Gloria
de Guido Cavalcanti
Não sei, meus filhos, que
mundo será o vosso,
É possível, tudo é
possível, que ele seja
aquele que eu desejo para
vós. Um simples mundo,
onde tudo tenha apenas a
dificuldade que advém
de nada haver que não seja
simples e natural.
Um mundo em que tudo seja
permitido,
conforme o vosso gosto, o
vosso anseio, o vosso prazer,
o vosso respeito pelos
outros, o respeito dos outros por vós,
E é possível que não seja
isto, nem seja sequer isto
o que vos interesse para
viver. Tudo é possível,
ainda quando lutemos, como
devemos lutar,
por quanto nos pareça a
liberdade e a justiça,
ou mais que qualquer delas
uma fiel
dedicação à honra de
estar vivo.
Um dia sabereis que mais que
a humanidade
não tem conta o número dos
que pensaram assim,
amaram o seu semelhante no
que ele tinha de único,
de insólito, de livre, de
diferente,
e foram sacrificados,
torturados, espancados,
e entregues hipocritamente
à secular justiça,
para que os liquidasse "com suma piedade e sem
efusão de sangue"
Por serem fiéis a um deus, a um pensamento,
a uma pátria, uma
esperança, ou muito apenas
à fome irresponsável que
lhes roía as entranhas,
foram estripados,
esfolados, queimados, gaseados,
e os seus corpos amontoados
tão anonimamente
quanto haviam vivido ou suas cinzas dispersas
para que
delas não restasse memória.
Às vezes, por serem de uma
raça, outras
por serem de uma classe, expiaram todos
os erros que não tinham
cometido ou não tinham consciência
de haver cometido. Mas
também aconteceu
e acontece que não foram
mortos.
Houve sempre infinitas
maneiras de prevalecer,
aniquilando mansamente,
delicadamente,
por ínvios caminhos quais
se diz que não são ínvios os de Deus.
Estes fuzilamentos, este
heroísmo, este horror,
foi uma coisa, entre mil,
acontecia em Espanha
há mais de um século e que
por violenta e injusta
ofendeu o coração de um
pintor chamado Goya,
que tinha um coração muito
grande, cheio de fúria
e de amor. Mas isto nada é,
meus filhos.
Apenas um episódio, um
episódio breve,
nesta cadeia de que sois um
elo (ou não sereis)
de ferro e de suor e sangue
e algum sémen
a caminho do mundo que vos
sonho.
Acreditai que nenhum mundo,
que nada nem ninguém
vale mais que uma vida ou a
alegria de tê-la.
É isto o que mais importa -
essa alegria.
Acreditai que a dignidade em
que hão-de falar-vos tanto
não é senão essa alegria
que vem
de estar-se vivo e sabendo
que nenhuma vez
alguém está menos vivo ou
sofre ou morre
para que um só de vós
resista um pouco mais
à morte que é de todos e
virá.
Que tudo isto sabereis
serenamente,
sem culpas a ninguém, sem
terror, sem ambição,
e sobretudo sem desapego ou
indiferença,
ardentemente espero. Tanto sangue,
tanta dor, tanta angústia,
um dia- mesmo que o tédio de um mundo feliz vos persiga
-
não hão-de ser em vão.
Confesso que
muitas vezes, pensando no
horror de tantos séculos
de opressão e crueldade,
hesito por momentos
e uma amargura me submerge
inconsolável.
Serão ou não em vão? Mas,
mesmo que o não sejam,
quem ressuscita esses
milhões, quem restitui
não só a vida, mas tudo o
que lhes foi tirado?
Nenhum Juízo Final, meus
filhos, pode dar-lhes
aquele instante que não
viveram, aquele objeto
que não fruiram, aquele
gesto
de amor, que fariam
"amanhã".
E, por isso, o mesmo mundo que criemos
nos cumpre tê-lo com
cuidado, como coisa
que não é só nossa, que
nos é cedida
para a guardarmos
respeitosamente
em memória do sangue que
nos corre nas veias,
da nossa carne que foi
outra, do amor que
outros não amaram porque
lho roubaram.
Nenhum comentário:
Postar um comentário