terça-feira, 28 de dezembro de 2010

2011


Está certo! Está certo! Eu sei que o subtítulo deste blog é “Escrever para não enlouquecer”. E também que faz já um tempo que nada posto. O que abre, no mínimo, duas possibilidades de interpretação: Teria eu finalmente me curado? Ou teria perdido de vez um juízo por si só dado à perdição? Quem sabe?
A verdade é que andei meio sumido mesmo, sem muita vontade, sem desejo, sem fome de escrever. Nestes últimos meses, um auto natalino e a produção de uma banda musical embaçaram as minhas vistas e arrefeceram um tanto a minha pena. Mas a vontade de ler, não. Permaneço fiel aos livros e às madrugadas. E tem vez que largo tudo para compor uma canção no meio da noite.
Costumeiramente não sou dado a fazer muitos planos, mas este fim de ano é um caso atípico. Ando a pensar em coisas como viajar mais, namorar mais, ler mais, desenhar, estudar mais, ir ao cinema (fazer cinema, talvez), estar mais proximo aos meus pequenos e não entrar tanto nos projetos dos outros, mas fazer com que alguns dos meus comecem a caminhar. Sei que parece coisa comum, mas é bom demais quando os sonhos saem das mãos da gente para o papel, e depois viram projetos e depois, realidade, não é não? Espero que seja assim: um ano cheio de realizações... digo, de boas realizações.
Feliz 2011 para todo o mundo!

segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

FeliZ AnO NovO De NovO


Novamente o velho que chega ao fim e o novo cheio de promessas.
De novo janeiro, fevereiro e março...
Mais uma vez Carnaval, Páscoa e São João...
Quantos projetos para 2010 você realizou?
Quantos planeja para 2011 que não são iguais aos que fez no fim de 2009?
Projetos são necessários, sim. Realizá-los, mais ainda.
Por que a vida passa e nada permanece igual ao que era antes.

terça-feira, 14 de dezembro de 2010

A Folha em Branco



Se Sherazade, ao invés de contadora de histórias fosse escritora, teria imaginado tantos contos, em tão curto espaço de tempo? Um conto por noite seria possível, se ao contrário de narrar, ela tivesse escrito? Quantas noites levaria refazendo cada uma das narrativas, procurando acessar o indizível por meio de palavras?
A folha em branco é um desafio permanente. Plena de possibilidades, rejeita a virgem brancura por que quer ser mais, quer marcas, traços, garatujas, impressões.
De olho fixo na página em branco, na sua alvura ímpar e provocadora, o desenhista e o pintor imaginam cores, linhas, desenhos, figuras e paisagens. No caso do escritor, ele também pensa em figuras e paisagens, que devem ser produzidos por meio do ajuntamento poético de letras, palavras, frases, parágrafos, páginas, episódios, capítulos, tomos, volumes.
O vazio da página inquire sobre o ser do escritor, sobre as suas impressões de mundo.
Escrever é de novo um recomeço. E no recomeço há essa indagação peremptória: O que há para se contar? No que pode ser isso melhorado? E isso requer refazer, burilar, lapidar, polir, melhorar, aperfeiçoar a textura do texto, o tecido da trama, o traço.
“Ao escrevermos”, disse Deleuze, “como evitar que escrevamos sobre aquilo que não sabemos ou que sabemos mal? É necessariamente neste ponto que imaginamos ter algo a dizer. Só escrevemos na extremidade de nosso próprio saber, nesta ponta extrema que separa nosso saber e nossa ignorância e que transforma um no outro”.

sábado, 4 de dezembro de 2010

TABACARIA

Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.

Janelas do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam?),
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
Com a morte a por umidade nas paredes e cabelos brancos nos homens,
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.

Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as coisas
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça,
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.

Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu.
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.

Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
A aprendizagem que me deram,
Desci dela pela janela das traseiras da casa.
Fui até ao campo com grandes propósitos.
Mas lá encontrei só ervas e árvores,
E quando havia gente era igual à outra.
Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei de pensar?

Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?
Ser o que penso? Mas penso tanta coisa!
E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!
Gênio? Neste momento
Cem mil cérebros se concebem em sonho gênios como eu,
E a história não marcará, quem sabe?, nem um,
Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.
Não, não creio em mim.
Em todos os manicômios há doidos malucos com tantas certezas!
Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?
Não, nem em mim...
Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo
Não estão nesta hora gênios-para-si-mesmos sonhando?
Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas -
Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas -,
E quem sabe se realizáveis,
Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente?
O mundo é para quem nasce para o conquistar
E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão.
Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.
Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo,
Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.
Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,
Ainda que não more nela;
Serei sempre o que não nasceu para isso;
Serei sempre só o que tinha qualidades;
Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta,
E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,
E ouviu a voz de Deus num poço tapado.
Crer em mim? Não, nem em nada.
Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente
O seu sol, a sua chava, o vento que me acha o cabelo,
E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha.
Escravos cardíacos das estrelas,
Conquistamos todo o mundo antes de nos levantar da cama;
Mas acordamos e ele é opaco,
Levantamo-nos e ele é alheio,
Saímos de casa e ele é a terra inteira,
Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido.

(Come chocolates, pequena;
Come chocolates!
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
Come, pequena suja, come!
Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!
Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de estanho,
Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)

Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei
A caligrafia rápida destes versos,
Pórtico partido para o Impossível.
Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas,
Nobre ao menos no gesto largo com que atiro
A roupa suja que sou, em rol, pra o decurso das coisas,
E fico em casa sem camisa.

(Tu que consolas, que não existes e por isso consolas,
Ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva,
Ou patrícia romana, impossivelmente nobre e nefasta,
Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida,
Ou marquesa do século dezoito, decotada e longínqua,
Ou cocote célebre do tempo dos nossos pais,
Ou não sei quê moderno - não concebo bem o quê -
Tudo isso, seja o que for, que sejas, se pode inspirar que inspire!
Meu coração é um balde despejado.
Como os que invocam espíritos invocam espíritos invoco
A mim mesmo e não encontro nada.
Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta.
Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam,
Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam,
Vejo os cães que também existem,
E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo,
E tudo isto é estrangeiro, como tudo.)

Vivi, estudei, amei e até cri,
E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.
Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira,
E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem cresses
(Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso);
Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo
E que é rabo para aquém do lagarto remexidamente

Fiz de mim o que não soube
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência
Por ser inofensivo
E vou escrever esta história para provar que sou sublime.

Essência musical dos meus versos inúteis,
Quem me dera encontrar-me como coisa que eu fizesse,
E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte,
Calcando aos pés a consciência de estar existindo,
Como um tapete em que um bêbado tropeça
Ou um capacho que os ciganos roubaram e não valia nada.

Mas o Dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta.
Olho-o com o deconforto da cabeça mal voltada
E com o desconforto da alma mal-entendendo.
Ele morrerá e eu morrerei.
Ele deixará a tabuleta, eu deixarei os versos.
A certa altura morrerá a tabuleta também, os versos também.
Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,
E a língua em que foram escritos os versos.
Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu.
Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente
Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas,


Sempre uma coisa defronte da outra,
Sempre uma coisa tão inútil como a outra,
Sempre o impossível tão estúpido como o real,
Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério da superfície,
Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra.

Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?)
E a realidade plausível cai de repente em cima de mim.
Semiergo-me enérgico, convencido, humano,
E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário.

Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los
E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos.
Sigo o fumo como uma rota própria,
E gozo, num momento sensitivo e competente,
A libertação de todas as especulações
E a consciência de que a metafísica é uma consequência de estar mal disposto.

Depois deito-me para trás na cadeira
E continuo fumando.
Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando.

(Se eu casasse com a filha da minha lavadeira
Talvez fosse feliz.)
Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou à janela.
O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?).
Ah, conheço-o; é o Esteves sem metafísica.
(O Dono da Tabacaria chegou à porta.)
Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.
Acenou-me adeus, gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo
Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o Dono da Tabacaria sorriu.

Álvaro de Campos, 15-1-1928

A RUA


Eu amo a rua. Esse sentimento de natureza toda íntima não vos seria revelado por mim se não julgasse, e razões não tivesse para julgar, que este amor assim absoluto e assim exagerado é partilhado por todos vós. Nós somos irmãos, nós nos sentimos parecidos e iguais; nas cidades, nas aldeias, nos povoados, não porque soframos, com a dor e os desprazeres, a lei e a polícia, mas porque nos une, nivela e agremia o amor da rua. É este mesmo o sentimento imperturbável e indissolúvel, o único que, como a própria vida, resiste às idades e às épocas. Tudo se transforma, tudo varia – o amor, o ódio, o egoísmo. Hoje é mais amargo o riso, mais dolorosa a ironia, Os séculos passam, deslizam, levando as coisas fúteis e os acontecimentos notáveis. Só persiste e fica, legado das gerações cada vez maior, o amor da rua.

João do Rio

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

RETORNO

Delicada flor de nuvens,
Castiçais de terracota,
Trançada rota no mapa,
Faça festa ao me avistar.

Volto a escrever idéias
Pênsil peso penso posso
Porca torta morta guia
Me envia o teu pulsar

Nasce fácil o que morre
Dissolvendo em vago olhar
Dilacera quem me esquece
Se fenece o seu amar.

Paciência, meu coração,
Para me ensinar o que eu não sei,
Por que aonde ainda não fui,
Quero chegar.

Nicolau

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

LISTA DE FILMES INTERNACIONAIS



Como falei outro dia, começamos, a namorada e eu, a fazer uma lista de prováveis filmes para vermos juntos, nas noites de domingo, balançando na rede. Divulgamos para que os amigos possam cooperar dando sugestões ou, caso lhes interessem, assistam estas obras com os seus pares.
Noutra ocasião, divulgo a lista de filmes nacionais.


1. O Marido da Cabeleireira
2. Uma Janela Para a Lua
3. Pão e Tulipas
4. O Carteiro e o Poeta
5. Contos da Lua Vaga
6. Um Beijo Roubado
7. Caráter
8. A Partida
9. Gritos e Sussurros
10. O Espírito da Colméia
11. Cinema Paradiso
12. E Nós Que Nos Amávamos Tanto
13. Estamos Todos Bem
14. Harry e Sally: Feitos Um Para o Outro
15. Dogville
16. Dançando no Escuro
17. Nostalghia
18. Antes Só Que Mal Acompanhado
19. O Bebê Santo de Macon
20. Nove e Meia Semanas de Amor
21. Tomates Verdes Fritos
22. O Baile
23. Um Estranho no Ninho
24. Meu Nome É Ninguém
25. Aurora
26. Brilho Eterno De Uma Mente Sem Lembranças

SHAMPOO




Hoje acordei pensando em você e
Nas coisas que me diz sem palavras.
Senti a cama já vazia, mas ainda quente,
Passeei com a mão leve sobre o lugar de seu descanso
E abracei um travesseiro perfumado de shampoo.

Preguicei até não mais poder,
Demorando a me pôr de pé.
Depois abri as janelas e
O sol veio tingindo as cortinas de loura cor.

Ducha fria,
Toalha xadrez na mesa de madeira,
Café quente e
Pão com manteiga.
Os olhos postos na cadeira deserta.

Na casa sozinha, só eu, um fantasma nu,
Ia caminhando à procura dos indícios
De que ali você estivera horas antes
E se fora sem alardes.

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

O SONHO


Não desças os degraus do sonho
para não despertar os monstros.

Não subas aos sótãos - onde os
deuses, por trás das suas máscaras,
ocultam o próprio enigma.

Não desças, não subas, fica...
O mistério está na tua vida!

E é um sonho louco este nosso mundo.
Se as coisas são inatingíveis...Ora!
Não é motivo para não querê-las...

Que tristes os caminhos, se não fora
a mágica presença das estrelas!

Tão bom viver dia - a - dia...
A vida assim jamais cansa

Viver tão só de momentos como estas
nuvens no céu...

E só ganhar, toda a vida,
Inexperiência...Esperança...

E a rosa louca dos ventos
presa à copa do chapéu.

Nunca dês um nome a um rio:
Sempre é outro rio a passar...

Nada jamais continua, tudo
vai recomeçar!

E sem nenhuma lembrança
das outras vezes perdidas,
atiro a rosa do sonho nas tuas
mãos distraídas


Mário Quintana

DEPÓSITOS

Paráfrase à Borges

Se morrer fosse minha função, traria em toda morte toda a vida possível.
Erraria como nômade, em tensão de percurso, seria tolo de todos.
Levaria a sério o amor e a natureza;
deixaria que os riscos em mim aflorassem.
Seria cabeça do céu,
de todos os céus,
alpinista de precipícios,
peixe dos rios,
investigador do insólito.

Beberia o mel de pequenas plantas e plantaria lírios dulcíssimos.
Teria problemas irreais e faria do imaginário minha razão.

(Eu fui uma pessoa insensata e de produção duvidosa em cada instante).

Tive tanta tristeza que a alegria me fez dom!
E se...
morrer fosse o objetivo, o eterno paradoxo, morreria mil vezes e viveria uma
porque é disso que é feita a morte – de vida!
Só de transições.

Se eu pudesse romper o irreversível, controlaria o tempo de tudo e de todos;
instrumentos musicais espalharia em cada canto e fundiria as 4 estações,
construiria ruas de sonhos
iluminaria os olhos com a luz do sol e pintaria as bocas com a prata da lua
me tornaria criança até o fim.

Se eu tivesse outra vez uma morte pela frente,
passaria a vida lendo Borges.

Almir Nilson Rodrigues

terça-feira, 12 de outubro de 2010

CRUZADAS

o movimento suave
desliza na pele macia
que inspira o errante
em sua cruzada
caminhos
pernas
pelos
proibida caverna
que se deseja cego
mãos que cercam e circulam
no entorno de profundezas proibidas
fresta suada
que espera o gozo voraz do cavaleiro
em busca de sua princesa
acesa
ardente
tempo que revela
lentamente
o anseio de ver
de ter
de sentir
o que está por vir
o que desnuda a alma
corajosa
giro inconstante de uma imagem cega
quase morta de um profeta confuso
de um poeta em desuso
de uma certeza fria
de um bruxo ofegante
distante
vibrante
mãos
que obscurecem o desejo
e reafirmam a certeza
da cruzada primeira
dos caminhos nas linhas
sem destino.
Sem graal!

Eron Villar
ator, diretor e escrevedor de linhas de tortas

sábado, 9 de outubro de 2010

NINGUÉM É SUBSTITUÍVEL

Recebi queixa recente de um amigo que diz que faz semanas que não posto nada de novo aqui. Sei que desculpas de nada adiantam, mas é que a vida nos atira de lá pra cá e às vezes a gente fica devendo o prometido.
Quando pus como subtítulo deste blog “Escrever Para Não enlouquecer” foi para ser levado à sério no que me refiro à loucura. Escrever é um lenitivo para mim por que me reajusta e dá sentido à borrasca de idéias, pensamentos e sensações no qual estou submerso e muitas vezes me perco. Escrevo para encontrar um norte. Então vamos lá!
Soube recentemente que a Escola Pernambucana de Circo vai voltar com a temporada de "Ilusão - Um Ensaio Melodramático Circense", espetáculo que escrevi e dirigi em 2008, quando lá trabalhava como diretor artístico. Estou curiosíssimo de voltar a ver o trabalho, porque o elenco (composto de jovens e adolescentes) é quase totalmente outro e um elenco trocado pode alterar substancialmente uma obra que acontece ao vivo diante do espectador.
Uma pessoa não é igual a outra, um ator não é igual a outro, por isso é que eu acho que é impossível substituir quem quer que seja, ainda mais num espetáculo de teatro. Para mim a máxima é invertida: “ninguém é substituível; ninguém substitui ninguém; cada um é singular”. Pelo menos não se pode trocar um ator numa obra teatral, sem alterá-la. Substituir é alterar. Nem numa obra cinematográfica se poderá, eu acho. Façamos o exercício: Dustin Hoffman no lugar de Jack Nicholson no filme “Um Estranho No Ninho”, teria funcionado? Sim, acredito que teria. Mas numa outra clave. Certamente muito boa , porque se trata de um ator de alto calibre, mas não seria o filme que conhecemos. Um ator é um mundo diferente, um labirinto distinto de outro labirinto, diferente de outro mundo. As experiências podem ser parecidas, mas não são iguais. Por isso sempre que há substituição, a obra se altera. Não foi assim com a peça do Samuel Santos (“Cordel do amor Sem Fim”)? Vi o espetáculo no inicio do ano e depois agora a pouco no Festival de Inverno de Garanhuns. Distintíssimo! Outra coisa! Saiu uma atriz, entrou outra no lugar e o trabalho virou outro.
Almir Rodrigues, um homem de teatro a quem devo muito do olhar que lanço sobre as coisas, objetos e pessoas, que me ensinou a olhar e ver, mecanismos essenciais para quem se mete a dirigir teatro ou filme, sempre me falou que há coisas novas esperando para serem descobertas por aí, no meio mdo cotidiano, na paisagem circundante, na vida. Há algo mais instigante para quem lida com arte? Sem acreditar no mistério, se tudo já foi dito e feito, para que redizer e repisar o já por demais pisado e redito? Isso eu não quero pra mim. É preciso se imbricar numa seara nova: real, fantasiosa, verdadeira. É possível que a arte seja uma aventura com riscos, subidas, descidas, superfícies, texturas e profundidades? Sim, é. E nessa viagem cada piloto, como na vida, não será jamais ser passível de substituição.

sábado, 2 de outubro de 2010

INSTANTES


Se eu pudesse viver novamente
a minha vida,
na próxima trataria de
cometer mais erros.
Não tentaria ser tão
perfeito, relaxaria mais.
Seria mais tolo ainda do que tenho sido;
na verdade, bem poucas pessoas levariam a sério.
Seria menos higiênico.
Correria mais riscos,
viajaria mais, contemplaria mais entardeceres,
subiria mais montanhas,
nadaria mais rios.
Iria a mais lugares onde nunca fui,
tomaria mais sorvete e menos lentilha,
teria mais problemas reais e menos imaginários.
Eu fui uma dessas pessoas que viveu
sensata e produtivamente cada minuto da sua vida.
Claro que tive momentos de alegria.
Mas, se pudesse voltar a viver,
trataria de ter somente bons momentos.
Porque, se não sabem, disso é feito a vida:
só de momentos - não percas o agora.
Eu era um desses que nunca ia a parte alguma
sem um termômetro, uma bolsa de água quente,
um guarda-chuva e um pára-quedas;
se voltasse a viver, viajaria mais leve.
Se eu pudesse voltar a viver,
começaria a andar descalço no começo da primavera
e continuaria assim até o fim do outono.
Daria mais voltas na minha rua,
contemplaria mais amanheceres
e brincaria com mais crianças,
se tivesse outra vez uma vida pela frente.
Mas, já viram, tenho 85 anos
e sei que estou morrendo.

(Poema de Nadiner Stair atribuído a Jorge Luis Borges)

SEGREDOS


Eu procuro um amor que ainda não encontrei
Diferente de todos que amei
Nos seus olhos quero descobrir uma razão para viver
E as feridas dessa vida eu quero esquecer
Pode ser que eu a encontre numa fila de cinema
Numa esquina ou numa mesa de bar

Procuro um amor que seja bom pra mim
Vou procurar eu vou até o fim
E eu vou tratá-la bem
Pra que ela não tenha medo
Quando começar a conhecer os meus segredos

Eu procuro um amor uma razão para viver
E as feridas dessa vida eu quero esquecer
Pode ser que eu gagueje
Sem saber o que falar
Mas eu disfarço
E não saio sem ela de lá


FREJAT

Veja o Clip:
http://www.youtube.com/watch?v=DrXa82roFS0&feature=related

sábado, 11 de setembro de 2010

A VOLTA DE D'ARTAGNAN


Quando estava para transpassar a barreira dos 10 anos de idade,
Final dos 80, início dos 90,
Eu me descobria nas coisas que não sabia existirem
E me apaixonava cada vez mais pelo mundo vasto e cheio de mistérios e prazeres:
Amigos e conversa na calçada da noite,
Pintura e Histórias em Quadrinho,
Meninas e canções.
Não ainda conhecia Shakespeare,
Nem em Virgínia Woolf,
Nem Joyce ou Dostoievski.
Eu não era um prodígio,
Um desses caras que dizem ter lido
“A Comedia” de Alighieri aos cinco anos de idade.
Mas adorava poesia (Drummond e Quintana),
Queria desenhar que nem o Daniel Azulay e
Devorava Monteiro Lobato (primeiro a me fazer interessar por Mitologia Grega) ,
Robert Louis Stevenson e
Alexandre Dumas.
(Quem seria mais D'Artagnan que eu?!)
Músicas compuseram uma paisagem sonora de minha adolescência
E aqui vão duas delas que gosto muito.


http://www.youtube.com/watch?v=XkMNLSbf0tA
http://www.youtube.com/watch?v=vJyK8R-u2ek&feature=related

SOBRE FOTOGRAFIA



Terminei de ler nestes dias “A Câmara Clara”, derradeira obra do Roland Barthes, escritor, sociólogo, crítico literário, semiólogo e filósofo francês. Imprescindível para quem gosta de fazer fotografias. Porém, mais que isso, imprescindível para quem gosta de pensar fotografia, ou cinema, ou teatro, uma vez que a obra trata, em essência, do poder da imagem, da possibilidades que ela guarda no que tange ao sensível e ao que a transcende.
Um livro puxa outro e este me fez lembrar de Susan Sontag e seu “Diante da Dor do Outro”, mais um sensível tratado sobre a fotografia (desta vez fotografias de guerra). Faz já algum tempo mas recordo de como eu me sentira tragado pela forma como a mulher escreve (foi o primeiro livro dela que li) e de quantos pensamentos extraia de fotos que, por sinal, nem estão no livro.
Uma lembrança puxa a outra, e termino por lembrar que no de Barthes há muitas fotos, diferente do da Sontag, nas quais ele se detém para tecer seus pensamentos, mas há uma fotografia em especial, bastante mencionada ao longo da obra: a imagem da mãe do autor, que propositalmente foi deixada de fora. Ele descreve a foto, mas a gente procura pra quê? Não está lá e isso acaba por ser um trunfo na escrita do sujeito.
Vale a pena conferir as duas obras, que além de tudo isso são também reflexões profundas sobre a vida e morte.
Maravilhosos!

PS.:

É só acessar e se deliciar:

Quem quiser pode também ir conhecer o site de dois sujeitos do mundo da fotografia, que gosto muito
O primeiro é o Steve McCurry:
http://www.stevemccurry.com/main.php

O outro é o Jan Saudek:
http://www.saudek.com

quarta-feira, 8 de setembro de 2010

O MAIS PESADO DOS PESOS


“E se um dia ou uma noite
um demônio se esgueirasse
em tua mais solitária solidão e dissesse:
‘Esta vida, assim como tu a vives agora
e como a viveste,
terás de vivê-la ainda uma vez
e ainda inúmeras vezes;
e não haverá nela nada de novo,
cada dor e cada prazer e cada pensamento e suspiro
e tudo o que há de indizivelmente pequeno e de grande
em tua vida há de te retornar,
e tudo na mesma ordem e seqüência
– e do mesmo modo esta aranha
e este luar entre as árvores,
e do mesmo modo este instante
e eu próprio.
A eterna ampulheta da existência será sempre virada outra vez
– e tu com ela, poeirinha da poeira!’
– Não te lançarias ao chão e rangerias os dentes
e amaldiçoarias o demônio que te falasse assim?
Ou viveste alguma vez um instante descomunal, em que lhe responderias:
‘Tu és um deus, e nunca ouvi mais divino!’
Se esse pensamento adquirisse poder sobre ti,
assim como és,
ele te transformaria e talvez te triturasse;
a pergunta, diante de tudo e de cada coisa:
‘Quero isto ainda uma vez e ainda inúmeras vezes?’
pesaria como o mais pesado dos pesos sobre teu agir!
Ou então, como terias de ficar de bem contigo mesmo
e com a vida, para não desejar nada mais do que essa última,
eterna confirmação e chancela?”

Nietzsche, Gaia Ciência, 341

sexta-feira, 3 de setembro de 2010

SOLDADO



Vivesse sobre os escombros a felicidade fátua de purezas
E toda a realidade fosse a dissipação do querer
E só nossos pensamentos tornar-se o que se quer
Não haveria morte tão precoce tão pouco vida prematura
Nem o tempo seria nosso passar

Existe longe um brilho nos olhos do soldado que nenhuma guerra quis lutar
Um soldado sem armadura, sem escudo, um guerreiro mudo de tão pouco falar
Mas, entretanto, há sangue nesse guerreiro que tantos desejam sangrar
Há também em sua mão o gesto que desenha o espaço e o modela em gentilezas
Há, sobretudo, nesse soldado, uma tristeza
Não a sua, que essa é fácil desvendar!
Há a tristeza do comboio humano sem consciência
Há nesse soldado ausente de batalhas uma guerra toda dentro do peito
Há em si, o solitário da sua própria falta de jeito
Há nesse soldado respeito de nada pois não o tem para si
Há nesse soldado uma intensa vontade de viver

Um sonho
A saudade
Uma rua
Uma mata
Uma amada dissipada em acordes musicais

Há nesse soldado um rosto de duas partes como um planeta ao meio
Há nele o centeio do pão antes do forno
Há o suborno do passar
Há o maneiro peito de pelos ofegantes de ar trigo balançando ao vento
Há ungüentos em seu paladar e calafrios em seus cabelos
Há nesse soldado quase cavaleiro um cavalo imaginário impossível de montar
Há granito em seu olhar
Dimensões erradas em suas proporções
Há nesse soldado uma cor cinza de estátua
Há um abismo em cada passo desse soldado

Há quedas
Derrubadas
Insurreições
Ocupações
Derrocadas

Há nesse soldado sem guerra onde lutar
Si em si
E todos, de todos, quando a questão é lutar
Há nesse soldado sem gemidos de ferimentos
Ter acreditado em todas as batalhas.

Almir Rodrigues

NEBULOSA CARINA!



Perguntamos: Como se pode ser artista numa época em que tudo é arte? Se tudo é, como diferenciar o não ser? O sujeito coloca um penico de louça sobre uma mesa numa exposição, num museu, sob a luz de um abajur... e diz que é arte. O outro aparece na TV, no Big Brother, Sílvio Fausto Santos Silva, com o rosto barbeado de azul, diz duas ou três atrocidades numa telenovela ruim de amargar e é artista consagrado já. A moça mostra em público o púbis melado de rubra tinta e, novamente: arte.
Artefatos de plástico e fogos de artifício, a mim me parece que muitas das obras hoje (ditas) de arte misturam nada com nada para comunicar nada a ninguém. Exagero? Talvez. Mas não dá para ver Tarkovsky e não pensar que há algo de muito delicado ali, de verdadeiro, de pulsante, de decisivo e que não é fácil fazer acontecer o que na tela é mostrado. Há compressão de tempo, há dilatação de tempo, há vida. O poeta que grita impropérios no fim de “Nosthalgia”, não é apenas um idiota vociferante. É uma voz e uma fala que não dá para se ignorar. O homem caminhando com a vela acessa e trêmula, sacudida pelos ventos, enquanto tenta atravessar o canal, é mais que um capricho, é uma solicitação à sensibilidade de quem vê; é um convite à reflexão das nossas fragilidades.
Arte, penso hoje, são essas obras prenhes de indagações sobre o Ser, sobre a efemeridade da vida e sobre as fragilidades e grandezas de ser humano e viver num planetinha azul.
Ontem (02 de setembro de 2010) fui com o Anjo Barroco ver a exposição “NOVOS MUNDOS NOVOS”, no Espaço Banco Real, no Recife Antigo. Qual não foi minha surpresa, ao me deparar - última coisa a ser vista na exposição, se você segue a direção sugerida pela curadoria – com uma tela imensa onde se vê reproduzida a “Nebulosa de Carina”. Fantástico! Emocionante! Comovedor! Aquilo, sim, de fato, era chocante! Como o universo é imenso, sem limites, colorido e mutante! Como chega a ser aterrador se a gente pára, de verdade, pra pensar no que andamos a fazer com as nossas vidas! E como, meu Deus!, é lindo!
Lembrei que outro dia tinha visto uma frase num livro do Gadamer em que ele reelaborava uma antiga e tão atual indagação de Platão: “A Obra de Arte nos apresenta a nós mesmos: ‘Eis o que tu és!’ E nos questiona: ‘por isso é que precisas mudar a tua vida!” Ser artista, acho eu, tem muito disso: nos apresenta um universo e o nosso tamanho frente a ele. Às vezes grandes, às vezes pequenos, somos todos passageiros e o que conta no final é o que fazemos com o tempo que nos é dado viver. Sem assinatura, sem estardalhaço, a Nebulosa de Carina, sim, é uma grande obra de arte, por que nos apresenta de um tamanho ao mesmo tempo menor e maior do que somos. Depende de onde e por onde se olha e vê!

Veja a canção:
http://www.youtube.com/watch?v=YW4FR2Oz6VY

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

ESSA GALERA!


Esta semana estava com o anjo na rede, balançando manso, voando baixo, assistindo a um DVD sobre a vida e a obra do Chico Buarque... “Palavras”. Bonito, o documentário! Recomendo. Lá para as tantas o Chico fala do dia em que Sivuca trás para ele a melodia da “João e Maria” e pede para que ele coloque letra. É um momento muito bonito. E legal saber como se deu a inspiração do letrista.
Hoje pela manhã enquanto vinha para o trabalho acompanhado por Rita, começamos (ela e eu) a cantarolar canções outras (além de “João e Maria”) e de repente lembramos de “Vira Virou”, “Nuvem Passageira” e “Roda Viva”. Sabe aquele momento em que as coisas chatas, como estar dentro de um ônibus cheio, de manhã cedo, cede lugar para qualquer coisa de mágico (se quiserem chamar assim) ou poético (eu prefiro)? Pois foi isso. Ficou mais leve a manhã, menos feias as pessoas, mais claro o sol. E ficamos ali cantando Conde da Boa Vista a dentro, sem perceber que a vida, de fato, vira, gira, roda e canta.
É isso!

http://www.youtube.com/watch?v=qxYsHEGviiY

TODAS AS VIDAS


Vive dentro de mim
uma cabocla velha
de mau-olhado,
acocorada ao pé do borralho,
olhando para o fogo.
Benze quebranto.
Bota feitiço... Ogum. Orixá.
Macumba, terreiro.
Ogã, pai-de-santo...

Vive dentro de mim
a lavadeira do Rio Vermelho.
Seu cheiro gostoso d'água e sabão.
Rodilha de pano.
Trouxa de roupa, pedra de anil.
Sua coroa verde de São-caetano.

Vive dentro de mim a mulher cozinheira.
Pimenta e cebola.
Quitute bem feito.
Panela de barro.
Taipa de lenha.
Cozinha antiga toda pretinha.
Bem cacheada de picumã.
Pedra pontuda.
Cumbuco de coco.
Pisando alho-sal.

Vive dentro de mim a mulher do povo.
Bem proletária.
Bem linguaruda, desabusada,
sem preconceitos, de casca-grossa,
de chinelinha, e filharada.

Vive dentro de mim a mulher roceira.
-Enxerto de terra,
Trabalhadeira.
Madrugadeira.
Analfabeta.
De pé no chão.
Bem parideira.
Bem criadeira.
Seus doze filhos, Seus vinte netos.

Vive dentro de mim a mulher da vida.
Minha irmãzinha... tão desprezada, tão murmurada...
Fingindo ser alegre seu triste fado.
Todas as vidas dentro de mim:
Na minha vida -
a vida mera das obscuras!

Cora Coralina

terça-feira, 31 de agosto de 2010

O TEMPO PASSA E A GENTE NEM PERCEBE



Por Eron Villar

Todo mundo que me conhece sabe que sou um cara meio preconceituoso, nunca neguei isso! Mas esses dias me surpreendi com uma película que por várias vezes me recusei a assistir – confesso - por preconceito. O protagonista não era dos meus prediletos, o tema parecia falar de velho, outro preconceito assumido, embora esteja ficando-o também (já cheguei a acreditar que n ao passaria dos 33, eu, Cristo e Pimentel!). No afã de aumentar minha singela coleção de DVDs originais, já que estou perto dos 200, comprei O Curioso Caso de Benjamim Button. Debrucei-me sobre as informações e fui mudando de opinião: a direção era de David Fincher, (Seven e Clube da Luta, ambos com seu queridinho Brad Pitt, o protagonista em questão, mas dois filmes que aprecio bastante), e ainda Kate Blanchett no elenco, beleza e talento refletidos na segurança de seus tão citados olhos azuis.
E qual não foi a minha surpresa e ao acompanhar até o fim aquela curiosa e verossímil trama. Quantos valores podemos ver questionados na história do cara que nasce velho e vai rejuvenescendo até morrer nos braços da única mulher que amou na vida. O fluxo da vida correndo ao contrário e, ainda assim, ensinando que podemos aprender a amar e a cultivar este amor, seja qual for a condição de tempo, espaço ou situação social. Um amor que surge no olhar de duas crianças inocentes, em que uma traz impressos em seus traços o peso da idade que ainda não tem; e anos mais tarde vai descobrir aos 47 (com carinha de 18) que a aparência externa esconde a dor de uma vida plena de sensações e sentimentos que só valem a pena quando vividos, que as dificuldades enfrentadas, que cada recomeço, cada conquista pode ser efetivada sempre: “nunca é tarde pra começar de novo!” ele afirma . Benjamim Button me fez pensar em nós, em nossa geração de artistas, de amigos, de companheiros de um front cheio de incertezas e de recomeços. Sejam profissionais, sejam pessoais. Nunca é tarde para recomeçar, repito, mas isso parece se completar com a idéia de que quando amamos verdadeiramente, suas marcas nos acompanham até o fim de nossas vidas ou a o retorno de uma infância cruel e previsível, agora madura, cheia de reminiscências, ora como feridas que parecem incuráveis,ora como prazeres inesquecíveis..E quem viu o filme sabe que se aquele relógio que conta as horas para trás estivesse entre nós, realmente muitas de nossas crias voltariam para a casa, muitos de nosso filhos sairiam vivos da guerra!
Para não parecer sentimental demais, coisa que não combina com um Cafuçu Sensível, vou terminar lembrando saudosamente de uma fala da Lilith anciã de Felipe Botelho:
“O tempo passa e agente nem percebe, a gente passa e o tempo não tá nem aí...”

sábado, 21 de agosto de 2010

CRIA CUERVOS


Chega a ser engraçado como a gente esquece coisas pelo caminho à medida em que vai vivendo. E quando menos se espera, lá na frente, essa coisa misteriosamente (ou não) nos assalta de súbito, como quem diz: “Ahá! Andou esquecido de mim, né, safado?! Pois olha eu aqui de novo! Quando nos encontraremos afinal?!”
Ontem estava eu na casa de um amigo para assistirmos a um filme (“Não amarás”, de Kieslowski) , quando um desses momentos estranhamente saltou na tela e me causou, ao mesmo tempo, espanto e tristeza. Espanto por ter me feito lembrar de si e tristeza por ter me feito pensar que podem haver outras coisas das quais não lembro agora e que correm risco de mofar no baú de memórias (ou melhor:des-memórias), sem jamais poderem me achar de novo.
Interessante é que depois do advento do DVD, eu quase não vejo mais trailers. Mas há certos produtos que não saltam logo para o “menu”, então nos obrigam a ver tudo quanto é trailer até que possamos finalmente acessar o filme. E não foi isso, justamente isso, que aconteceu ontem? E que bom, que felicidade que tenha sido assim! Tratava-se (e trata-se ainda) do trailer de uma película do Carlos Saura. Há décadas atrás (não muitas, claro!) lembro de ter visto este mesmo trailer em uma sessão de arte, num videoclube desses da vida, mas nunca vi o filme.
Saura é um cineasta importante, a meu ver, de grande sensibilidade. E o filme ganhou prêmio especial do júri em Cannes (1975). De novo voltei a ficar interessado nele.
Esta semana estava elencando com a namorada filmes que deveremos assistir juntos. Fizemos uma longa lista dos nacionais. Ficou faltando a internacional. Acho que será agora, então... “Cria Cuervos” e eu teremos finalmente o nosso encontro realizado. Para os curiosos fica a dica de acessar o endereço abaixo para conferir do que estou falando.

http://www.youtube.com/watch?v=pczJsUbqblY

terça-feira, 10 de agosto de 2010

NAUFRÁGIO IMPOSSÍVEL



Eis lá o sinal! Gritou o primeiro.
Ia à proa do barco, pela noite.
O braço largo, de mão de dedo aduaneiro
apontava uma estrela dançarina, brilhante.
De repente como formigas que carregam o alimento
pra amenizar a frieza do próximo inverno
uma multidão de marujos se juntou a bordo.

Não ajoelharam e nem rezaram
Barris de vinho foram abertos
E sob o céu de nuvens descoberto
De milhões de pontos coloridos
A aragem levou o aroma do vinho
Distante daquele barco pra terras distantes
E o balanço do casco balançou
Junto à embriaguez dos seus tripulantes.

Assim ficou por séculos à deriva no imenso mar.
Passou pelo mesmo porto milhares de vezes
e jamais a âncora o fundeou em baía rasa.

Correu rápido a sua fama e por todo canto
falava-se na embarcação dos embriagados
daqueles de rostos cavados que não comiam
que dormiam e estavam vivos.

O falatório aumentou e o tornaram amaldiçoado.
Uma enorme cruz vermelha foi pintada em sua quilha,
marca, desígnio e símbolo que era pestilento.
Sinal que se da terra se aproximasse
urgentemente dela deveria ser afastado.

E seguiu, mesmo assim, esse barco mudo de homens adormecidos.
Vagou como a alma má que pagará a desencarnação.
Era um fantasma durante a calmaria
no ranger enferrujado dos seus objetos de ferro.
Um leão feroz na tempestade
no rugido que as ondas lhe emprestavam ao casco.

E o tempo passou mais e mais.
Algas lhe abraçaram os mastros.
E o mar havia lavado o óleo
expondo à podridão a madeira que o punha a flutuar.

Ia desfazer-se!
Impossível suportar a ação do tempo!
Ser o jovem de nariz empertigado de outrora
cortando água pela frente
como a lâmina afiada rompe a carne
pra salvar a vida, pra matar uma e sobreviver.

Viria a última tempestade.
O céu enegrecera e o vento cantava.
O pivô de madeira sustentáculo da âncora
num solavanco, rompeu-se, mergulhou no oceano.

Era ali o seu cemitério.
Aumentavam as ondas e cada solavanco
como frenagem de coletivo em cidade grande
lançava ao mar um homem
imediatamente comido pelos peixes.

Assim foram todos.
Até que:
o último que estava para ir
o que avistara a estrela
a deusa
acordou.

Eis lá o sinal!
Uma onda bateu-lhe de frente
lavou a cruz vermelha.
As algas desapareceram
o casco refez-se.
E como formiga que leva o alimento
o convés recebeu uma multidão de marujos.

Não ajoelharam e nem rezaram.
Barris de vinho foram abertos.
... e o barco navega
sem porto
seguindo a estrela deusa.

Almir Nilson Rodrigues

sexta-feira, 6 de agosto de 2010

SÁNDOR MÁRAI


“Quem poderia fotografar, registrar, tatear o instante em que algo se rompe entre duas pessoas? Quando aconteceu? De noite, enquanto dormíamos? No almoço, enquanto comíamos? Agora, quando vim ao consultório? Ou muito, muito tempo atrás, apenas não percebemos? E continuamos a viver, a falar, a nos beijar, a dormir juntos, a procurar a mão do outro, o olhar do outro, como bonecos animados que continuam a se movimentar ruidosamente por um tempo, mesmo estando a mola de seu mecanismo quebrada...
O cabelo e as unhas do morto continuam a crescer, talvez as células nervosas ainda sobrevivam quando os glóbulos vermelhos já estão mortos... Nada sabemos. O que posso fazer agora? Que refletor devo acender para encontrar nessa escuridão, nessa trama, aquele momento único, aquele milésimo de segundo em que algo cessa entre duas pessoas?”

Do Livro “Divórcio em Buda”, de Sándor Márai

É FEITO DOMINÓ


Ploct! A menina deu um peteleco inicial na primeira peça e, pronto!, lá se foi a fileira toda de pedrinhas de dominó caindo uma após outra , em cascata, até que a última jazia na horizontal. Achava lindo vê-las esbarrando uma nas outras e o efeito que aquilo causava em sua visão. Era um frisson. Se descobriu de repente viciada no passatempo. Passou a comprar mais jogos de dominó apenas com o intuito de aumentar a fileira indiana de guerreiros tontos. Certa vez chegou a ter 1400 peças, que lhe roubavam horas a fio para serem devidamente enfileiradas, apenas para depois, em questão de segundos, virem todas abaixo. Aumentar a quantidade de peças era aumentar um pouco mais o tempo de prazer, a demora em chegar ao fim.
Quando se deu por si não era mais uma menininha. Crescera. Virara mulher. E não se interessava mais por dominós. Contudo, do mesmo modo como algumas pessoas conseguem transferir determinadas manias para outras áreas de suas vidas, ela conseguiu arranjar meios e modos de continuar o seu jogo e seus efeitos de queda com as pessoas.
Passou a arranjar amizades e namorados e namoradas que, sabia, não durariam muito em sua vida, relações de superfície, de maquilagem, apenas com o intuito de ter peças (era importante tê-las e quanto mais melhor, senão como teria jogo, como teria beleza o efeito?), de colocá-las de pé e, com um simples peteleco, vê-las cair desastrosamente uma após outra. Sabia como ninguém levantar relações, fazer amigos, criar expectativas, alimentar emoções e esperanças, dar colo, abraços, afagos, ouvidos, de forma tão genial quanto sabia minar tudo, fazer ruir o que antes dissera ser importante e essencial para a sua existência.
Até que um dia, já muito velha, se viu sozinha.
Nada nem ninguém com quem pudesse dialogar, que valesse a pena. A idade lhe roubara do corpo a beleza juvenil, as pernas bem torneadas, a face de pêssego, a boca carnuda, o brilho dos olhos. Não havia mais como conseguir peças humanas para o seu passatempo predileto. Todas as peças (as ainda vivas e as já mortas) jaziam no chão de sua memória, todas caídas, como pássaros sem asas. Para algumas havia um lamento guardado no peito; mas para a maioria delas havia apenas o pensamento de que poderiam ter valido a pena, mas não chegaram a tanto.
Aos poucos foi perdendo o juízo. Viciou-se em bebidas. Enlouqueceu a olhos nus. Os vizinhos a mandaram internar num hospício próximo. Ela foi sem fazer alarde. Ficava isolada a maior parte do tempo em seu aposento num primeiro andar. Não recebia visitas e nem sentia necessidade de as receber. Gostava das coisas assim como estavam. A única coisa que fazia questão era de, a cada semana, adquirir um novo jogo de dominó a fim de manter aceso e ampliar mais e mais o efeito da queda, as fileiras rendidas com um peteleco. Até o dia em que não jogou mais. Era ela própria uma peça inerte no chão.

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

A ÉTICA DO PAÍS DAS FADAS


Gilbert Keith Chesterton

A minha primeira e última filosofia, em que acredito com uma certeza inabalável, foi aquela que aprendi no quarto de infância. E eu a aprendi em geral de uma ama-seca, quer dizer, da grave e luminosa sacerdotisa tanto da democracia quanto da tradição. As coisas em que eu mais acreditava então, as coisas em que eu mais acredito agora, são as coisas denominadas contos de fadas. Eles me parecem ser as mais racionais de todas as coisas. Não são fantasias: perto deles, as outras coisas é que são fantásticas. Perto deles, a religião e o racionalismo são ambos anormais, embora a religião seja anormalmente certa e o racionalismo anormalmente errado. O país das fadas não é outra coisa senão o ensolarado país do senso comum. Não é a terra que julga o céu, mas o céu que julga a terra; portanto, para mim pelo menos, não era a terra que criticava o país das fadas, mas o país das fadas que criticava a terra. Conheci o mágico pé de feijão antes de ter experimentado o grão de feijão; acreditei no Homem da Lua antes de ter certeza sobre a existência da própria lua. E isto estava de acordo com toda a tradição popular. Os modernos poetas menores são naturalistas, e falam de bosques ou de riachos; mas os cantores dos velhos poemas épicos e das fábulas eram super-naturalistas, e falavam dos deuses dos bosques e dos riachos. Isto é o que os modernos querem dizer quando afirmam que os antigos não "apreciavam a Natureza", já que diziam que a Natureza era divina. As velhas amas-secas não falavam às crianças sobre a grama, mas sobre as fadas que dançam na grama; e os velhos gregos não conseguiam ver as árvores porque as dríades encobriam-nas.
Mas o que me interessa aqui é que tipo de ética e de filosofia podem brotar no solo dos contos de fadas. Se fosse descrevê-las detalhadamente, poderia mostrar os muitos e nobres princípios que delas resultam. Há a cavalheiresca lição de "Jack, o Matador de Gigantes": os gigantes devem ser mortos porque são gigantescos. Uma enérgica revolta contra o orgulho em si mesmo. Pois os rebeldes são mais velhos que todos os reinos, e o jacobino (1) tem mais tradição que o jacobita (2). Temos a lição de "Cinderela", que é a mesma do Magnificat - EXALTAVIT HUMILES (3). Há a grande lição de "A Bela e a Fera": uma coisa deve ser amada ANTES de ser amável. Há a terrível alegoria de "A Bela Adormecida", que mostra como a criatura humana foi abençoada com todas as dádivas ao nascer, embora amaldiçoada com a morte, e como a morte também pode ser, talvez, suavizada pelo sono. Mas eu não estou interessado em nenhum estatuto específico do país das fadas, mas no espírito mesmo da sua lei, que aprendi antes de saber falar, e que hei de manter quando não mais puder escrever. Estou interessado em uma certa maneira de olhar para a vida, maneira esta que me foi insuflada pelos contos de fadas, e que desde então tem sido docilmente ratificada pelos simples fatos.
Ela pode ser formulada assim: há certas seqüências ou desenvolvimentos (casos em que uma coisa segue-se a outra) que são, no verdadeiro sentido da palavra, razoáveis. São, no verdadeiro sentido da palavra, necessários. Como as seqüências matemáticas e meramente lógicas. Nós, no país das fadas (que são as mais razoáveis de todas as criaturas) admitimos essa razão e essa necessidade. Por exemplo, se as Irmãs Feias são mais velhas que Cinderela, é NECESSÁRIO (num sentido férreo e tremendo) que Cinderela seja mais nova do que as Irmãs Feias. Não se pode fugir disso. Haeckel (4) pode falar o quanto quiser de fatalismo em relação a este fato: ele realmente tem que ser assim. Se Jack é filho de um moleiro, o moleiro é o pai de Jack. A fria razão assim o decreta do alto do seu tremendo trono: e nós no país das fadas aceitamos. Se os três irmãos estão todos a cavalo, haverá seis animais e dezoito pernas em questão: este é o verdadeiro racionalismo, e o país das fadas está cheio dele. Mas quando pus a cabeça para fora da região dos elfos e comecei a entrar em contato com o mundo natural, observei uma coisa extraordinária. Observei que os homens cultos com os seus óculos falavam das coisas reais que aconteciam - o amanhecer e a morte e outras coisas - como se ELAS fossem racionais e inevitáveis. Falavam como se o fato de as árvores frutificarem fosse tão NECESSÁRIO quanto o fato de que duas árvores mais uma perfazem três. Mas não o é. Há uma enorme diferença, segundo o teste dos país das fadas, que é o teste da imaginação. Você não pode IMAGINAR que dois mais um não são três. Mas pode facilmente imaginar árvores que não produzem frutos; pode imaginá-las produzindo castiçais dourados ou tigres pendurados pela cauda. Esses homens com seus óculos falavam muito de um homem chamado Newton, que foi atingido por uma maçã, e que descobriu uma lei. Mas não conseguiam ver a diferença entre uma verdadeira lei, a lei da razão, e o simples fato de as maçãs caírem. Se a maçã bateu no nariz de Newton, o nariz de Newton bateu na maçã. Esta é uma verdadeira necessidade, pois não podemos conceber que uma coisa ocorra sem a outra. Mas podemos tranqüilamente conceber que a maçã não caiu em seu nariz; podemos imaginá-la voando apaixonadamente pelo ar para bater em algum outro nariz, pelo qual tivesse maior antipatia. Nós sempre conservamos em nossos contos de fadas essa aguda distinção entre a ciência das relações mentais, onde realmente existem leis, e a ciência dos fatos físicos, onde não há leis, mas apenas misteriosas repetições. Acreditamos em milagres materiais, mas não em impossibilidades mentais. Acreditamos que um pé de feijão pode subir até o céu; mas isto não confunde de maneira alguma as nossas convicções sobre a filosófica questão de definir quantos grãos fazem cinco.
É nisto que residem a perfeição do tom e a verdade dos contos de fadas. O homem de ciência diz: "Corta o talo, e a maçã cairá"; mas ele o diz calmamente, como se uma idéia realmente levasse à outra. A bruxa no conto de fadas diz: "Toca o clarim, e o castelo do ogro cairá"; mas não o diz como se houvesse nisso alguma coisa que unisse obviamente o efeito à causa. Não há dúvida de que ela já dera o mesmo conselho a muitos campeões, e vira muitos castelos caírem, mas nem por isso perdera sua admiração ou sua razão. Não confundira sua cabeça a ponto de imaginar uma necessária conecção mental entre um clarim e a queda de uma torre. Mas os homens científicos confundem suas cabeças a ponto de imaginar uma necessária conecção mental entre uma maçã que cai da árvore e uma maçã que chega ao chão. Eles realmente falam como se tivessem encontrado não só uma seqüência de fatos maravilhosos, mas uma verdadeira conecção entre esses fatos. Falam como se a conecção entre duas coisas fisicamente estranhas também as unisse filosoficamente. Acham que, pelo fato de uma coisa incompreensível seguir-se constantemente a outra coisa incompreensível, de alguma forma as duas juntas perfazem uma coisa compreensível. Duas charadas negras resultam numa resposta branca.
No país das fadas evitamos a palavra "lei"; mas no país da ciência eles gostam muito dela. Assim, denominarão alguma interessante conjectura sobre a maneira como certos povos já esquecidos teriam pronunciado o alfabeto de Lei de Grimm. Mas a Lei de Grimm é muito menos intelectual do que os Contos de Fadas dos Grimm. Os contos em todo caso são sempre contos; enquanto a lei não é uma lei. Uma lei implica que conhecemos a natureza da generalização e do estatuto, e não simplesmente que observamos alguns dos seus efeitos. Se há uma lei segundo a qual os batedores de carteiras devem ir para a prisão, tal lei implica que há uma concebível conecção mental entre a idéia de prisão e a idéia de batedor de carteira. E nós sabemos o que é essa idéia. Podemos dizer que tiramos a liberdade de um homem que toma certas liberdades. Mas não podemos dizer por que um ovo transforma-se em um frango, assim como não podemos dizer por que um urso se transforma em um príncipe encantado. Como IDÉIAS, o ovo e o frango estão mais longe um do outro do que o urso e o príncipe; nenhum ovo por si mesmo nos faz pensar em um frango, ao passo que alguns príncipes nos fazem pensar em ursos. Dado, portanto, que acontecem algumas transformações, é essencial que as vejamos segundo a maneira filosófica dos contos de fadas, e não segundo a maneira anti-filosófica da ciência e das "Leis da Natureza". Quando nos perguntam por que os ovos se transformam em pássaros ou os frutos caem no outono, devemos responder exatamente como a fada-madrinha responderia se Cinderela perguntasse por que é que os ratos se transformaram em cavalos ou os seus vestidos cairiam à meia-noite. Devemos responder que é MAGIA. Não é uma "lei", porque não compreendemos a sua fórmula geral. Não é uma necessidade, porque embora possamos esperar que isso aconteça de fato, não temos o direito de afirmar que deve acontecer sempre. Não é argumento suficiente para estabelecer uma lei inalterável (como fantasiou Huxley) (5) o fato de contarmos com o curso ordinário das coisas. Não contamos com ele; apostamos nele. Arriscamos que não ocorrerá a possibilidade remota de um milagre, como arriscamos que não ocorrerá a possibilidade de um bolo envenenado ou de um cometa que possa destruir o mundo. Colocamos isto fora de nossas cogitações, não porque um milagre seja uma impossibilidade, mas porque um milagre é uma exceção. Todos os termos usados nos livros de ciência, "lei", "necessidade", "ordem", "tendência" e outros semelhantes, são de fato inintelectuais, porque pressupõem uma síntese interior que não possuímos. As únicas palavras que ainda me satisfazem ao descrever a Natureza são os termos usados nos livros de fadas, "mágica", "feitiço", "encanto". Elas expressam a arbitrariedade do fato e o seu mistério. Uma árvore frutifica porque é uma árvore MÁGICA. A água corre morro abaixo porque está enfeitiçada. O Sol brilha porque está enfeitiçado.
E eu nego firmemente que isto seja fantástico ou místico. A linguagem dos contos de fadas acerca das coisas é simplesmente racional e agnóstica. Esta é a única maneira pela qual posso expressar em palavras a minha clara e definitiva percepção de que uma coisa é bastante distinta de uma outra; de que não há qualquer conecção lógica entre voar e pôr ovos. O homem que fala a respeito de uma "lei" que nunca viu é que é o místico. E mais: o homem científico vulgar é estritamente um sentimental. É um sentimental no sentido essencial de que está encharcado de meras associações, e de que é arrastado por elas. Tem visto tantas vezes as aves voar e pôr ovos que acaba achando que deve haver alguma vaga, tênue conecção entre as duas idéias; mas não há nenhuma. Um amante abandonado poderá ser incapaz de dissociar a lua do seu amor perdido; também o materialista é incapaz de dissociar a lua das marés. Em ambos os casos não há conecção alguma, a não ser o fato de que as duas coisas foram vistas juntas. Um sentimental poderá derramar lágrimas ao sentir o perfume de um botão de macieira, porque, por uma secreta associação interior, o perfume lhe traz à memória a sua mocidade. E o professor materialista (embora esconda as lágrimas) é também um sentimental, porque, por uma secreta associação interior, o botão de macieira lhe traz à memória as maçãs. Mas o frio racionalista do país das fadas não vê por que, teoricamente, a macieira não possa produzir tulipas vermelhas; isto às vezes acontece no seu país.
Esse elementar espanto, porém, não é uma mera fantasia derivada dos contos de fadas; pelo contrário, todo o fascínio dos contos de fadas é que provém dele. Assim como todos nós gostamos dos contos de amor porque há um instinto do sexo, todos nós gostamos dos contos admiráveis porque nos tocam o nervo do velho instinto da admiração. E isto prova-se pelo fato de que, quando somos bem pequeninos, não precisamos de contos de fadas: precisamos somente de contos. A simples vida é mais do que suficiente. Uma criança de sete anos ficará excitada se lhe disserem que Tom abriu a porta e viu um dragão. Mas uma criança de três anos ficará excitada se lhe disserem que Tom abriu a porta. Os jovens gostam de contos românticos; mas as criancinhas gostam de contos realistas - porque acham-nos românticos. De fato, uma criancinha é quase a única pessoa, penso eu, a quem se poderá ler uma das modernas novelas realistas sem entediá-la. Isto prova que somente os contos de fadas são ainda capazes de despertar em nós o quase inato sobressalto de interesse e espanto. Esses contos dizem-nos que as maçãs são douradas somente para reavivar o esquecido momento em que nós descobrimos que elas eram verdes. E põem vinho a correr pelos rios somente para nos fazer lembrar, por um fulgurante momento, que é água o que corre por eles. Eu disse que isto é completamente razoável e até agnóstico. E sou realmente, neste ponto, pelo mais alto agnosticismo; o seu melhor nome é Ignorância. Todos nós já lemos nos livros científicos e, com certeza, em todos os romances, a história do homem que esqueceu de seu nome. Esse homem passeia pelas ruas e pode ver e apreciar todas as coisas; somente não consegue recordar quem ele é. Pois bem: todo homem é o homem dessa história. Todo homem esqueceu quem ele é. Pode-se compreender o cosmos, mas nunca o ego; ele está mais distante do que qualquer estrela. Amarás o Senhor teu Deus; mas não conhecerás a ti mesmo. Vivemos todos sob a mesma calamidade mental; nós todos esquecemos nossos nomes. Nós todos esquecemos o que realmente somos. Tudo aquilo que chamamos senso comum e racionalidade e praticabilidade e positivismo significa apenas que em algumas zonas adormecidas de nossa vida já nos esquecemos que nos esquecemos. Tudo aquilo que chamamos espírito e arte e êxtase significa apenas que por um formidável instante lembramos que nos esquecemos.
Mas, embora (como o homem sem memória da novela) passeemos pelas ruas com uma espécie de semiviva admiração, ela ainda é admiração. É uma admiração em inglês e não apenas uma admiração em latim (6). A admiração tem um elemento positivo de louvor... (...) Eu estou aqui tentando descrever certas grandiosas emoções que não podem ser descritas. E a mais forte emoção era que a vida era tão preciosa quanto enigmática. Era um êxtase, porque era uma aventura; era uma aventura, porque era uma oportunidade. A bondade dos contos de fadas não era afetada pelo fato de que poderia haver mais dragões do que princesas; o que era bom era estar num conto de fadas. O teste de toda a felicidade é a gratidão; e eu me sinto grato, embora tenha certa dificuldade em saber a quem. As crianças sentem-se gratas quando Papai Noel enche-lhes as meias de brinquedos ou doces. E eu posso deixar de sentir-me grato ao Papai Noel quando ele me põe nas meias o presente de duas pernas miraculosas? Agradecemos às pessoas que nos dão presentes de aniversário; charutos ou chinelos. Não posso agradecer a alguém o presente de ter nascido?
Havia então esses dois sentimentos primeiros, ambos indefensáveis e indiscutíveis. O mundo era um espanto, mas não era meramente espantoso; a existência era uma surpresa, mas uma agradável surpresa. De fato, todas as minhas opiniões primeiras eram expressas na forma de um enigma que martelava-me o cérebro desde a meninice. A pergunta era: "Que disse a primeira rã?" E a resposta: "Senhor, como me fizeste saltar!" Isto sucintamente diz tudo o que venho dizendo. Deus fez a rã saltar; e a rã prefere saltar. Mas, uma vez que essas coisas estão colocadas, entra em cena o segundo grande princípio da filosofia das fadas.
Qualquer um pode conhecer esse princípio; basta abrir e ler os "Contos de Fadas de Grimm", ou as belas coleções de Andrew Lang (7). Pelo prazer do pedantismo, eu o chamarei de Doutrina da Alegria Condicional. Touchstone (8) falou da muita virtude que há num "se"; de acordo com a ética dos elfos, toda a virtude está num "se". A característica da linguagem das fadas é sempre esta: "Tu poderás viver num palácio de ouro e safiras, se não pronunciares a palavra 'vaca'." Ou: "Poderás viver feliz com a filha do Rei, se não lhe mostrares uma cebola." A promessa subordina-se sempre a um veto. Todas as vertiginosas e colossais coisas concedidas dependem de uma pequena coisa recusada. Todas as fantásticas e assombrosas coisas que nos são ofertadas dependem de uma coisa que nos é proibida. O sr. W. B. Yeats (9), na sua estranha e penetrante poesia dos elfos, descreve os elfos como criaturas sem lei; eles mergulham em uma inocente anarquia em seus desenfreados cavalos alados:

"Ride on the crest of the dishevelled tide,
"And dance upon the mountains like a flame." (10)

É desagradável ter que dizer que o sr. W. B. Yeats não compreende o país das fadas. Mas eu o digo. Ele é um irônico irlandês, cheio de reações intelectuais. Não é suficientemente estúpido para compreender o país das fadas. As fadas preferem os de tipo rústico como eu; os que ficam embasbacados, gargalham e fazem o que lhes é dito. O sr. Yeats lê no país das fadas toda a justa insurreição de sua própria raça. Mas a desordem da Irlanda é uma desordem cristã, fundada na razão e na justiça. O feniano (11) levanta-se contra alguma coisa que compreende muitíssimo bem; mas o verdadeiro cidadão do país das fadas obedece a alguma coisa que não compreende de maneira alguma. Num conto de fadas há uma incompreensível felicidade que depende de uma incompreensível condição. Uma caixa é aberta, e todos os males saem voando. Uma palavra é esquecida, e cidades desaparecem. Uma lâmpada é acesa, e o amor voa para longe. Uma flor é arrancada, e vidas humanas perecem. Uma maçã é comida, e esvai-se a esperança em Deus.
Este é o tom dos contos de fadas, e certamente não há nisto nenhuma anarquia nem permissividade, embora os homens acorrentados à vil tirania moderna possam pensar que o há por comparação. Quem sai do Presídio de Portland pode julgar que a Fleet Street (12) é livre; mas um estudo mais acurado provará que tanto as fadas quanto os jornalistas são escravos do dever. As fadas-madrinhas parecem pelo menos tão severas quanto as outras madrinhas. Cinderela recebeu uma carruagem vinda do País das Maravilhas, recebeu um cocheiro vindo de lugar nenhum, mas recebeu uma ordem - que poderia ter vindo de Brixton (13) - de que deveria voltar à meia-noite. Ela também tinha um sapato de vidro; e não pode ser uma coincidência o fato de que o vidro é uma substância tão comum no folclore. Certa princesa vive num castelo de vidro, outra princesa numa montanha de vidro; aquela outra vê todas as coisas num espelho; todas elas podem viver em casas de vidro, desde que não atirem pedras. Esse leve resplendor de vidro por toda a parte é a expressão do fato de que a felicidade é radiante mas frágil, como essa substância tão facilmente estraçalhada por uma criada ou por um gato. E esse sentimento característico dos contos de fadas calou fundo em mim e tornou-se o meu sentimento em relação ao mundo. Eu sentia e sinto que a própria vida é brilhante como o diamante, e quebradiça como uma vidraça; e quando o céu era comparado a um terrível cristal, posso lembrar-me de um sobressalto. Eu tinha medo de que Deus derrubasse o cosmos com um estrondo.
Lembremo-nos porém de que ser quebrável não é o mesmo que ser perecível. Golpeie um vidro, e ele não durará um instante; não o toques simplesmente, e durará por mil anos. Assim era, parecia-me, a alegria humana, tanto no país das fadas quanto na terra; a felicidade dependia de NÃO FAZER ALGUMA COISA que em qualquer momento poderia ser feita e, muitas vezes, não era óbvio por que ela não deveria ser feita. Ora, o ponto aqui é que para MIM isto não soava injusto. Se o terceiro filho do moleiro dissesse à fada: "Explica-me por que eu não posso ficar de cabeça para baixo no palácio encantado", ela poderia muito bem responder: "Bem, se vamos a isso, explica-me tu o palácio encantado." Se Cinderela diz: "Como se justifica que eu tenha de sair do baile à meia-noite?", sua madrinha poderá responder: "Como se justifica que possas estar lá até a meia-noite?" Se eu deixo a um homem em testamento dez elefantes falantes e cem cavalos alados, ele não poderá queixar-se caso as condições participem da delicada excentricidade do presente. A um cavalo alado não se olham os dentes. E parecia-me que a existência era em si mesma um legado excêntrico demais para que eu me queixasse de não compreender os limites da visão, quando afinal de contas não compreendia a visão que eles limitavam. A moldura não era menos estranha que o quadro. O veto podia ser tão fantástico quanto a visão; podia ser tão surpreendente quanto o Sol, tão esquivo quanto as águas, tão fantástico e terrível quanto as mais altas árvores.
Por isto (podemos chamá-lo a filosofia da fada-madrinha) nunca pude compartilhar com os jovens do meu tempo aquilo que denominavam de sentimento geral de REVOLTA. Eu poderia ter resistido, imagino, a toda norma que fosse má. (...) Mas nunca me senti inclinado a resistir a uma norma simplesmente por ela ser misteriosa. Certos domínios são conquistados pelas formas mais insensatas - a quebra de um bastão ou o pagamento de um grão de pimenta... E eu me dispunha a conquistar esse imenso domínio da terra e do céu por meio de qualquer uma dessas fantasias feudais. Essa fantasia não poderia ser mais fantástica do que o próprio fato de chegar a semelhante conquista. Darei aqui apenas um exemplo de natureza ética para ilustrar o que quero dizer. Nunca pude juntar-me ao murmúrio geral dessa revoltada geração contra a monogamia, porque nenhuma restrição quanto ao sexo me parecia tão estranha nem tão inesperada quanto o próprio sexo. Ter a permissão, como Endimião (14), de acariciar a própria lua e depois queixar-se de que Júpiter possui suas próprias luas em um harém parecia-me (a mim, educado nos contos de fadas como o de Endimião) um vulgar anti-clímax. Conformar-se com uma só mulher é um preço baixíssimo perto do extraordinário fato de ver uma mulher. Reclamar de que só podia casar-me uma vez era como reclamar de ter nascido uma só vez. Isto não tinha nenhuma proporção com a tremenda excitação de que se estava falando. Parecia, não uma exagerada sensibilidade para com o sexo, mas uma curiosa insensibilidade para com ele. O homem que reclamar de que não pode entrar no Paraíso por cinco portas ao mesmo tempo é um tolo. A poligamia é uma falta de compreensão do sexo; ela é como um homem que apanha cinco pêras por mera distração. Os estetas atingiram os mais insensatos limites da linguagem nos seus elogios das coisas encantadoras. A lanugem do cardo encheu-lhes os olhos de lágrimas; um besouro lustroso colocou-os de joelhos. Mas a sua emoção nunca me impressionou um único instante, pela simples razão de que nunca ocorreu-lhes a idéia de pagar o prazer que sentiam através de uma espécie qualquer de sacrifício simbólico. Os homens (achava eu) poderiam jejuar durante quarenta dias a fim de ouvir um melro cantar. Os homens poderiam passar através do fogo para encontrar uma prímula. Mas esses amantes da beleza seriam incapazes de manter-se sóbrios em atenção ao melro. Não passariam através de um vulgar casamento cristão para mostrarem gratidão à prímula. Por certo podemos pagar uma alegria extraordinária com um ato ordinário de moral. Oscar Wilde dizia que um entardecer não tinha valor porque não se pode pagar os entardeceres. Mas Oscar Wilde estava enganado; podemos pagar os entardeceres. Podemos pagá-los não sendo um Oscar Wilde.
Muito bem, deixei os contos de fadas repousando no chão do quarto de infância, e não encontrei nenhum livro tão sensível de lá para cá. Deixei a ama-seca guardiã da tradição e da democracia, e não encontrei nenhum tipo moderno tão saudavelmente radical nem tão saudavelmente conservador. Mas o que é fundamental é o seguinte: quando entrei pela primeira vez na atmosfera mental do mundo moderno, descobri que o mundo moderno opunha-se positivamente em dois pontos à minha ama-seca e aos seus contos de fadas. Levei muito tempo para concluir que o mundo moderno está errado e que minha ama-seca estava certa. E o mais curioso era o seguinte: o pensamento moderno contradizia o credo básico da minha mocidade em suas duas doutrinas mais essenciais. Já expliquei que os contos de fadas enraizaram em mim duas convicções. Primeiro, que este mundo é um extraordinário e admirável lugar, que poderia ter sido muito diferente, mas que ainda assim é deslumbrante; segundo, que diante de tal maravilha e de tal encanto, podemos muito bem ser modestos e submissos às mais bizarras limitações de tão bizarra benevolência. Mas encontrei todo o mundo moderno como uma imensa torrente opondo-se a esses meus dois pareceres; e o choque dessa colisão criou dois súbitos e espontâneos sentimentos, que tenho conservado desde então e que, de germes que eram, sedimentaram-se em convicções.
Primeiro, encontrei todo o mundo moderno falando de fatalismo científico; dizendo que todas as coisas são como sempre foram, desdobrando-se infalivelmente desde o princípio. A folha da árvore é verde porque não poderia ser de outra maneira. Ora, o filósofo do país das fadas alegra-se pelo verde da folha precisamente porque ela poderia ter sido escarlate. Para ele, é como se a folha tivesse ficado verde um instante antes de ele a ter visto. Ele sente-se feliz porque a neve é branca exatamente pelo razoável motivo de que ela poderia ter sido preta. Toda cor tem em si mesma uma nítida qualidade, como se fosse escolhida; o vermelho de um jardim de rosas não é só decidido, mas dramático, como um súbito derramamento de sangue. O filósofo sente que alguma coisa foi FEITA. Mas os grandes deterministas do século XIX opunham-se fortemente a esse natural sentimento de que alguma coisa tinha acontecido há apenas um instante. De fato, segundo eles, nada tinha realmente acontecido desde o começo do mundo. Não tinha acontecido nada desde que a existência acontecera; e mesmo quanto à data em que isto se dera eles não tinham certeza.
O mundo moderno que eu encontrei era consistente para o moderno calvinismo, pela necessidade de que as coisas sejam como são. Mas quando comecei a interrogá-los, descobri que eles não tinham mesmo nenhuma prova dessa inevitável repetição nas coisas exceto o fato de que as coisas se repetiam. Ora, para mim a mera repetição tornava as coisas antes mais misteriosas do que mais racionais. Era como se, tendo visto na rua um nariz com uma forma esquisita e tendo-o perdido de vista por qualquer motivo, voltasse depois a ver outros seis narizes com a mesma espantosa forma. Num primeiro momento eu imaginaria tratar-se de alguma sociedade secreta local. Assim, um elefante de tromba era bizarro; mas todos os elefantes com trombas parecia uma conspiração. Falo aqui apenas de uma impressão, e de uma impressão ao mesmo tempo obstinada e sutil. Mas a repetição na Natureza parecia-me às vezes ser uma repetição exaltada, como a de um professor enfurecido dizendo a mesma coisa muitas e muitas vezes. A grama parecia acenar para mim com todos os seus dedos; as inumeráveis estrelas pareciam querer ser compreendidas. O Sol acabaria fazendo com que eu o visse, caso se erguesse milhares de vezes. As recorrências do universo surgiam ao ritmo estonteante de um encantamento, e eu comecei a vislumbrar uma idéia.
Todo o altaneiro materialismo que domina o pensamento moderno apoia-se em última análise numa suposição; numa falsa suposição. Supõe-se que se uma coisa repete-se constantemente ela provavelmente está morta; é uma peça de relojoaria. As pessoas acham que se o Universo fosse pessoal ele deveria variar; que se o Sol fosse vivo ele deveria dançar. Isto é uma falácia mesmo em relação a fatos conhecidos. A variação no mundo dos homens é geralmente produzida não pela vida, mas pela morte; pelo enfraquecimento ou pela interrupção da sua força ou do seu desejo. Um homem varia os seus movimentos por causa de algum tênue princípio de deficiência ou de fadiga. Entra num ônibus porque está cansado de andar; ou passeia porque está cansado de ficar parado. Mas se a sua vida e a sua alegria fossem tão imensas que ele nunca cansasse de ir até Islington, podia ir até Islington com a mesma regularidade com que o Tâmisa vai para o Sheerness. A própria velocidade e o êxtase de sua vida teriam a quietude da morte. O sol levanta-se todas as manhãs. Eu não me levanto todas as manhãs; a variação porém não se deve à minha atividade, mas à minha inação. Ora, para usar uma frase popular, pode ser que o Sol levante-se regularmente porque nunca se cansa de levantar-se. A sua rotina pode provir não de uma falta de vitalidade, mas de uma torrente de vida. O que eu quero dizer pode ser observado, por exemplo, nas crianças, quando descobrem algum jogo ou brincadeira de que gostam muito. Uma criança balança ritmicamente as pernas devido a um excesso, e não a uma ausência de vida. As crianças têm uma vitalidade abundante, são impetuosas e livres de espírito, e portanto querem as coisas repetidas e inalteradas. Elas sempre dizem "De novo"; e o adulto faz de novo até ficar quase morto. Os adultos não são suficientemente fortes para exultarem na monotonia. Mas talvez Deus seja suficientemente forte para exultar na monotonia. É possível que Deus diga ao sol todas as manhãs: "De novo", e diga à lua todas as noites: "De novo". Pode ser que não seja uma necessidade automática que faz todas as margaridas iguais; pode ser que Deus faça cada margarida separadamente, e que nunca tenha cansado de fazê-las. Pode ser que Ele tenha um eterno apetite de infância; pois nós pecamos e envelhecemos, e nosso Pai é mais jovem do que nós. A repetição na Natureza pode não ser uma simples recorrência; ela pode ser um BIS de teatro. O céu pode ter pedido BIS ao pássaro que pôs um ovo. Se o ser humano concebe e dá à luz um bebê humano em vez de dar à luz um peixe, ou um morcego, ou um grifo, pode ser que não seja pelo fato de estarmos fixados em um destino animal sem vida ou finalidade. Pode ser que a nossa pequena tragédia tenha impressionado os deuses, que eles admirem-na lá do alto das suas cintilantes galerias, e que ao final de cada drama humano o homem seja chamado uma e outra vez à boca de cena. E a repetição poderá continuar por milhares de anos, por pura escolha, e em qualquer instante poderá acabar. Os homens podem permanecer na terra por gerações e gerações, e entretanto cada nascimento poderá muito bem ser a sua última apresentação.
Esta foi minha primeira convicção, gerada pelo encontro entre minhas impressões infantis e o credo moderno. Tive sempre o vago sentimento de que os fatos são milagres no sentido de que são maravilhosos; agora comecei a considerá-los milagres no estrito sentido de que eram INTENCIONAIS. Isto quer dizer que eles eram, ou poderiam ser, repetidos atos de alguma vontade. Em suma, sempre acreditei que o mundo tinha alguma coisa de mágico; e agora eu penso que ele talvez tenha alguma coisa a ver com um mágico. E isto originou uma profunda impressão sempre presente e subconsciente; a de que este nosso mundo tem alguma finalidade; e, se há uma finalidade, há alguém. Sempre considerei a vida antes de tudo como uma história: e se há uma história há um contador de histórias.
Mas o pensamento moderno também feria minha segunda tradição humana. Ele contrariava a visão das fadas sobre limites e condições. A única coisa de que ele gostava de falar era de expansão e de amplitude. Herbert Spencer (15) teria ficado muito aborrecido se alguém lhe chamasse de imperialista, e entretanto é uma grande pena que ninguém o tenha feito. Mas ele era um imperialista do pior tipo. Foi ele quem popularizou a desprezível noção de que o tamanho do sistema solar deveria intimidar o dogma espiritual do homem. Por que deveria um homem renunciar à sua dignidade diante do sistema solar e não diante de uma baleia? Se o mero tamanho prova que o homem não é a imagem de Deus, então uma baleia pode ser a imagem de Deus; uma imagem um tanto disforme, o que poderíamos chamar de um retrato impressionista. É quase inútil argumentar que o homem é pequeno comparado com o cosmos; o homem sempre foi pequeno comparado com a árvore mais próxima. Mas Herbert Spencer, no seu arrojado imperialismo, insistiria em que de alguma forma nós fomos conquistados e anexados pelo universo astronômico. Ele falava dos homens e de seus ideais exatamente como o mais insolente Unionista (16) fala sobre o irlandês e seus ideais. Spencer transformou a humanidade numa pequena nacionalidade. E sua má influência pode ser observada nos mais fogosos e honoráveis dos recentes autores científicos; principalmente nos primeiros romances de H. G. Wells (17). Muitos moralistas exageram em uma representação da terra como perversa. Mas Wells e a sua escola tornaram perverso o próprio céu. Deveríamos levantar nossos olhos para as estrelas, de onde viria nossa ruína.
Mas a expansão de que falo era muito mais perniciosa do que tudo isto. Já observei que o materialista, como o louco, está na prisão; na prisão de um pensamento. Essa gente parecia pensar que era singularmente animador manter a afirmação de que a prisão era muito grande. Mas o tamanho desse universo científico não nos trouxe nenhuma novidade, nenhum alívio. O cosmos continuaria sempre existindo, mas não havia nada nessa extraordinária constelação que fosse realmente interessante; nada, por exemplo, como o perdão ou o livre arbítrio. A grandeza ou a infinitude do segredo desse cosmos nada lhe acrescentava. Era como dizer a um condenado da penitenciária de Reading que ele deveria alegrar-se em saber que agora o presídio se estendia por todo o país. O diretor do presídio não teria nada para mostrar a esse homem exceto mais e mais longos corredores de pedra, iluminados por luzes fantasmagóricas e vazios de tudo aquilo que é humano. Assim também esses ampliadores do universo nada têm para nos mostrar exceto mais e mais infinitos corredores de espaço iluminados por sóis fantasmagóricos e vazios de tudo aquilo que é divino.
No país das fadas havia uma lei positiva; uma lei que podia ser desrespeitada, pois a definição de uma lei é alguma coisa que pode ser desrespeitada. Mas o maquinismo dessa prisão cósmica era alguma coisa que não podia ser desrespeitada; porque nós mesmos éramos apenas uma parte desse maquinismo. Ou éramos incapazes de fazer as coisas ou estávamos condenados a fazê-las. A idéia da condição mística desaparecia totalmente; não se podia ter nem a força para respeitar as leis nem o gosto de infringi-las. A imensidão desse universo nada tinha dessa frescura e dessa arejada insurreição que admiramos no universo do poeta. Esse universo moderno é literalmente um império; quer dizer, ele é vasto, mas não é livre. Caminha-se através de amplas e cada vez mais amplas salas sem janelas, salas grandes com uma perspectiva babilônica; mas jamais encontra-se nele a menor janela ou postigo que abra-se para fora.
As suas infernais paralelas pareciam expandir-se com a distância; mas para mim todas as boas coisas vão até certo ponto; as espadas, por exemplo. Assim, achando a ostentação do grande cosmos muito insatisfatória para o meu gosto, comecei a refletir um pouco sobre tudo isso; e logo descobri que essa atitude como um todo era bem mais superficial do que era de se esperar. De acordo com essas pessoas o cosmos era uma coisa, uma vez que ele tinha uma regra inviolável. Só que (deveriam elas dizer), uma vez que ele é uma coisa, ele é também a única coisa que existe. Por que então deveríamos ter a preocupação de chamá-lo grande? Não existe nada para ser comparado com ele. Seria igualmente razoável chamá-lo pequeno. Um homem pode dizer: "Eu gosto desse vasto cosmos, com a sua multidão de estrelas e com as suas mais diversas criaturas." Mas, se vamos a isto, por que não pode um homem dizer: "Eu gosto deste aconchegante pequeno cosmos, com o seu exato número de estrelas e com a justa provisão de criaturas que eu gostaria de ver"? Um teria tanta razão quanto o outro; em ambos os casos trata-se de meros sentimentos. É um mero sentimento regozijar-se porque o sol é maior do que a terra; e é um sentimento mais saudável regozijar-se porque o sol tem o tamanho que tem. Um homem prefere emocionar-se com a grandeza do mundo; por que ele não poderia escolher emocionar-se com a sua pequenez?
Acontece que eu senti essa emoção. Quando alguém gosta de alguma coisa dirige-se a ela por meio de diminutivos, mesmo se ela for um elefante ou um salva-vidas. A razão é que, por maior que ela seja, se pode ser concebida como uma coisa inteira, pode ser concebida como uma coisa pequena. Se os bigodes de um militar não sugerissem uma espada ou as presas de um animal não sugerissem uma cauda, então o objeto seria vasto, porque seria incomensurável. Mas, a partir do momento em que você pode imaginar um salva-vidas, você pode imaginar um salva-vidas pequeno. A partir do momento em você vê de fato um elefante, você pode chamá-lo de "Tiny" (18). Se você pode fazer uma estátua de alguma coisa, poderá fazer uma estatueta dela. Aquelas pessoas professavam que o universo é uma coisa coerente; mas elas não gostavam do universo. Eu porém gostava tremendamente do universo e queria tratá-lo por um diminutivo. Eu o fiz muitas vezes, e não me parece que ele tenha se incomodado. De fato, e de verdade, acho que esses confusos dogmas sobre a vitalidade seriam melhor expressos dizendo que o mundo é pequeno do que dizendo que ele é grande. Pois acerca da infinitude houve uma espécie de descuido que era o reverso do ardente e piedoso cuidado que eu sentia em relação ao inestimável valor e ao risco da vida. Eles ostentavam somente um triste desperdício; mas eu sentia uma espécie de sagrada economia. Pois a economia é muito mais romântica do que a extravagância. Para eles, as estrelas eram uma infindável renda de meio pêni; mas eu sentia-me em relação ao sol dourado ou à prateada lua como se sente o estudante que possui apenas um soberano ou um xelim.
Essas convicções subconscientes são melhor descritas pela cor e pelo tom de certos contos. Assim, eu disse que somente as histórias de mágica são capazes de expressar o meu sentimento de que a vida não é somente um prazer mas uma espécie de excêntrico privilégio. Posso expressar esse outro sentimento de aconchego cósmico pela alusão a outro livro sempre lido na mocidade, "Robinson Crusoé", que eu li nesse período, e que deve a sua eterna vitalidade ao fato de celebrar a poesia dos limites, ou melhor, o extraordinário romance da prudência. Crusoé é um homem que se encontra numa pequena rocha com os poucos confortos que trouxe do mar, e a melhor coisa do livro é justamente a lista das coisas que foram salvas do naufrágio. O maior dos poemas é um inventário. O mais simples utensílio de cozinha torna-se ideal porque Crusoé poderia tê-lo perdido no mar. É um bom exercício, nas horas vagas ou tristes do dia, olhar para alguma coisa, o balde de carvão ou a estante de livros, e pensar como seria feliz uma pessoa que conseguisse levar aqueles objetos de um navio prestes a afundar para uma ilha solitária. Mas é um exercício ainda melhor lembrar-se de como todas as coisas escaparam por um fio de cabelo: todas as coisas foram salvas de um naufrágio. Todo o homem passou por uma terrível aventura: se acontecesse um secreto parto prematuro, ele não teria existido, como as crianças que nunca viram a luz. Na minha mocidade os homens falavam freqüentemente sobre decaídos ou arruinados homens de gênio, e era comum dizerem de muitos que eram um Grande Poderia-Ter-Sido. Para mim é um fato mais denso e mais impressionante que qualquer homem que encontro é um Grande Poderia-Não-Ter-Sido.
Mas eu realmente sentia (a fantasia pode parecer tola) como se a ordem e o número das coisas fossem os românticos despojos do navio de Crusoé. O fato de haver dois sexos e um sol era semelhante ao fato de haver duas armas e um machado. Era imperiosamente necessário que nenhuma dessas coisas se perdesse; mas também era engraçado que nenhuma outra poderia ser-lhes acrescentada. As árvores e os planetas pareciam-me coisas salvas de um naufrágio, e quando vi o Matterhorn fiquei feliz por ele não ter sido esquecido na confusão. Sentia-me econômico quanto às estrelas como se elas fossem safiras (elas são chamadas assim no Paraíso de Milton); eu entesourava as montanhas. Pois o universo é uma jóia única, e embora seja natural falar que uma jóia é incomparável e inestimável, em relação a essa jóia isto é literalmente verdadeiro. Este cosmos não tem mesmo comparação nem preço, pois não pode haver outro igual.

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NOTAS

1. Membro de uma associação revolucionária fundada em Paris em 1788.
2. Partidário dos Stuarts, na Inglaterra, que se opunham à casa de Hanovre.
3. "Exaltou os humildes." Lucas, I, 52.
4. Haeckel, Ernst H. (1834-1919). Biólogo e filósofo alemão, evolucionista, foi quem sugeriu que a ontogenia recapitula a fologenia.
5. Huxley, Thomas H. (1825-1895) Biólogo inglês, protetor de Charles Darwin; foi presidente da Royal Society de 1883-1885; avô de Aldous Huxley, foi Thomas Huxley quem cunhou a palavra "agnóstico".
6. O termo inglês para designar "admiração" é "wonder", que significa, primariamente, "prodígio, milagre" e, secundariamente, a admiração que o milagre produz.
7. Lang, Andrew (1844-1912). Escritor e erudito escocês.
8. Nome de um bobo que é um dos personagens da peça As you like, de Shakespeare.
9. Yeats, William B. (1865-1939). Dramaturgo e poeta irlandês, prêmio Nobel de Literatura de 1923.
10. "Cavalgam sobre a crista das ondas desgrenhadas
"E dançam sobre as montanhas como uma chama."
11. Membro de uma associação revolucionária irlandesa, fundada em 1861, para libertar a Irlanda do domínio inglês.
12. Rua de Londres situada no bairro do jornalismo e notável pelas suas tabernas de feição muito antiga.
13. Nome de um distrito de Londres.
14. Pastor grego que, segundo a lenda, foi amado por Selene, deusa da Lua, a qual obteve de Júpiter que o seu amante conservasse a beleza num sono eterno, durante o qual ela vinha contemplá-lo e beijá-lo.
15. Spencer, Herbert (1820-1903). Filósofo e sociólogo inglês, darwinista, fundador do Darwinismo Social.
16. Membro do Partido Unionista, na Inglaterra.
17. Wells, Herbert G. (1866-1946). Escritor, historiador e utopista, pioneiro em textos de ficção científica.
18. "Pequenino, minúsculo".