quarta-feira, 30 de maio de 2012

Ser Artista

Diz muito pouco hoje alguém ser artista, porque todo mundo, exceto os que se recusam, se veem no direito de se autodenominarem assim. O sujeito bate um pau na lata e é músico já... “genial”, dirão os especialistas dos “Eu quero tchu”; outro sobe no palco, diz dois versos de trevez e é ator consagrado, com direito a fã-clube e tudo.
Oh, meu Deus! Tão difícil encontrar um artista mesmo, um que nos lance na cara as nossas dores e idiossincrasias. Artista era Proust. E Deleuze soube artisticamente esmiuçar a obra do Tempo Perdido. Artista era Celine, que batia sem piedade o politicamente correto. Artista era Van Gogh, que para além do que o mundo queria ver, sabia do que precisava ele, sozinho, fazer emergir da noite estrelada. Artista é a Fernanda Montenegro, que torna o mistério visível em seu Viver Sem Tempos Mortos”, artista é o Antunes Filho que faz parecer simples e fácil o que é desafiador e eterno no humano. Artista é o Nelson Freire, que no leva para mundos profundos com seu piano negro. Artista era Quitana, que nem gostava de dar entrevistas.
Bom é ler, ouvir e ver alguém senhor de seu ofício (Borges, Otávio Paz, Joyce, Mann). Outro dia tive o prazer de ver uma demonstração de trabalho do Carlos Simioni, cheíssimo de graça e encantamento. Simplesmente bárbaro, verdadeiro, enternecedor. E só vendo-o se percebe que não se chega ali sem esforço, suor e sacrifício, sem dedicar a vida, o tempo, a alma.
A maioria que se diz artista não sofre as intempéries das tempestades, as solicitações dos ritos difíceis que a arte requer.  Vemos isso em suas mãos, nos rostos, na forma como falam e lidam com a própria existência.
A Marina Colasanti falava outro dia pra gente de projeto de vida, de que ser era para ela mais importante que o parecer ser. Ô Marininha, quem nos dera ter como meta estabelecer e correr os riscos que um plano de vida pressupõe, aos artistas e aos não artistas. Por ora, impera o mau gosto com respaldo dos estudiosos e tudo é igual a tudo, poucas diferenciações habitando o mundo sensível de agora. Escritores ruins ganham prêmios e se consagram, encenadores excelentes, como Almir Rodrigues, são esquecidos e deixados a resmungar no fundo da sala escura, sem ter quem, infelizmente, os ouça.
Se me perguntam se sou artista, costumo dizer que não, nego. Não quero ser. Me recuso. Deixo isso aos meus pares, de coração menos doído, de alma e semblantes mais leves, absolutamente despreocupados com as fatais dores do mundo.

quarta-feira, 23 de maio de 2012

Pêsames

Desculpem aí a minha fala triste de hoje. Não precisam ler, se não quiserem. Mas é que tem coisas que me roubam o chão, o norte e o gosto por viver.  Não sei se com todo mundo é assim. O suicídio, por exemplo, é uma delas. A principio, a morte, qualquer morte, me desestabiliza: a que leva tempo para se concretizar, se artefinalizando sem pressa, dia após dia, esculpindo no ser agonizante, com esmero, um cadáver, até que venha o derradeiro e desejado suspiro, a ultima batida no cinzel e a obra está acabada; e também aquela outra, que de súbito chega, sem recados, sem rodeios, pragmática, retirando num susto a peça do tabuleiro. Todas doem. Mas nenhuma deixa tanto amagor quanto saber de alguém que a si mesmo deu fim.
Ontem eu soube de Aldo. Conheci-o quando ministrava um minicurso de teatro no Córrego do Jenipapo, em Recife, há mais uma década. Ele então devia ter 13 ou 14 anos de idade e era um dos mais animados com os encontros. Montamos um Auto de Natal superdivertido, insubmisso, sem pieguices, inquietante e feliz. Não lembro qual papel ele desempenhava, mas lembro dele lá super atento, instigadíssimo. Naquele tempo ele começou a namorar Patrícia, uma mocinha de olhos claros e jeito doce, que vinha apenas para espiar, mas que não era da comunidade. Depois, como tinha de ser, nos perdemos todos de vista. Soube apenas um dia que Aldo e Patrícia haviam casado. E que tiveram um filho ou filha, não sei. E que estavam felizes, tocando a vida deles lá.
Então ontem, casualmente, entrei em uma loja a fim de comprar uma carteira nova e uma das atendentes era uma amiga dos tempos do auto de Natal. “Você soube do Aldo?”, perguntou. Deu um frio na espinha. Não, eu não sabia do Aldo. O que tinha havido? “Pois é, mês passado, tomou uma dose grande de chumbinho (raticida) e se foi”.
Assim, de forma direta, nua e crua: se foi.
Leva tempo para acreditar. E sempre dói para quem fica.
Sabe quando de repente uma paulada faz a gente perder os sentidos? Pois, é. Que pena! Veio aquele nó na garganta, apertado, uma vontade de chorar, de reclamar seja lá com quem for, uma falta de ar, um não sei quê. Vieram lembranças antigas, outras histórias de amigos e conhecidos, que se não foram, tentaram pelo menos. Por amor, por dívida, por desilusão, por não conseguir continuar, por desespero, por depressão, das mais diferentes formas. O fato é que alguns até que conseguiram. Deixando aos que ficaram as interrogações e descrenças.
Aldo se foi, querendo ir,por vontade própria, conscientemente. Pôs ponto final a tudo, por desrazão ou por excesso de motivos. E é tudo... infelizmente.