quinta-feira, 29 de novembro de 2012

“O poeta, quando é poeta, não descreve o mero aparecer do céu e da terra. Na fisionomia do céu, o poeta faz apelo àquilo que no desocultamento se deixa mostrar precisamente como o que se encobre. Em tudo o que aparece e se mostra familiar, o poeta faz apelo ao estranho enquanto aquilo a que se destina o que é desconhecido de maneira a continuar sendo o que é: desconhecido.”

Heidegger

quarta-feira, 28 de novembro de 2012

(O TEMPO QUE NÃO É) Ingenuamente incomum


 
Dois personagens confinados num espaço insólito, em um tempo oculto. Para abrir a porta e transpassar esse mundo burlesco no qual estão retidos, é preciso responder corretamente a uma pergunta antes daquelas pessoas – o público – irem embora. Os motivos para que isso aconteça são vários e enumerados pelos próprios personagens. No entanto, algo as (nos) motiva a ficar: a magia que o Grupo Tróia de Taipa traz para o palco. A peça Tempo que não é rompe barreiras convencionais e dá lugar a fadas, sonhos, lendas, imaginação. Uma ingenuidade rara nos tempos atuais compõe essa montagem, onde os conflitos também estão presentes.

Três sinais ao longo da peça indicam que o tempo está se esgotando e o momento de responder à pergunta se aproxima. É preciso fazê-lo logo se quiser sair daquela espécie de limbo. E os personagens de Fabiana Coelho e Rita Marize querem. Não há um sentido lógico para esse querer, uma vez que os personagens contemplam o outro lado – onde está o público – sem que fique claro se algum dia eles já fizeram parte desse mundo do qual tanto almejam fazer parte. Ora, mas a montagem dispensa esse tipo de lógica. O texto, uma criação coletiva do Tróia de Taipa, transborda uma coesão interna que justifica tudo o que é apresentado, mesmo diante da falta de coerência que sobra para o espectador.

A direção da peça fica a cargo de Quiercles Santana, que poderia ter imprimido um ritmo maior à encenação. Aquele espreguiçar todo logo no início é maçante, assim como alguns outros momentos. Mas nada que ofusque o encantamento que caracteriza Tempo que não é. Os recursos sonoros e a iluminação impecável de Lilian Kellen contribuem decisivamente para esse vislumbre. O figurino também corresponde perfeitamente ao que é sugerido e as atrizes dão um show de interpretação. A risada de Rita Marize desarma qualquer espectador mais desconfiado. Assim, o grupo Tróia de Taipa cumpre ao que se propõe com a encenação da peça.

No entanto, uma inconstância não pode deixar de ser observada, considerando que a montagem é voltada para o público adulto: há um horizonte enorme que poderia ter sido mais bem explorado, com questionamentos mais profundos acerca das escolhas que cada um de nós fazemos. Essas questões já são suscitadas no espetáculo, mas de maneira superficial. O ambiente lúdico – característico quando se quer falar de lendas e fadas – poderia estar menos presente ou ser menos intenso, com mais inserções de hiatos – os momentos em que as atrizes falam por si mesmas, lendo poemas ou cartas.

Por que os personagens precisam, necessariamente, falar como crianças? Uma opção estética que não deixa de ser acertada, mas que acabou por limitar a encenação, deixando dúvidas acerca do público-alvo da peça. Os adultos são menos sensíveis – ou escolhem ser assim –, de modo que é preciso utilizar outros recursos para se chegar até eles. Para aqueles que se deixam levar pela sensibilidade e abraçam a proposta do Tróia de Taipa, a experiência de fazer parte de alguma forma desse Tempo que não é é simplesmente encantadora.
Por George Carvalho (EM 11 DE SETEMBRO DE 2006)

http://cinecritica.wordpress.com/2006/09/11/tempoquenaoe/

quinta-feira, 22 de novembro de 2012

Pessoas e coisas


Há coisas tão desprezadas que lembram
                  pessoas em abandono.
Assim o tijolo que sobrou da construção,
                  o retrato além do número e que ficou
entre estranhos na gaveta
do fotógrafo, a palavra no dicionário, vizinha
da que saiu para o poema.

E mais a palavra sem acolhimento pelo próprio ouvido;
                  o poema no canto da mesa, excluído
                  do livro a publicar,
e o morto do outro enterro.

Mas há pessoas em tal abandono que lembram
coisas desprezadas, Senhor, que não ouso, expô-las
no poema, receoso de que, descobrindo-se ao sol,
duvidem da Tua Justiça e da Tua Misericórdia.


Geraldino Brasil
Do livro Poetas da Rua do Imperador. Recife, Pool, 1986.

quarta-feira, 21 de novembro de 2012

Trechos de "Fome"

"Durante todo o verão vagueei pelos cemitérios ou no Parque do Castelo: aí me abancava e escrevia artigos para os jornais, colunas e mais colunas, sobre as coisas mais diversas: invenções estranhas, maluquices, fantasias de cérebro agitado. Em desepero, escolhia frequentemente os assuntos menos atuais, que me custavam longas horas de esforço e nunca eram aprovados. Acabado o artigo, atacava outro, e raramente me desencorajava pelo "não" dos redatores-chefes, dizia sempre a mim mesmo que acabaria vencendo. E, de fato, se estava de veia e o artigo saía bem feito, acontecia-me receber cinco coroas pelo trabalho de uma tarde."

"A idéia de Deus voltou a preocupar-me. Era absolutamente injustificável de sua parte interpor-se toda vez que eu procurava um emprego, e estragar tudo, quando minha aspiração se resumia em ganhar o pão cotidiano. Eu observara muito bem que, se jejuasse durante um período bastante longo, era como se os miolos me escorresem suavemente do cérebro, esvaziando-o. A cabeça tornava-se leve, como que ausente; já não lhe sentia o peso sobre os ombros, e, se olhava para alguém, tinha a sensação de que meus olhos estavam fixos, arregalados.

Sentado no banco, e absorto nessas reflexões, sentia-me cada vez mais azedo com relação a Deus, por causa de suas insistentes provocações. Se ele supunha chamar-me para junto de si e aperfeiçoar-me pelo martírio, acumulando mortificações em meu caminho, estava um tanto enganado, podia garantir-lhe. levantei os olhos para o Altíssimo, quase chorando de orgulho desafiador, e disse-lhe essas coisas uma vez por todas, mentalmente."


Trechos de "Fome", de  Knut Hansum
(visitar o blog  "Todos Nós Lemos": http://nos-todos-lemos.blogspot.com.br/2010/09/knut-hamsun-fome.html)

Fome, de Hansum


Zolthan e eu trocavámos algumas ideias sobre Filosofia e Literatura, pouco antes do suicídio. Foi ele quem me apresentou Gustavo Corção, um dos nomes mais injustiçados da literatura brasileira. E foi ele também quem me falou de “Fome”, obra-prima da literatura mundial do século XIX, escrita pelo norueguês Knut Hansum, ganhador do Prêmio Nobel de 1920 (que aqui no Brasil ganhou tradução de Carlos Drummond)
Flávio Renovatto, que é um doido varrido por cinema de arte, em uma das tantas sessões a que assistiu na Janela Internacional de Cinema, garimpou na porta do Cine São Luiz, uma pequena pérola: a adaptação cinematográfica da novela de Hansum.
Em 1966, o dinamarquês Henning Carlsen transpôs para o cinema uma das histórias mais tocantes sobre o orgulho e o destino de um homem. Trata-se da história de Pontus, um jovem escritor que tenta sobreviver do ofício na gélida cidade da Christiânia, mas cuja vida é das mais difíceis porque não consegue dinheiro para comer. Literalmente, ele passa fome e alucina na luta para manter a dignidade e o orgulho.
Assisti ontem à noite e ainda estou impactado. Além de uma interpretação primorosa de Per Oscarsson, que ganhou do prêmio de melhor ator em Cannes, o filme tem uma fotografia (em preto e branco) absolutamente avassaladora. Inesquecível!

http://www.youtube.com/watch?v=M1HMw4Xw4KU


terça-feira, 20 de novembro de 2012

Deleuze

"Quando se trabalha está-se forçosamente numa solidão absoluta. Não se pode fazer escola, nem fazer parte de uma escola. Há apenas trabalho nas trevas, e clandestino. Só que é uma solidão extremamente povoada. Não povoada de sonhos, de fantasmas nem de projectos, mas de encontros. Um encontro, é talvez o mesmo que um devir ou umas núpcias. É do fundo dessa solidão que se pode dar qualquer encontro
. Encontram-se pessoas (e por vezes sem as conhecer nem as ter jamais visto), mas também movimentos, ideias, acontecimentos, entidades. Todas estas coisas têm nomes próprios, mas o nome próprio não designa de modo algum uma pessoa ou um sujeito. Designa um efeito, um ziguezague, alguma coisa que passa ou que se passa entre dois como sob uma diferença de potencial"

O Espelho


Esse que em mim envelhece
assomou ao espelho
a tentar mostrar que sou eu.

Os outros de mim,
fingindo desconhecer a imagem,
deixaram-me a sós, perplexo,
com meu súbito reflexo.

A idade é isto: o peso da luz
com que nos vemos.

Mia Couto (Maputo, 2006)

segunda-feira, 19 de novembro de 2012

Hinos de Holderlin

"'Princípio' não é o mesmo que 'começo'. Uma nova situação meteorológica, por exemplo, começa com uma tempestade, mas o seu princípio é a total alteração das condições atmosféricas que a precede. O começo é aquilo com que algo se inicia, o princípio é aquilo de onde isso vem. A Guerra Mundial principiou há séculos na História espiritual e política do Ocidente. a Guerra mundial começou com escaramu
ças entre postos avançados. O começo é cedo deixado ara trás, desaparecendo na continuação dos acontecimentos. O princípio, a origem, pelo contrário, evidencia-se primeiramente por entre os acontecimentos e só no fim destes está plenamente presente. Quem começa muita coisa, muitas vezes nunca chega ao princípio. Acontece que nós humanos nunca podemos principiar com o princípio - disso só um deus é capaz -, pelo contrário temos de começar, isto é, partir de um início que só conduz à origem ou a indica."

MARTIN HEIDEGGER

Um Pedaço de Clarice

“Enfm, enfim quebrara-se realmente o meu invólucro - e sem limite eu era. Por não ser, era. Até ao fim daquilo que eu não era, eu era. O que não sou eu, eu sou. Tudo estará em mim, se eu não for; pois 'eu' é apenas um dos espasmos instantâneos do mundo. A minha vida não tem sentido apenas humano, é muito maior - é tão maior que, em relação ao humano, não tem sentido. Da organização geral que era maior que eu, eu só havia até então percebido os fragmentos, as imagens. Mas agora, eu era muito menos que humana - e só realizaria o meu destino especificamente humano se me entregasse, como estava me entregando, ao que já não era eu, ao que já é inumano. E entregando-me com a confiança de pertencer ao desconhecido, à imagem. Pois só posso rezar ao que não conheço. E só posso amar a evidência desconhecida das coisas, e só me posso agregar ao que desconheço. Só esta é que é uma entrega real.”

Clarice Lispector

quinta-feira, 8 de novembro de 2012

Murnau, Aurora e Bram Stoker


Foi assim: um dia, na casa do bom Almir, lemos um artigo do Olavo de Carvalho, que eu tinha descoberto via Zottan. O artigo era sobre “Aurora”, filme de F.W. Murnau, de quem eu já tinha assistido “A Última Gargalhada” (1924), por si somente, um trabalho inestimável, feito ainda na fase alemã, mas que está longe ainda da pujança de “Aurora”, filme em preto e branco, mudo, mas de uma eloquência avassaladora, de uma beleza que não dá para descrever aqui: cheio de símbolos, metáforas, mistérios, plasticamente inacreditável, com uma narrativa repleta de surpresas e atuações inenarráveis (ganhou 03 Oscars, inclusive o de melhor atriz para Janet Gaynor).
Murnau se formou em História da Arte na Universidade de Heidelberg, foi piloto da Força Aérea alemã na Primeira Guerra Mundial e depois virou assistente de Max Reinhardt no teatro. Em 1919 estreou no cinema ao dirigir Der Knabe in Blau. Realizou uns trabalhos menores no cinema até que veio a dirigir Nosferatu (Nosferatu, o Vampiro, 1922): livre adaptação de “Drácula”, de Bram Stoker (autor, cuja data de nascimento, há 165 anos, se comemora exatamente hoje). Interessante saber que o diretor foi acusado de plágio pela viúva de Stoker, que exigiu a destruição de todas as cópias do filme.
Em 1927, agora já morando nos EUA, ele filma “Aurora”, um drama sobre um camponês que resolve matar afogada a sua legítima esposa para viver com a amante da cidade grande, mas desiste de última hora. Somente isso? Não, não é somente isso, cara pálida. Parece simples assim, mas é dessa ideia aparentemente banal que o diretor nos dá socos no estômago e nos põe diante de uma desconcertante poesia, delicada e comovente, sem ser nem um pouco piegas.
Murnau morreu em um acidente de automóvel na Califórnia, em 1931. Tinha então apenas 43 anos de idade. Infelizmente, para todos nós. Mas a sua obra precisa ser vista. Com urgência urgentíssima.

segunda-feira, 5 de novembro de 2012

Por espetáculos sem tempos mortos


“Sofrível” qualifica alguma coisa? O espetáculo “Tuttotorna”, do CIRCO TEATRO GIULLARI é realmente muito muito ruim ou sou eu que envelheci cedo demais? O espetáculo da companhia ítalo-brasileira é letárgico, sem graça, com mais filosofia do que circo de verdade. Aqui ou ali se vê um ou outro número que mal dá para entusiasmar e já cai novamente no tédio de ações mal alinhavadas, como se os dois “artistas” em cena não soubessem muito bem o que tinham de fazer. Brochante! Puro encher linguiça para matar o tempo.
Sai do teatro lembrando de Almir Rodrigues que um dia me falou da vontade de abrir uma entidade que, se não me falha a memória, se chamaria SEDI (Sociedade dos Espectadores com Direito a Intervenção), na qual a plateia teria o direito de parar o espetáculo para interpelar os atores. “Ô meu, quem foi que te mandou fazer essa merda ai, rapaz?”, “Porque é que vocês perderam tanto tempo para isso ai?”, “Você tá querendo matar o meu tempo, filho? Tempo é vida, sabia? Me ofereça algo vivo, pulsante, inteligente, faz favor!”
E, creiam, por vivo não entendo somente espetáculos com acrobacias e pirofagia abundante. Pode ser algo como o “Esperando Godot”, de Beckett, dirigido pelo João Denys em meados da década de 1990, aonde não acontecia nada, mas a atmosfera pesava de significação. Era muito vivo e de uma inteligência fodida.
Mas o trabalho de ontem, pelo amor de Deus! É claro, contudo, que deve ter agradado a uma ou outra pessoa presente no Teatro Apolo (Em Recife). Sempre há quem extraia grãos de ouro de puro esterco, quem consiga (como Midas) fazer merda virar ouro. Mas a pergunta que fica mesmo é: porque diabos é que a curadoria achou por bem chamar este trabalho para compor a grade de programação do FESTIVAL INTERNACIONAL DE CIRCO DO BRASIL? Muito distante em termos de qualidade do “Maravillas”, da L’Ateneu Popular 9 Barris (da Espanha) e de “A Carta”, de Paolo Nanni (Dinamarca). Aqui sim trabalhos que dignificam a ocupação do palco e da vida do espectador... sem tempos mortos!

sábado, 3 de novembro de 2012

Paolo Nani e a nossa idiotia




Mesmo sendo uma pessoa um tanto quanto difícil (DIZEM POR AI) acabo que também sou fácil demais para dar risada. Vou ao teatro e, se acho alguma coisa engraçada, riu. Não sei se me entendem quando digo assim; é que não dou uma risadinha acanhada, escondida, mesquinha, entendem? Riu, riu mesmo, com a boca toda, acanalhadamente, como quem não tem mais tempo para rir no futuro e junta tudo para rir ali na hora. E isso às vezes me dá alguma chateação: ou a namorada me beliscando no escuro (o que, é verdade, não tem feito mais) ou alguém vindo perguntar, depois do espetáculo findado, por que é que eu tinha rido na hora errada. Que merda, meu! Foi assim uma vez quando fui ver o “Cordel do Amor Sem Fim”, uma ou duas cenas em que não medi os decibéis e mandei ver. E não é por que queira, é por que vem a vontade e não ponho filtros. Teve uma vez que estava lendo “Angústia” de Graciliano... meu Deus! Que livro hilário! Ai veio um amigo escritor me disse que não via aonde eu via graça. Acho que situação absurda que a personagem vive, o jeito do escritor por lá as descrições e os pensamentos do sujeito.
Ontem, que maravilha!, assistir ao espetáculo “A Carta”, do dinamarquês Paolo Nani. Criado em 1992, o trabalho a mesma história (um cara escrevendo uma carta e descobrindo depois que a caneta não tem tinta) de 15 maneiras diferentes. Quase sem palavras, o espetáculo é sensacional. Pura bobagem, feita com maestria. O nosso lado mais idiota, posto no palco, sem conta-gotas. 


quinta-feira, 1 de novembro de 2012


Conheci a Sontag por este livro sobre fotografias, puramente por acaso. Tinha ido à Cultura procurar outro título e, perdido na prateleira, estava um solitario exemplar. Louco pelo Goya, cai logo de olhos em cima. Comecei a ler ali mesmo na loja e, dois dias depois, já tinha chegado ao final. Me deixou um gosto de "quero mais", como fiquei ao término da "Câmara Clara", de Barthes. Quem for louco por fotografia e estiver a fim, o livro foi reeditado pela Cia. das Letras. Vale muito, puro deleite!


“Há tanta poesia, e no entanto, nada é mais raro que um poema!”, disse Schlegel. Eu concordaria com ele tempos atrás, mas não sei agora. Hoje estou mais para “Há tantos poemas e no entanto nada mais raro que poesia”