quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013


“O sabor da existência é o do tempo que passa e muda, do não-fixo, do jamais certo nem acabado; aliás, a melhor e mais certa ‘permanência’ da vida consiste nessa mobilidade. Ter gosto por isso implica, necessariamente, se ficar alegre, precisamente, com o fato de ela ser por essência, indistintamente, perecível e renovável, e de modo algum deplorar uma ausência de estabilidade e de perenidade. O charme do outono, por exemplo, se deve ao fato de ele ser outono do que ao fato de ele modificar o verão antes de ser, por sua vez, modificado pelo inverno; e seu ser próprio consiste, justamente, nessa modificação que ele opera.”

Clement Rosset

O Segredo da Arca

Há muito muito tempo, mas parece que foi ontem, eu concluía o Curso Regular de Teatro do SESC Santo Amaro. O espetáculo era “O Segredo da Arca de Trancoso”, texto e direção de Luís Felipe Botelho. Na época não sabíamos para onde nos levaria o destino. Cada um foi para um lado e há gente que não sei mesmo o que anda a fazer da vida. Eu fazia o menino e era um desafio e um prazer estar a serviço das imagens e das palavras. Hoje fiquei alegre por saber que os bons ventos levaram o texto para as mãos de João Mota, para as bandas de Lisboa. Vida longa ao que é bom, entrete, enternece e faz refletir.


sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

“Assim Falava Zaratustra”


“E Zaratustra parou e pensou.
Finalmente, disse, entristecido: ‘TUDO ficou menor!’
Em todos os lugares, vejo portões mais baixos:
quem é do MEU porte provavelmente ainda
consegue passar, mas – terá de se curvar!
... Ando por entre esse povo mantendo os olhos
abertos: eles se tornaram MENORES e ficam cada
vez menores: - NISSO, CONTUDO, CONSISTE SUA
CONCEPÇÃO DE FELICIDADE E VIRTUDE.
... Alguns deles querem; quanto à maioria,
porém, outros querem por eles...
... São redondos, corretos e bons uns com os
outros, assim como grãos de areia são redondos,
corretos e bons com grãos de areia.
Abraçar modestamente uma pequena felicidade
– a isso chamam ‘resignação!’...
Querem no fundo ingenuamente uma coisa
acima de tudo: que ninguém lhes faça mal...
A virtude é para eles aquilo que torna modesto
e domesticado: com ela fazem do lobo um cão,
e dos próprios homens os melhores animais
domésticos para os homens”.


FRIEDRICH NIETZSCHE

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

Eron Villar não é somente um diretor de teatro e um exímio iluminador. É uma pessoa de coração bom e alma leve. Atrás da cara feia do adulto severo, uma sensibilidade capaz de chorar com o banal cotidiano. É daqueles que sempre souberam dar bom dia, mesmo sabendo que o dia não seria assim tão bom. Lembro dele em momentos difíceis, prestando serviço ao setor público e tendo que enfrentar os mil demônios do inferno, sem perder a graça e a generosidade: desde cuidar de cortejos de cultura popular a subir em palcos para assegurar que o mínimo de decência fosse dado ao artista-cantor. Semana passada não é que ele lançou o seu primeiro livro de poemas, editado no longe, em Portugal? Fruto de anos de trabalho, um misto de alegrias e dores. Vale muito a pena lê-lo. O livro pode ser adquirido facilmente pelo site abaixo. Acessem e ajudem a divulgar mundo a fora.

http://poesiafaclube.com/store/eron-villar-lua-olhos-negros-e-serpentes

“É como se o tempo parasse
e secassem as lágrimas
e cegassem os olhos
e calasse a voz
e ecoasse o peito
e findasse o ar
e interrompesse o ciclo
dessa extinta infância
que viveu a ingênua criança
que um dia fui.”

Eron Villar

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

“Proust e Os Signos”

“Há signos que nos obrigam a pensar no tempo perdido, isto é, na passagem do tempo, na anulação do que passou e na alteração dos seres. Rever pessoas que nos foram muito familiares é uma revelação, porque seus rostos, não sendo mais habituais para nós, trazem em estado puro os signos e os efeitos do tempo, que modificou determinados traços, alongando-os, tornando outros flácidos ou vincados. O Tempo, para tornar-se visível, ‘vive à cata de corpos e, mal os encontra, logo deles se apodera, a fim de exibir a sua lanterna mágica’. No final da Recherche Proust (...) Ao invés de ver nisso o fim do mundo, compreende que o mundo que havia conhecido e amado era em si mesmo alteração e mudança, signo de um Tempo perdido (até mesmo dos Guermantes nada permaneceu além do sobrenome). Proust não concebe absolutamente a mudança como uma duração bergsoniana, mas como uma defecção, uma corrida para o túmulo.”

Deleuze

EPIFANIAS, de Joyce

"Certa vez, Joyce olhou pela janela de seu apartamento e viu uma mulher no edifício ao lado puxando a corrente de descarga da privada. Para ele, essa cena aparentemente banal continha fortes implicações eróticas. Essa teria sido uma das muitas epifanias profanas de Joyce. Richard Ellmann lembra que um dos divertimentos favoritos do escritor era destruir velhas coisas solenes. Num determinado momento, o escritor irlandês ficou “contente por encontrar valor no que se esperava que ele condenasse como comum e vulgar”. Era assim que ele reinventava o mundo.

Joyce teria “encorajado” Leopold Bloom (Ulisses) – só para mencionar seu mais célebre personagem – a infundir singularidade às coisas comuns. Como afirma Ellmann, “Bloom difere dos dublinenses menos importantes porque sua poesia interna é contínua, até nas situações menos promissoras”. Em Joyce, não há mais uma prosa, um dizer narrativo típico, “mas sim um feixe de forças, do tracejado que compõe sua própria ausência”, diz Piero Eyben no prefácio de sua bela tradução das Epifanias.

Quando lemos Joyce, precisamos voltar nossos olhos para o instante da experiência que emerge graças a uma revelação interior abrupta. A epifania seria justamente essa súbita manifestação, esteja ela na vulgaridade da fala e do gesto ou em uma fase memorável da própria mente. Aliás, para Hélène Cixous, a epifania seria o “descarrilamento da consciência”. Joyce acreditava que cabia ao escritor “registrar essas epifanias com extremo cuidado, vendo que elas próprias são os mais delicados e evanescentes dos momentos”, como afirma Eyben. Sendo o maior desafio dessas curtas narrativas aliar a velocidade inesperada à já desgastada experiência do dia a dia.

Neste pequeno volume precioso, a tradução de Eyben leva a sério esse desafio."

Dirce Waltrick do Amarante

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

Um exercício pode levar ao entendimento do que Heidegger planejou para escapar da condição moderna e deteriorada em que estaríamos vivendo. Por exemplo, olhe você para determinada paisagem na sua janela e comece a descrever o que vê. Perceba que cada coisa que enuncia – prédio, carro, árvore, cachorro – não indica uma experiência sua com o que é enunciado, por sua deliberação. Perceba que cada palavra enunciada já estava dada antes, criada e estabelecida junto de toda uma rede de outras palavras; ou seja, tudo que você aprendeu como sendo uma semântica e uma sintaxe que dão o norte, o rumo, o conteúdo e tudo o mais do que pode fazer ao falar do que fala. Todavia, a paisagem e tudo nela podem deixar de serem percebidos como nomes dados por você, e podem aparecer como efetivamente são. Isso tudo é o que a linguagem diz; e a linguagem é essa rede anterior a você. Essa experiência fenomenológica pode ocorrer, se você ouvir a linguagem. É ela, a linguagem, que fala, e não você que fala com ela. Nela, na linguagem, há a experiência originária – mas não é a sua experiência se você não a escuta. Não é a experiência autêntica se você, em vez de escutar a linguagem, escuta apenas a você mesmo falando. Efetivamente, a experiência fenomenológica mostra que caímos nela, na linguagem, e ela fala por nossa boca. Não enxergamos nada do que pensamos que estamos enumerando e falando em uma descrição, pois o que efetivamente ocorre é a linguagem falando. Então, o melhor é prestar atenção nela e, com sorte, ouviremos o que é – o ser que se manifesta em sua morada, a linguagem. Olhamos para a janela, mas não vemos o que a ciência diz que vemos e o que imaginamos que seria uma experiência. Vemos a luz? Não! Vemos uma coisa. Mas que coisa? A ciência diz que é a luz, por meio de ondas, atinge a coisa e, então, pega nossa retina – e assim vemos a coisa que está diante de nós e emitimos um som com o qual damos nome àquela coisa. É isso? Nada disso. Não vemos a luz ou ondas. E a coisa que vemos só se delimita, só ganha contorno, só recebe algum significado por já estar prenhe de significado na teia da linguagem, e de modo algum fomos nós os autores do significado. Em uma experiência autêntica, para além do que a ciência ensina que é a experiência, vemos coisas que são o que são por estarem se manifestando como som emitido pelas palavras da linguagem; ou seja, ela própria, a linguagem, usando nossa boca, nos fala e fala para todos – nela, em sua rede, há o significado e, então, o som se faz som, palavra. Temos a capacidade de ouvi-la? Essa capacidade de ver o fenômeno da linguagem, nessa dimensão profunda que escapa do modo moderno de conversar (este que implica no sujeito-objeto e na representação) foi o método Heidegger. Foi isso que, em boa medida, ele propôs como filosofia.

Paulo Ghiraldelli Jr. São Paulo.

Há filmes que são somente filmes. Há outros que indescritivelmente são mais que isso. E não sei que nome lhes dar. São raros e de difíceis encontros. Mas nos deixam marcas indeléveis e permanecem muito tempo depois que terminam. Por isso é que não terminam. Ou terminam enquanto filme, ficando enquanto obra, enquanto sombra, enquanto eco, por dentro, remoendo, comovendo, inquirindo, desestabilizando, transtornando, remexendo por dias, por meses, quem sabe, por anos.
Ontem foi uma noite assim feliz. Para mim, para Lourencinho e para quem gosta de uma experiência em que a eternidade vem habitar o exíguo espaço de pouco mais de duas horas e meia de duração. Alguns podem taxá-lo de romântico em um sentido que não é o que se usa comumente, mas a obra é de uma pungência avassaladora e faz com que um instante se prolongue ad eternum em “corações efêmeros”.
Não deixem de ver.

Indicações ao Oscar 2013.
•    Melhor filme
•    Melhor ator (Hugh Jackman)
•    Melhor Atriz Coadjuvante (Anne Hathaway)
•    Melhor Canção original
•    Melhor maquiagem
•    Melhor figurino
•    Melhor direção de Arte
•    Melhor mixagem de som.

Mais que merecido.


terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

“A sociedade inteira está preparada para reagir ao que supõe comprometê-la. O que há em nós de prudente, de sensato, de calculista, de inconfessado gosto pelos invernos sossegados ao pé do lume, na doce confiança de um pequeno pecúlio depositado no mais seguro dos bancos, combate furiosamente, até não mais poder, o que há em nós de irrequieto, de generosa e criadora irreflexão, de audácia, de aventura, de inextinguível energia, para tudo recomeçar a toda a hora.”

Mário Dioniso em “A PALETA E O MUNDO”

sábado, 2 de fevereiro de 2013

“o objetivo da arte é dar a sensação do objeto como visão e não como reconhecimento; o procedimento da arte é o procedimento da singularização dos objetos e o procedimento consiste em obscurecer a forma, aumentar a dificuldade e a duração da percepção. O ato de percepção em arte é um fim em si mesmo e deve ser prolongado; a arte é um meio de experimentar o devir do objeto, o que é já ‘passado’ não importa para a arte.”

 V. Chklóvski, em A arte como procedimento.