domingo, 29 de maio de 2011

O Amor Acaba


O amor acaba. Numa esquina, por exemplo, num domingo de lua nova, depois de teatro e silêncio; acaba em cafés engordurados, diferentes dos parques de ouro onde começou a pulsar; de repente, ao meio do cigarro que ele atira de raiva contra um automóvel ou que ela esmaga no cinzeiro repleto, polvilhando de cinzas o escarlate das unhas; na acidez da aurora tropical, depois duma noite votada à alegria póstuma, que não veio; e acaba o amor no desenlace das mãos no cinema, como tentáculos saciados, e elas se movimentam no escuro como dois polvos de solidão; como se as mãos soubessem antes que o amor tinha acabado; na insônia dos braços luminosos do relógio; e acaba o amor nas sorveterias diante do colorido iceberg, entre frisos de alumínio e espelhos monótonos; e no olhar do cavaleiro errante que passou pela pensão; às vezes acaba o amor nos braços torturados de Jesus, filho crucificado de todas as mulheres; mecanicamente, no elevador, como se lhe faltasse energia; no andar diferente da irmã dentro de casa o amor pode acabar; na epifania da pretensão ridícula dos bigodes; nas ligas, nas cintas, nos brincos e nas silabadas femininas; quando a alma se habitua às províncias empoeiradas da Ásia, onde o amor pode ser outra coisa, o amor pode acabar; na compulsão da simplicidade simplesmente; no sábado, depois de três goles mornos de gim à beira da piscina; no filho tantas vezes semeado, às vezes vingado por alguns dias, mas que não floresceu, abrindo parágrafos de ódio inexplicável entre o pólen e o gineceu de duas flores; em apartamentos refrigerados, atapetados, aturdidos de delicadezas, onde há mais encanto que desejo; e o amor acaba na poeira que vertem os crepúsculos, caindo imperceptível no beijo de ir e vir; em salas esmaltadas com sangue, suor e desespero; nos roteiros do tédio para o tédio, na barca, no trem, no ônibus, ida e volta de nada para nada; em cavernas de sala e quarto conjugados o amor se eriça e acaba; no inferno o amor não começa; na usura o amor se dissolve; em Brasília o amor pode virar pó; no Rio, frivolidade; em Belo Horizonte, remorso; em São Paulo, dinheiro; uma carta que chegou depois, o amor acaba; uma carta que chegou antes, e o amor acaba; na descontrolada fantasia da libido; às vezes acaba na mesma música que começou, com o mesmo drinque, diante dos mesmos cisnes; e muitas vezes acaba em ouro e diamante, dispersado entre astros; e acaba nas encruzilhadas de Paris, Londres, Nova York; no coração que se dilata e quebra, e o médico sentencia imprestável para o amor; e acaba no longo périplo, tocando em todos os portos, até se desfazer em mares gelados; e acaba depois que se viu a bruma que veste o mundo; na janela que se abre, na janela que se fecha; às vezes não acaba e é simplesmente esquecido como um espelho de bolsa, que continua reverberando sem razão até que alguém, humilde, o carregue consigo; às vezes o amor acaba como se fora melhor nunca ter existido; mas pode acabar com doçura e esperança; uma palavra, muda ou articulada, e acaba o amor; na verdade; o álcool; de manhã, de tarde, de noite; na floração excessiva da primavera; no abuso do verão; na dissonância do outono; no conforto do inverno; em todos os lugares o amor acaba; a qualquer hora o amor acaba; por qualquer motivo o amor acaba; para recomeçar em todos os lugares e a qualquer minuto o amor acaba.

Paulo Mendes Campos

segunda-feira, 23 de maio de 2011

Os Poemas

Os poemas são pássaros que chegam
não se sabe de onde e pousam
no livro que lês.
Quando fechas o livro, eles alçam vôo
como de um alçapão.
Eles não têm pouso
nem porto;
alimentam-se um instante em cada
par de mãos e partem.
E olhas, então, essas tuas mãos vazias,
no maravilhado espanto de saberes
que o alimento deles já estava em ti...

Mario Quintana - Esconderijos do Tempo

Projeto de Prefácio

Sábias agudezas... refinamentos...
- não!
Nada disso encontrarás aqui.
Um poema não é para te distraíres
como com essas imagens mutantes de caleidoscópios.
Um poema não é quando te deténs para apreciar um detalhe
Um poema não é também quando paras no fim,
porque um verdadeiro poema continua sempre...
Um poema que não te ajude a viver e não saiba preparar-te para a morte
não tem sentido: é um pobre chocalho de palavras.

Mario Quintana

sábado, 21 de maio de 2011

Carlitos

Estava revendo “O Garoto”, de Chaplin. Que alegria reencontrar quem nos faz bem! Meu primeiro encontro com Carlitos, lembro, foi quando eu tinha 08 ou 09 anos, num festival domingueiro, no comecinho dos anos 80, pela TV Globo (fazia pouco que Chaplin havia morrido, numa noite de natal, em 1977). Inesquecível!
“O Garoto” foi rodado em 1921. Daqui há pouco, um século. Resolvi testá-lo com o0s meus pequenos. Ainda agradaria às crianças 3D de hoje? Qual não foi a surpresa ao constatar que o que é para sempre para sempre é. As crianças ficaram tão felizes com a descoberta que queriam que o tema de aniversário deles fosse o Carlitos. Não é fantástico? Pena é a TV aberta não voltar a exibir um festival Charlie Chaplin, nem que fossem apenas os curtas, bem menos conhecidos do grande público.

terça-feira, 17 de maio de 2011

Lucelena Sem Pitoca

Era cor de manteiga a porta de madeira pesada, rude que nem as almas dos que lá viviam, gastada de muito inverno e verão, em duas partes composta. E era laranja madura o sol manhecente tingindo as campinas, cinzentas no longe. Fazia friagem naquela manhã, um mundaréu de neblina, quando o menino abriu a parte de cima da porta, para espiar o mundo nascer do escuro, lerdo, sem pressa, mofino. Na casa só três estavam acesos já, desde cedinho: ele, a mãe e a avó. O café de pilão flutuava um aroma bom na cozinha velha de picumã cacheada. De olhos postos no fora, ele olhou pro alto, pro céu de mingau, e reparou sem espanto que logo “vai garoar!”. Garoou-se. Envelopado como estava num lençol de retalhos, correu pra junto da lenha do fogo, pra perto das brasas, e aqueceu pés e mãos... ô, frio danado de grande! “Bota a sandália nos pé, Fulaninho!”, ralhou a avó catando de já o feijão do almoço, ainda na luz da candeia. “O cuscuz já já sai”, pensava. Escutou o pai pigarrento, um gôgo sem fim, que nem bicho na rede da camarinha, rodeado de muriçoca. Dava pra ouvir os rangidos e os tossidos dali donde estava, uma tosse nojenta por cima da cumeeira. O galo inventou, meio sem convicção, de um pronto de cantar sem fé, feito os passarim nas copas saudando sem muita festa o dia tristonho. Dentro, afora os ralhos da avó mandando o menino calçar sandália, por um tempo comprido mais nada se ouviu, nada se disse, só o silêncio falava, o resto calado ficou. Eles eram desses de laia muda, que nem de dor xingava o azar de chutar por acaso pedra na estrada. Desde miúdos que tinham aprendido a poupar as palavras, a viver de silêncios, ilhados cada um na sua vida. Costumavam dizer “Para entendedor bom poucas bastam”, quando as conversas iam se espichando nas visitas poucas, quase nenhuma, que quando em vez recebiam. Os olhos falavam mais que a boca e calar era a lei.
Mas o que acontece é que, querendo ou não, como disse lá no alto, ele era um menino e portanto afeito à descumprir os acordados, não tanto por mal, por desacato, mas tão-somente por que dentro bem dentro, no escuro do silêncio de seu coração, vivia escondida, fingida de muda uma cascata de perguntas sem fim que não cessava de cair, de despencar em largas águas, em seu juízo, um num sei quanto de curiosidade ante os mistérios que via no mundo. As coisas eram enigma e inquietude o tempo todo. Ele pensava e pensava e mais que pensava, e tinha vontade de falar, mas receava as broncas, os cascudos, os ralhos, as caras feias. Mas tem hora que, num se sabe o porquê, a gente num agüenta a pressão da cascata e o medo fica menor que o desejo de falar.
- Ô mãe, posso perguntar uma coisa?
A mãe ocupada estava, ocupada continuou a fritar ovos e ferver leite para ajuntar ao cuscuz, conforme fosse o gosto de cada um.
- Ô mainha...?
- Hum?!
- Posso perguntar?
- Pode calar a boca!
Tempo.
- Vó?
- Hum?
- Ô Vó?
- Hum?
- Posso perguntar uma coisa?
Ocupada estava, ocupada continuou, a velha, a sua lida de catar feijão no tampo da mesa. E sem despregar olho dos grãos ruminou numa voz de pouca altura:
- O que era?
- Tô intrigado...
- Com quê?
- Umas coisa.
Tempo.
- Tô intrigado, voinha, com umas coisa!
Tempo.
- Voinha?
- Avante, menino! Eu já ouvi. Com quê tá intrigado?
- A pitoca da gente cai?
- Comé?
- A minha pitoca vai cair quando eu crescer?
- Que história é essa, Fulaninho?
- Menino, isso é coisa de se perguntar pra avó?
- Oxe! Mas eu num perguntei se podia perguntar?
- Mas justo sem-vergonhice? Dê-se o respeito, rapá!
- Desculpa, vó!, já choroso.
- Deixa, Maria, deixa que eu respondo ao inocente!
- Mas dona Quitéria!
A avó chamou o menino pra junto dela. Sentou-o no colo.
- Meu amor, porque a pergunta descabida?
- É que eu fiquei com medo, vó. Tanto medo que até sonhei!
- Medo de quê?
- Dela cair de tão dura que fica às vez!
- Fulaninho!
- E eu queria saber somente se a pitoca da gente cai e a gente fica assim que nem a Lucelena.
- Oxente, menino! E como é que você sabe que Lucelena num tem pitoca?
- Ela tava ontem tomando banho sem cuidado na beira do rio e eu espiei por riba da moita. A pitoca minha deu um pulo e empinou para riba, mais dura que o cacete de vovô Neoleo, pensei que fosse cair fora...
- Passa já por quarto antes que eu te mate, menino!
- Mas mãe!
- PASSA!
E ele voou dali chorando, de volta ao ventre da rede, antes do cuscuz sair do fogo.
- Menino tem cada uma, né?! Deus do céu, tende piedade!
E voltou o silêncio a reinar na casa velha por uns tempos mais.
A avó no seu canto se riu baixinho, discreta, sem alarde, por dentro, para nem dar asa ao neto ferido na ignorancia e nem lenha ao enfezamento da mãe bronca.

domingo, 15 de maio de 2011

...

Falta vinho e boa companhia na noite insone.
No quarto fechado, tu ouves Patti Smith
E folheias Shakespeare,
Trechos ligeiros de “Romeu e Julieta”.
Engraçado! Como faz alegre à gente um genuino amor,
Mesmo que de ficção,
Feito com maestria de palavras, palavras, palavras!
É aí então que te dá esta vontade repentina de acender a luz,
sentar e escrever;
de também tu, mais modestamente, tecer textos para todos e ninguém!
Podes assim voltar à cama e adormecer feliz,
Sem vinhos e companhias outras
Além de tu e teus imtempestivos fantasmas!

segunda-feira, 9 de maio de 2011

TV

Outro dia estava conversando aqui sobre as redes de televisão, o quanto são ruins as programações e tudo. Ontem eu e alguns amigos mais velhos estávamos a nos lembrar de bons programas vigentes na TV no fim dos anos 70 e até meados da década de 80. Saudosismo? E daí? Não vou negar: faz falta a Vila Sésamo, a TV Criança, o Daniel Azulay, Tio Maneco, Bazzar Tem Tudo, Sitio do Pica-Pau Amarelo, o Balão Mágico, Os Muppets... ou não faz? E os desenhos (Tartaruga Touche, Zé Colmeia, Scoobe Doo, Pepe Legal, Coelho Ricochete, Carangos e Motocas, A Formiga e o Tamanduá, a linha, Zé Buscapé, a Pantera Cor-de-Rosa, a Cobrinha Azul, Ligeirinho, Wally Gator, Esquilo Sem Grilo, Shazan, Pinoquio, Familia Muzzarela, Grande Polegar, Toro e Pancho, Mightor, Marco, Mandachuva, Magilla, Lippy e Hardy, Leão da Montanha, King Kong, Jonny Quest, Jambo e Ruivão, É o Lobo, Dogtanham, Mister Magoo e os Smurfes), não fazem falta?
Para quem não conhece certamente, não. Mas quem presenciou uma televisão para crianças com qualidade, com certeza deve se ressentir pelo que é oferecido hoje à infância, em termos de qualidade. Ou não?

quinta-feira, 5 de maio de 2011

A Paleta do Mundo


Diderot explicou uma vez a Catarina II que, antes de resolver escrever um livro, perguntava a si mesmo se seria a pessoa mais indicada para fazê-lo. ‘Examino, primeiro, se a obra pode ser mais bem feita por mim do que por outra pessoa, e faço-a. Se tiver a mínima desconfiança de que pode ser mais bem feita por outro do que por mim, qualquer que seja a vantagem que ela me traga, remeto-lha, pois o ponto importante não é fazer eu a obra, mas que ela se faça.’
Não há conselho mais honesto, mais sensato, mais útil, nem sequer mais amável, pelo que nos faz docemente esperar que alguns dos que escrevem hoje esses livros e livros que só um doloroso e indeclinável dever nos faz ler até ao fim, venham um dia a aceitá-lo...
“O ponto importante não é fazer eu a obra, mas que ela se faça”.

Mário Dionísio em “A Paleta e o Mundo”.

quarta-feira, 4 de maio de 2011

REDES

Há quinze anos, perguntaram ao Luiz Mauricio Carvalheira porque ele não tinha televisão em casa. Eu estava presente na sala e lembro de que a resposta foi algo como: “Prefiro comprar uma rede, aonde lerei meus livros”.
Eu também, seu Luiz, ando alienado, como dizem por ai. Não leio jornais, noticiários, rádios, revistas... Do mundo, poucas notícias só, um quase nada. Abisma-me tanta coisa ruim, tanta maldade, tanta judiação, embora saiba na idéia que é necessário saber delas todas, tentar compreender a essência do Mal, tentar empreender uma luta contra, formar grupos de apoio e resistência a isso e aquilo, mas que posso fazer se nada disso no coração me apetece? Talvez com uma televisão paga, via satélite ou a cabo, pudesse voltar a me seduzir, mas a televisão aberta tal qual hoje temos (salvo uma ou outra exceção) é de uma lástima sem tamanho. Então tranquilamente me detenho no que acho mais essencial.

Não deixo de ir ao cinema e ao teatro, duas de minhas paixões inomináveis. E comprei já uma rede, aonde entro, espreguiço, leio e sonho.
Às vezes me acomete uma vontade engraçada de escrever. Noutras, me vem melodia e entabulo uma canção, mas por ora não sinto falta de mais nada.