terça-feira, 31 de janeiro de 2012

Michel Maffesoli: “A república dos bons sentimentos”


Como observou Chateaubriand, é comum chamar de conspiração política aquilo que na verdade é “o mal-estar de todos ou a luta da antiga sociedade contra a nova, o combate das velhas instituições decrépitas contra a energia das jovens gerações".

O momento atual é um desses em que jornalistas, universitários e políticos, em suma a intelligentsia, mostra-se em total falta de sintonia com a vitalidade popular.

Para entender melhor em que isso consiste, é preciso pôr em evidência a lógica do conformismo intelectual reinante.

Só quando não mais imperar o ronronar do “moralmente correto” é que será possível prestar atenção à verdadeira “voz do mundo”.

Este é um Maffesoli diferente, polêmico e que não receia ser, até mesmo, panfletário. Seu alvo é o pensamento conformado com as conquistas teóricas dos séculos passados que não mais servem para entender a época contemporânea. Discutindo com o Pensamento Oficial, Michel Maffesoli investe contra o politicamente correto, o moralmente correto e todas as formas do bem-pensar, isto é, contra as ideias feitas que se transmitem e se repetem acriticamente.

Mesmo que se discorde dele e ele investe aqui contra quase tudo, de modo incisivo–, este texto oferece-se como exercício para a razão e o espírito ao assumir a forma de uma variante do convite essencial feito por Wittgenstein: pensar sempre de outro modo, mudar sempre a perspectiva pela qual se vêem as coisas.

De fato, em particular no modo de pensar a cultura e a arte, mas não apenas nele, velhas ideias prevalecem intatas, sem pudor e sem que a maioria pareça dar-se conta da defasagem. Pensa-se e atua-se no século XXI como se ainda predominasse o cenário do XIX. Moralismos, comodismos intelectuais e dejetos ideológicos mal digeridos tolhem a visão do novo e produzem o exato oposto do que dizem defender. Na França, nos EUA e no Brasil como, um pouco, por toda parte. O resultado tem sido um já longo processo de domesticação da cultura e da arte. Um exemplo disso é, no Brasil, a busca de patrocínio mediante uma justificativa e um pretexto sociais retirados do universo dos bons sentimentos, mas que geram largas inconveniências societais, para usar o termo de Maffesoli, e um profundo mal-estar nessa mesma cultura e nessa mesma arte.

Reconhecer o novo e descobrir novas formas de pensá-lo e, se necessário, inventar novas formas de fazê-lo- é essencial sobretudo para os que pensam a ação cultural e se dedicam à difícil tarefa de definir políticas culturais. A questão básica aqui continua a ser aquela proposta por Montesquieu: ampliar a esfera de presença do ser, criar as condições para que todos e cada um ampliem a esfera de presença de seu ser como entendam fazê-lo e não como terceiros querem que o façam (quando e se de fato querem que se amplie a esfera de presença de seu ser…).

E fazê-lo implica pensar nas razões pelas quais jovens na periferia de Paris queimam carros ou nos motivos que levaram ao linchamento moral de Stockhausen após o atentado contra as Torres Gêmeas de Nova York ou por que e como Caetano e Gil e Torquato Neto e Tom Zé lançaram o Tropicalismo sob os totalitarismos brasileiros dos anos 60 (no plural porque eram mais de um: de um lado, o militar, de direita, com o poder verdadeiro de vida e de morte, e, de outro, a “patrulha ideológica”, de esquerda, com seu poder simbólico sobre a vida moral); e por que passaram pelo que passaram. E implica em pensar nas novas formas de propor e desfrutar da cultura e da arte que estão sempre surgindo.

Assim polemizando com os defensores de uma modernidade a esta altura acrítica e que insiste em reapresentar-se sempre com as mesmas ideias velhas, Michel Maffesoli faz — aceitando a discussão aberta de princípios teóricos numa época em que isso é moeda rara –, um resumo atualizado de suas principais concepções sobre a contemporaneidade, expostas em diversos livros conhecidos do público brasileiro (como O tempo das tribos, A sombra de Dionisio, A parte do diabo – Resumo da subversão pós-moderna), anunciando o próximo desdobramento de seu modo de entender a cultura atual. E, sem dar receitas, apresenta, ao estudioso da cultura e da arte e aos que assumem responsabilidades na política cultural, uma proposta de reexame de princípios e metas, reexame que é sempre a condição para encontrar-se uma sintonia mais fina com a sensibilidade dos novos tempos.

Teixeira Coelho

quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

O Lutador



Lutar com palavras
é a luta mais vã.
Entanto lutamos
mal rompe a manhã.
São muitas, eu pouco.
Algumas, tão fortes
como o javali.
Não me julgo louco.
Se o fosse, teria
poder de encantá-las.
Mas lúcido e frio,
apareço e tento
apanhar algumas
para meu sustento
num dia de vida.
Deixam-se enlaçar,
tontas à carícia
e súbito fogem
e não há ameaça
e nem 3 há sevícia
que as traga de novo
ao centro da praça.

Insisto, solerte.
Busco persuadi-las.
Ser-lhes-ei escravo
de rara humildade.
Guardarei sigilo
de nosso comércio.
Na voz, nenhum travo
de zanga ou desgosto.
Sem me ouvir deslizam,
perpassam levíssimas
e viram-me o rosto.
Lutar com palavras
parece sem fruto.
Não têm carne e sangue…
Entretanto, luto.

Palavra, palavra
(digo exasperado),
se me desafias,
aceito o combate.
Quisera possuir-te
neste descampado,
sem roteiro de unha
ou marca de dente
nessa pele clara.
Preferes o amor
de uma posse impura
e que venha o gozo
da maior tortura.

Luto corpo a corpo,
luto todo o tempo,
sem maior proveito
que o da caça ao vento.
Não encontro vestes,
não seguro formas,
é fluido inimigo
que me dobra os músculos
e ri-se das normas
da boa peleja.

Iludo-me às vezes,
pressinto que a entrega
se consumará.
Já vejo palavras
em coro submisso,
esta me ofertando
seu velho calor,
aquela sua glória
feita de mistério,
outra seu desdém,
outra seu ciúme,
e um sapiente amor
me ensina a fruir
de cada palavra
a essência captada,
o sutil queixume.
Mas ai! é o instante
de entreabrir os olhos:
entre beijo e boca,
tudo se evapora.

O ciclo do dia
ora se conclui 8
e o inútil duelo
jamais se resolve.
O teu rosto belo,
ó palavra, esplende
na curva da noite
que toda me envolve.
Tamanha paixão
e nenhum pecúlio.
Cerradas as portas,
a luta prossegue
nas ruas do sono.

Carlos Drummond de Andrade



sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

Talambor

Na friez da manhã
Chuva de igarapé
Gosto bom de café
Fogo de forno à lenha
Um abraço apertado
Beijo de bem-me-quer

Primavera terçã
Coração de mulher
Salve-se quem puder
A cabrocha morena
cheiro de alfazema
filha de candomblé

Se é vermelho o aroma do bordô
Se há delícias no canto do aimoré
Se tem cor a paixão do beija-flor
Se há rasgos de Deus em um sem fé

POEMAS SÃO PALAVRAS DE FOGO, MEU AMOR
QUE RECORTAM A ALMA EM ESPIRAIS DE TEMPO
SÃO PÁSSAROS QUE POUSAM NO LIVRO, LINDA FLOR
BATEM ASAS E ABREM TALAMBOR POR DENTRO

quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

Vinho Barato

BEBO VINHO BARATO
SENTADO
NO BANCO GASTO DO METRÔ
INDIFERENTE ASSISTO
AOS HOMENS
E SUAS DORES
(E SUAS PROVAÇÕES)

Não é Shiraz nem é Verdot
Não é Merlot ou Sauvignon
Amargo pão de cada dia
Me diz pra quê um vinho bom

Enquanto aguardo o fim da linha
Um brinde seco ao Deus-Mercado
Suor e sangue sagrado
Mesa farta do patrão
Que a vindima seja leve
Aos que virão

Por entre os dedos
Escoa o tempo
Escorre a vida
E a juventude
Saúde a quem puder
Sonhar... Saúde

terça-feira, 3 de janeiro de 2012

MEDIANERAS

Montesquieu queria conhecer o mecanismo da estimulação do prazer estético. Via nele a manifestação mais completa da alma humana, a que ampliava a esfera de presença de seu ser. Isto pode ser acompanhado no livro “O GOSTO”, de sua autoria, com prefácio e tradução de Teixeira Coelho, publicado em 2005 pela Iluminuras. Sempre há um pouco de Montesquieu em minha cabeça quando me deparo com uma obra que me desconcerta, me desmonta, me comove.
No derradeiro dia do ano fui ver Almodovar. Desculpem aí quem caiu de quatro por "A Pele que Habito". Mas sinceramente não gosto. Podemos trocar ideias, caso alguém se dê ao trabalho. “Ué! E gosto se discute?” Sim, se discute. Estou aqui também para isso. O filme do espanhol é bem cuidado e tudo, mas é absolutamente tedioso. A mim não diz muito. "Ah! É por que é fora do comum!" Não, não é. Eu adoro filmes fora do comum. Que coisa mais descomunal que "Aurora", de Murneau?! Ou "Limite", de Mário Peixoto? Eu adoro! Não é nada disso. "Tudo sobre minha mãe", eu amo. Mas da “Pele que habito” sai bastante entediado (seria esta a palavra?).
Diferente de ontem, primeira incursão que fiz este ano a uma sala de projeção. Era um filme argentino e me descompensou e me fez pensar sobre a merda de tempo que vivemos e me emocionou e me trouxe muita alegria por ter estado lá e visto e presenciado aquela história lá. Delicado, trata dos encontros que dão sentido a este ato heróico que é insistir em existir, que é resistir. Chama-se “Medianeras”, de Gustavo Taretto. Um filme pungente sobre encontros e desencontros, desses que ampliam a esfera da presença de nosso ser no mundo e na vida. Vale à pena! Feliz ano novo a todos nós!