o sítio dela, e o mês voava ligeiro, num instante estávamos no fim e tinha de voltar para casa, o que nem sempre me era feliz.
A branca uma vez me deu uma baita surra por que eu perturbava até a criatura pedir clemência a Deus. E, por causa da pisa, levei um tempo odiando estar na sua presença.
Mas ambas são sagradas para mim e imagino que não durarão tanto mais, tendo em vista a idade adiantada (embora eu mesmo possa deitar antes delas em terra fria).
O meu ex-sogro (pelo menos eu o tinha como um sogro, mesmo sendo apenas avô da minha ex-mulher) morreu com 106 anos. Adorava tomar um vinho tinto antes do almoço na sua taça de cristal. Era uma pessoa altamente elegante. Anos atrás, quando ainda era casado, encontrei Pedrinho chorando no quarto escuro, pouco antes de cair no sono.
- Que foi, meu filho?
- Saudades de vovô.
- Eu também, amor, sinto saudades dele.
Olhando as fotos da flor de Rita, torço para que ela tenha vida longa e cheia de alegrias. Por que no final é isso o que temos: momentos. Que seja, cada um deles, uma celebração à vida.
- Pai, quando eu tiver morando em Paris você vem morar comigo?
- Se puder, vou. Se não, prometo uma visita por ano.
- Tá. E o que é que se faz em Paris?
- Se vai a Museus, galerias...
- Se vai a Torre Eiffel...
- Se toma um café no Boulevard...
- E a Torre Eiffel?!
- Se pode ir ao Louvre, andar de barco, comer croissant...
- E a Torre?
- Sim, tem a Torre Eiffel, a gente pode subir e fotografar a cidade lá de cima...
- E se pode subir na Torre?
- Pode. Tem elevador pra isso.
- Puxa! Que massa!
(Dante. Sobre descobrir uma coisa boa e diferente todos os dias!)
A gente dá os primeiros passos e nem saber onde vai chegar.
E encontra pelo caminho gente que vale à pena e gente que nem gente é. Só parece.
E, por outro lado, faz amigos. 
Um dia Leo foi comigo vender picolé na praia de Boa Viagem. Revezávamos a caixa de isopor.
Passamos o dia por ali. Do Othon Palace até Candeias, uma tirada. 
Fim de tarde. Céu azulzíssimo, sentamos para ver o pôr-de-sol de trombetas, como dizia a Emília, as nuvens tingidas de laranja.
Foi quando percebi que Leo não ia bem.
Tinha brigado com o pai, briga feia, tudo entalado na garganta, um nó. Quis não chorar, fez força para não. Mas em meio aos barulhos das ondas, não suportou os pesos. Falou pouco, mas falou até que o nó cresceu mais um tanto e ele não pôde manter a segurança das palavras. Aí chorou mais e correu e se meteu no meio de uma das ondas. Sarar sal com sal.
Pensei que nunca também eu tinha me dado bem com o meu pai.
Penso que brigar com os pais numa certa idade é bem mais penoso que em outras.
Eu desviei o olhar e espiei pro alto. Lá em cima tudo belo, como antes.
E voltar para casa naquela tarde (quase noite) foi de um silêncio atroz

quarta-feira, 24 de setembro de 2014

Fui chamado para na próxima semana conversar sobre Poesia com um grupo de dança de Recife. Muito honrado!
Mas o convite me deixa ao mesmo tempo um tanto quanto fora de mim. De que poesia falar exatamente? E o que mesmo temos por poesia?
Sim, há a poesia da palavra (fazer rimas não é a mesma coisa que fazer poemas, lembrem), mas ela também se verifica, se prontifica, se exprime em outros suportes, em outras dimensões, em outras artes.
Uma fotografia de Steve McCurry não é um poema?
Por falar em fotografia poetizada, seria ela mesma a poesia ou serviria apensa de suporte? Ou será que o suporte é a poesia encarnada?
A dança, um movimento, uma respiração não é um poema?
E a música (Deus, a música!); e uma escultura de Michelângelo (mesmo inacabada) não seria poesia? E um quadro de Dali? Ou de Pollock? Ou de Van Gogh?
 “O Intendente Sansho” é poesia. “A Grande Beleza” é poesia. Quer mais poesia do que a gente pode beber em “Leolo”? E o novo filme do Camilo Cavalcante (vi somente o teaser, por enquanto) parece que é poesia do começo ao fim.

Pois é, temos o que ver e o que pensar.
"Ver Odilia Nunes narrar a história de sua Bandeira me faz novamente molhar os olhos, escorrer o nariz, doer o peito, como foi no domingo passado, ouvindo Em Canto e Poesia, aumentando mais a saudade do sertão, da casa, do chão que me diz quem sou.
Ouvindo Em Canto e Poesia e agora vendo Odília, ao som de um coro ensaiando na mesma sala que eu, penso na razão da arte na vida de algumas pessoas, ou na falta de racionalidade a algo que é tão visceral, e parece ser tão claro isso, como diz meu amigo criativo… por que será que ninguém vê?

A verdade na obra é algo tão sublime e desestabilizador, uma pancada, uma falta de ar, um bolo que você precisa vomitar e fica entalado te fazendo sofrer, uma urgência.
Diante disso, as racionalidades certamente viram loucura extrema. Correr, cumprir, dar conta, atestar resultados, quantificar qualidades imensuráveis, averiguar conhecimentos… essa bur(r)ocracia paranóica que nos arrasta e convence a enquadrarmos nossos espíritos, criatividades, crenças, vidas e no fim não dizem quase nada de nossa humanidade.
Ser tocada por obras assim é algo que me causa vontade de rasgar a pele e sair levada pelo vento. É algo que me estapeia e me mostra quão louca posso estar, acreditando na ilusão cotidiana, e o quanto essa necessidade do sublime não pode ser ignorada.
É por isso que eu vivo arte."
Ana Paula Sá