domingo, 3 de maio de 2015

CARTA A MEU PAI

Pai:

   Este é o primeiro Natal sem você e não está fácil. Agora você foi mesmo embora e nada pôde detê-lo, nem minhas preces nem minhas lágrimas nem o esforço dos médicos. Bem que eu tentei repetir a façanha de trinta anos atrás, você se lembra? Nós morávamos em três cômodos apertados e eu dormia na sala. Só nós três: mamãe, você e eu. Apesar da pobreza da sala -- um guarda-comida velho, uma mesa e quatro cadeiras, minha cama e a cantoneira do filtro --, tínhamos telefone e eu me considerava privilegiada entre os vizinhos daquele fundo de quintal. Mas meu privilégio não parava aí: você trabalhava num escritório e era visto como intelectual pelos operários que moravam em torno de nós. E eu tinha um orgulho danado disso. Eu amava você, porque era bonito, tinha as mãos limpas e sabia mais que os outros. Éramos placidamente felizes e acho que me faltava apenas um quartinho só meu, para que tudo fosse perfeito. Então, quando eu tinha dez anos, as coisas começaram a mudar. Ela era vizinha de seu serviço, ou sei lá o que e telefonava atrás de você quase todo dia. As brigas começaram a ficar freqüentes e mamãe estava sempre chorando pelos cantos. A situação foi piorando e no princípio de dezembro, no calor de uma briga mais feia, você anunciou que ia embora com ela antes do fim do mês. "Antes do Natal?" Perguntei espantada. Você me olhou zangado e saiu batendo a porta: acho que você estava mesmo apaixonado. 
    A partir deste momento eu vivi apavorada com a idéia de sua partida. Minha pobre cabeça de dez anos não concebia a vida sem você e, ao mesmo tempo, não conseguia inventar uma forma de evitar isso. Minha mãe não ajudava nada, entregue à sua tristeza e totalmente desanimada. Naquele tempo, eu era ingenuamente religiosa e acreditava que, se a gente pedisse com fé e a causa fosse justa, fatalmente a graça seria alcançada. Comecei a rezar com todo o afinco de que era capaz e, com o passar dos dias, adquiri a certeza de que tudo daria certo. Sentia uma calma estranha dentro de mim e comecei os preparativos para o Natal, como se nada de errado tivesse acontecido ou fosse acontecer.
  Criei um espaço só meu e passei a ignorar o ambiente cada vez mais tenso entre você e mamãe. Armei nosso pinheirinho de poucas bolas e algumas estrelas de papel e resolvi fazer eu mesma o bolo de Natal, já que mamãe permanecia alheia a tudo. Era um bolo complicado, meio bolo, meio pão, com frutas secas na massa e na cobertura. Você gostava muito e era uma tradição em nossa casa. Eu ajudava mamãe todos os anos, mas nunca fizera sozinha. Juro, pai, foi um sacrifício. Considerando o fogão de lenha, o ponto da massa e a minha inexperiência, o bolo só poderia sair como saiu: torto, duro e embatumado.
  E a noite de Natal chegou. Meu coração já estava miudinho e ficou mais apertado ainda, quando você entrou pisando duro, não quis jantar e foi para o quarto arrumar sua mala. Jogou tudo dentro, de qualquer jeito, despediu-se das coisas com um olhar rápido e me chamou com uma voz esquisita: "Venha dar um beijo no papai". Cega pelas lágrimas eu me pendurei em você e a única coisa que achei para dizer, aos arrancos, foi: "Nem... vai comer... um pedacinho de bolo? Eu fiz pra você... sozinha".
  Houve um momento suspenso no ar e eu senti, de repente, seus ombros descerem, derrotados. Você olhou para mim toda desfeita, para o triste bolo em cima da mesa, examinou a mala como se não fosse sua e colocou-a no chão numa desistência muda. Sentou-se, comeu corajosamente um pedaço de bolo e depois, debruçando-se sobre a mesa, chorou longamente seus planos perdidos. Então você tirou do bolso uma passagem de ônibus e, bem devagar, picou-a em pedacinhos: nossa vida voltava ao normal.
  Esses pedacinhos de papel, pai, que você jogou fora com seus anseios de aventura, eu os guardo até hoje. Houve muitos outros Natais, com bolos bem feitos, risos e alegrias, mas nunca mais recebi de você nem de ninguém um presente que me fizesse tão feliz. Mesmo agora, neste Natal que marca sua ausência física definitiva, aqueles papeizinhos quase desfeitos pelo tempo me consolam e me dão a certeza de que, de uma forma ou de outra, você dará sempre um jeito de continuar eternamente conosco. Feliz Natal.
Sua filha.


Maria Myrtes de Camargo Renesto (diretora da Escola Estadual Professor Alberto José Ismael, São José do Rio Preto).

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