quinta-feira, 31 de outubro de 2013

Manhã Crônica


Cansado já pela manhã, o sujeito entra no ônibus.
Está cheio. Muito cheio. Cheíssimo.
Demora, mas abre caminho entre outros sujeitos, igualmente cansados. 
Puxa da bolsa um livrinho. Tenta ler. Não consegue. Sacolejos. Desiste.
Lá pras tantas, alguém se levanta. Ele senta. De novo, abre o livro.
O trânsito está parado. Faz um calor dos demônios.
É quando entra em cena o cara da cura de drogados e similares.
Ele pertence a uma tal Instituição Manasós, especialista na cura pela palavra do Sinhô.
Deus com ele.
Lá fora, uma ambulância se esgueira entre os carros com sirenes apocalípticas.
E dentro, Deus começa a gritar palavras de ordem e exortação.
(às vezes, meu Deus, tão difícil diferenciar as palavras Suas das dos possuídos pelo Demo!)
Deus entra e joga saquinhos de canetas com ursinhos-chaveiro no colo dos cansados que estão sentados (pelo menos os em que estão em pé são deixados ao largo) e berra uns versículos, enquanto arrecada grana para Manasós.
Pela bagatela de dois reais uma senhorinha quer adquirir o seu ursinho-chaveiro com caneta. Mas queria uma caneta azul e não preta; e um ursinho cor de rosa e não cinza.
Manasós (ou Deus, não sei) procura a esmo na sua bolsa grande à tiracolo. Difícil de achar. Difícil mesmo é satisfazer os filhos/irmãos mais exigentes. Não tinha. Podia ser uma caneta azul com ursinho-chaveiro amarelo? Não, não podia. Mas podia ser ursinho-rosa com caneta preta.
Terminada a negociação, o cara da cura se foi desejando a todos a paz do sinhô.
O sujeito reabriu o livro, afinal. Tentou ignorar o calor e o barulho. Concentrar-se.
Neste exato momento a senhorinha descobriu que o ursinho-rosa tinha apito.
E pôs a apertar o quanto pôde o diabo do brinquedo.
E ria e apertava. E quanto mais apertava, mais ria. E quanto mais ria, apertava.
Lá fora um carro de polícia se espremia entre os automóveis.
E dentro um ursinho-chaveiro rosa apitava em ressonância.
E a manhã foi seguindo o seu curso divino, mas já terrivelmente cansado.

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