domingo, 24 de maio de 2015

Outro dia estávamos conversando sobre ser criativo. Eu prefiro falar de ser criador, que é algo que foge aos enfeites e perfumarias (e muito mais difícil de alcançar)...

“Por que é que a tua atriz não diz os textos dependurada num tecido, era muito mais criativo”.  Sei. A questão está na necessidade imperiosa que temos de pirofagia: quanto mais fogos de artifício, melhor. Eu que tenho reais dificuldades com tudo o que é criativo, estou sempre tentando fugir das receitinhas, embora saiba que não estou jamais tentando redescobrir a pólvora. E sinto que muitos de meus pares tendem a colocar obstáculos com a simplicidade das coisas. E isso me tira de verdade a paciência. Faz lá o teu espetáculo e põe o teu tecido e pendura nele quem você quiser. Acho digno. Mas não é a minha... a não ser que o próprio processo de criação me solicite coisas assim, eu simplesmente me nego a fazê-lo. Que outros, mais criativos que eu, o façam.

sexta-feira, 22 de maio de 2015

Violência - Zizek

“A consciência ética ingênua nunca deixará de se surpreender pelo fato de que pessoas que cometem terríveis atos de violência contra seus inimigos possam manifestar uma calorosa humanidade e delicada preocupação em relação aos membros de seu próprio grupo. Não é estranho que o mesmo soldado que massacrava civis inocentes estivesse pronto a sacrificar a sua vida por sua unidade? Que o comandante que ordenava o fuzilamento de reféns pudesse na mesma noite escrever à sua família uma carta cheia de amor sincero?”


Slavoj Zizek

Sol! Luz e fortuna!

Hoje ouvi de minha atriz que ela nunca e jamais se sentira sozinha no palco (apesar do trabalho ser um monólogo) porque sabia que eu estava ali com ela o tempo todo. E me deu um abraço apertado, já em vias de voltar à sua Itália querida. Eu fico contente por que é a mais pura verdade. Não trabalho sozinho e este espetáculo em especial só foi possível porque o monólogo é de fato um diálogo de muitas vozes juntas, de muita escuta, de muita cooperação. E além do mais (fora uns momentos em que a gente de fato precisa), é muito ruim se sentir só... e mesmo quando estamos deveras só, nunca estamos. Há que se ter pelo menos os fantasmas (os nossos) por companhia. Boa viagem, Sol! Luz e fortuna!

Tranquilo

O que ele queria mesmo, o que alimentava secretamente em seu coração, era uma pausa mínima para dar asas a outras faces de seu ser. Não exatamente uma vida mais tranqüila, mais uma vida mais VIVA. Correndo sempre o tempo todo daqui para lá se sentia como se sua vida se esvaísse em desnecessidades alheias que não lhe supriam o vazio. Queria um espaço de tempo para beijar e passear com os seus filhos nas cascatas de Bonito. Uma rede para balançar com o seu amor. Um silêncio cheio de escuros aconchegantes debaixo de cobertores cálidos. Queria uma taça de vinho e uma música suave em contraplano. Queria sentir a vida um tantinho que fosse mais de perto. A felicidade talvez estivesse escondida na simplicidade das coisas amenas.

quinta-feira, 21 de maio de 2015

CARTA


Meu caro poeta,

Por um lado foi bom que me tivesses pedido resposta urgente, senão eu jamais escreveria sobre o assunto desta, pois não possuo o dom discursivo e expositivo, vindo daí a dificuldade que sempre tive de escrever em prosa. A prosa não tem margens, nunca se sabe quando, como e onde parar. O poema, não; descreve uma parábola tracada pelo próprio impulso (ritmo); é que nem um grito. Todo poema é, para mim, uma interjeição ampliada; algo de instintivo, carregado de emoção. Com isso não quero dizer que o poema seja uma descarga emotiva, como o fariam os românticos. Deve, sim, trazer uma carga emocional, uma espécie de radioatividade, cuja duração só o tempo dirá. Por isso há versos de Camões que nos abalam tanto até hoje e há versos de hoje que os pósteros lerão com aquela cara com que lemos os de Filinto Elísio. Aliás, a posteridade é muito comprida: me dá sono. Escrever com o olho na posteridade é tão absurdo como escreveres para os súditos de Ramsés II, ou para o próprio Ramsés, se fores palaciano. Quanto a escrever para os contemporâneos, está muito bem, mas como é que vais saber quem são os teus contemporâneos? A única contemporaneidade que existe é a da contingência política e social, porque estamos mergulhados nela, mas isto compete melhor aos discursivos e expositivos , aos oradores e catedráticos. Que sobra então para a poesia? - perguntarás. E eu te respondo que sobras tu. Achas pouco? Não me refiro à tua pessoa, refiro-me ao teu eu, que transcende os teus limites pessoais, mergulhando no humano. O Profeta diz a todos: "eu vos trago a verdade", enquanto o poeta, mais humildemente, se limita a dizer a cada um: "eu te trago a minha verdade." E o poeta, quanto mais individual, mais universal, pois cada homem, qualquer que seja o condicionamento do meio e e da época, só vem a compreender e amar o que é essencialmente humano. Embora, eu que o diga, seja tão difícil ser assim autêntico. Às vezes assalta-me o terror de que todos os meus poemas sejam apócritos!
Meu poeta, se estas linhas estão te aborrecendo é porque és poeta mesmo. Modéstia à parte, as disgressões sobre poesia sempre me causaram tédio e perplexidade. A culpa é tua, que me pediste conselho e me colocas na insustentável situação em que me vejo quando essas meninas dos colégios vêm (por inocência ou maldade dos professores) fazer pesquisas com perguntas assim: "O que é poesia? Por que se tornou poeta? Como escrevem os seus poemas?" A poesia é dessas coisas que a gente faz mas não diz.
A poesia é um fato consumado, não se discute; perguntas-me, no entanto, que orientação de trabalho seguir e que poetas deves ler. Eu tinha vontade de ser um grande poeta para te dizer como é que eles fazem. Só te posso dizer o que eu faço. Não sei como vem um poema. Às vezes uma palavra, uma frase ouvida, uma repentina imagem que me ocorre em qualquer parte, nas ocasiões mais insólitas. A esta imagem respondem outras. Por vezes uma rima até ajuda, com o inesperado da sua associação. (Em vez de associações de idéias, associações de imagem; creio ter sido esta a verdadeira conquista da poesia moderna.) Não lhes oponho trancas nem barreiras. Vai tudo para o papel. Guardo o papel, até que um dia o releio, já esquecido de tudo (a falta de memória é uma bênção nestes casos). Vem logo o trabalho de corte, pois noto logo o que estava demais ou o que era falso. Coisas que pareciam tão bonitinhas, mas que eram puro enfeite, coisas que eram puro desenvolvimento lógico (um poema não é um teorema) tudo isso eu deito abaixo, até ficar o essencial, isto é, o poema. Um poema tanto mais belo é quanto mais parecido for com o cavalo. Por não ter nada de mais nem nada de menos é que o cavalo é o mais belo ser da Criação.
Como vês, para isso é preciso uma luta constante. A minha está durando a vida inteira. O desfecho é sempre incerto. Sinto-me capaz de fazer um poema tão bom ou tão ruinzinho como aos 17 anos. Há na Bíblia uma passagem que não sei que sentido lhe darão os teólogos; é quando Jacob entra em luta com um anjo e lhe diz: "Eu não te largarei até que me abençoes". Pois bem, haverá coisa melhor para indicar a luta do poeta com o poema? Não me perguntes, porém, a técninca dessa luta sagrada ou sacrílega. Cada poeta tem de descobrir, lutando, os seus próprios recursos. Só te digo que deves desconfiar dos truques da moda, que, quando muito, podem enganar o público e trazer-te uma efêmera popularidade.
Em todo caso, bem sabes que existe a métrica. Eu tive a vantagem de nascer numa época em que só se podia poetar dentro dos moldes clássicos. Era preciso ajustar as palavras naqueles moldes, obedecer àquelas rimas. Uma bela ginástica, meu poeta, que muitos de hoje acham ingenuamente desnecessária. Mas, da mesma forma que a gente primeiro aprendia nos cadernos de caligrafia para depois, com o tempo, adquirir uma letra própria, espelho grafológico da sua individualidade, eu na verdade te digo que só tem capacidade e moral para criar um ritmo livre quem for capaz de escrever um soneto clássico. Verás com o tempo que cada poema, aliás, impõe sua forma; uns, as canções, já vêm dançando, com as rimas de mãos dadas, outros, os dionisíacos (ou histriônicos, como queiras) até parecem aqualoucos. E um conselho, afinal: não cortes demais (um poema não é um esquema); eu próprio que tanto te recomendei a contenção, às vezes me distendo, me largo num poema que vai lá seguindo com os detritos, como um rio de enchente, e que me faz bem, porque o espreguiçamento é também uma ginástica. Desculpa se tudo isso é uma coisa óbvia; mas para muitos, que tu conheces, ainda não é; mostra-lhes, pois, estas linhas.
Agora, que poetas deves ler? Simplesmente os poetas de que gostares e eles assim te ajudarão a compreender-te, em vez de tu a eles. São os únicos que te convêm, pois cada um só gosta de quem se parece consigo. Já escrevi, e repito: o que chamam de influência poética é apenas confluência. Já li poetas de renome universal e, mais grave ainda, de renome nacional, e que no entanto me deixaram indiferente. De quem a culpa? De ninguém. É que não eram da minha família.
Enfim, meu poeta, trabalhe, trabalhe em seus versos e em você mesmo e apareça-me daqui a vinte anos. Combinado?

Mario Quintana


terça-feira, 19 de maio de 2015

“Melhor sair para a rua... Ou entrar para a rua? Mas se a rua não fosse uma espécie SUI GENERIS de lar, porque se diz então 'A PORTA DA RUA' e não 'A PORTA DA CASA'”


Mario Quintana

DA DIFÍCIL FACILIDADE

“É preciso escrever um poema várias vezes para que dê a impressão de que foi escrito pela primeira vez”.


Mário Quintana

QUINTANA 5



“A nossa própria alma apanha-nos em flagrante nos espelhos que olhamos sem querer”

QUINTANA 4

“O relógio de parede numa velha fotografia – está parado?”

QUINTANA 3



“O fantasma é um exibicionista póstumo”

QUINTANA 2

“Sonhar é acordar-se para dentro”

QUINTANA 1

VIVÊNCIA

“O bom das filas é nos convencerem de que afinal esta pobre vida não é tão crta como dizem”

Mário Quintana

sexta-feira, 15 de maio de 2015

“É tão fácil fingir que fazemos teatro e fingir que assistimos teatro não é minha gente? É fácil eu fazer um espetáculo de merda e o outro assistir fingindo que gostou, amou e chegar no camarim dizendo "vc arrasa!" depois sair dali e, tomando uma cerveja, nem lembrar mais que espetáculo viu: "como era mesmo o nome? era uma mulher negra em cena. Ela falava umas coisas lá, nem lembro mais o que eram!" E Soraya por ser uma figurinha bem querida no meio da classe artística teatral, poderia ser ainda mais uma vitima desses falsos elogios que só acontecem realmente quando o espetáculo acaba lá no camarim ou quando encontram com ela pelo meio das ruas. Mas o que está acontecendo è uma coisa contraria e linda: as pessoas continuam lembrando do espetáculo viu, Soraya-não-descascada. As pessoas continuam publicando coisas em seu nome no Facebook por que o espetáculo ainda reverbera no cotidiano dessas pessoas. Agradeça aos Deuses Soraya por todo esse percurso lindo. Agradeça aos Deuses por terem lhe feito dar esse salto. agradeça todo dia e peça pra não esmorecer, pra não se envaidecer, pra não esquecer a missão que esse espetáculo tem com vc e com a sociedade. peça pra evoluir com Olhos de café quente ou no mínimo peça pra manter esta obra neste ritmo, nesta lubrificação. E prepare o couro por que vc não foi descascada o suficiente! hehehhehehehehheh! parabéns!”

Asaías Lira

Assistente de Direção

quarta-feira, 13 de maio de 2015

café quente


"Gosto muito de tomar café! Gosto muito do aroma do café! Gosto muito quando o café é passado em coador de pano, pois, o sabor é especial! Hoje conheci os “Olhos de café quente” um olhar especial dos queridos Soraya Silva e Quiercles Santana sobre a poesia de Carolina Maria de Jesus e Elisa Lucinda. Um café gostoso com sabor de memorias... Aquela historia que pode ser de qualquer um que tem na pele as marcas dos signos ficados, fincados e cravados... Na historia... Heranças e “erranças”... Da historia... Café forte daqueles pisados num pilão... Historia poética com o aroma de minha infância. Aquecendo minhas lembranças. Obrigado a todos envolvidos nesta produção por ter- me servido esse café de aroma especial com tão belas lembranças! Valeu muito querida Renata Phaelante! Um espetáculo que deve muito ser visto! Que volte logo uma nova temporada!"

Henrique Celibi

quinta-feira, 7 de maio de 2015

“O teatro é uma experiência muito forte, como se implicasse um despertar da consciência. É um CONHECIMENTO QUE CHEGA A CADA ESPECTADOR ATRAVÉS DO CORPO. Durante a representação, alguma coisa se revela no núcleo corporal do espectador. ISSO TEM A VER COM A SOLIDÃO DE CADA UM. Mas o teatro permite partilhar essa solidão com outras solidões. Cada solidão é igual dentro do coletivo chamado ‘público’, e procura a revelação de si mesma. O público é composto por essa justaposição de SOLIDÕES DESCONHECIDAS que, de repente, durante a representação, formam um só corpo. (...) O teatro, da forma como o concebo, é um aparato capaz de DESPERTAR O OLHAR do espectador. Nós precisamos partilhar o olhar, é uma necessidade. Mas não se trata de simples curiosidade, do olhar sem profundidade da comunicação, fixo, monótono como uma câmera de vigilância, sem nenhum campo de tensões. O olhar do teatro, que podemos partilhar durante o espetáculo, é, ao contrário, um OLHAR HIPNÓTICO, que se MOVIMENTA, é capaz de TRANSFORMAR E ‘FORMAR’ AS COISAS QUE VÊ (...) É o olhar do corpo, extremamente físico: funciona como um poro da pele por onde passam os humores, as emoções, as sensações e também o conhecimento. Os gregos chamavam isso de EPOPTEIA, o olhar de Elêusis, que é uma forma de engajamento: ELE CRIA A FORMA QUE OLHA, é carregado da maior POTÊNCIA possível. Portanto, é necessário passar pela força original do olhar, o que implica CONFIAR NO ESPECTADOR, DAR-LHE O PODER DE CRIAR, POR MEIO DO OLHAR, O ESPETÁCULO QUE VÊ. E o poder de criar é dado a todos. Meu espectador ideal seria aquele que entrasse no teatro por acaso: SEM FERRAMENTAS INTELECTUAIS, seu olhar é totalmente SENSAÇÃO, conhecimento por meio dos SENTIDOS, pura ABERTURA FÍSICA à representação, PORO ABERTO AOS AFETOS que vêm da cena.”


ROMEO CASTELLUCCI

terça-feira, 5 de maio de 2015

Sobre Olhos de Café... percepções de Flavinho

"Um poema em movimento, em forma de mulher também... Um poema que parecia flutuar... E sentado e dançando e rindo e falando suave, e falando forte, cheio de emoção e dramaticidade... Um poema com velas ao redor, em chamas, nos chamando... Com luzes frescas, luzes transparentes, ambas na pele do poema, transpassando a alma dele... Abrindo, fechando, expondo, escondendo... Uma música no poema, que arrebata, expõe a vida mais importante do poema no fim... Vida dos filhos, filhos poemas... Poemas de encenação tão simples, tão direta... De direção sabida, gradativamente sabida, inteligente, perspicaz... Manejou o poema de leveza, de tão rara beleza... Eita que vontade de dizer que o simples existe e é difícil, é difícil de existir... Quanto mais de ver, e eu vi... Me deleitei... Como fico agradecido... Agradecido... Que bom que vendo o poema beber e beber, beber e beber pra escrever e escrever... O preto, beber o preto pra escrever, a preta... Preta poema, escreve, escreve em folhas puras, poema de preta despojada, atenta, compenetrada, jogada, arisca... Preta mulher poema... Não há cansaço que vença com esse preto engolido. Essa preta bebendo e dizendo, dizendo... Dizendo e fazendo... E quando não fazia, sofria... Sofre, sofre e segue, tem que seguir dizendo, narrando a vida... O fado é um frouxo nó... A determinação é a morada da negra... E mais, e bem mais... Pra eternidade ficar, escreveu a vida não era escolha, sina. Sua.
Parabéns pra todos os seres poemas que realizaram Olhos de Café Quente"

Flavio Renovatto

sobre os OLHOS DE CAFÉ QUENTE

“Uma narrativa poética que convida todos Ser primeira pessoa!Um discurso atualizado que contempla uma civilização. São elas: Soraya Silva, Carolina Maria de Jesus, Elisa Lucinda....ou a quem se destinar. Em sua bela performance nos apresenta o cotidiano de uma mulher, negra, pobre, mãe, trabalhadora, cujo destino brincou entre voos e abismo. A outra, com esmeralda nos olhos, nos açoita a desigualdade pungente de manter o privilégio dos brancos. Com sagacidade extrema, a atriz preenche os poros do teatro com dentes em escárnio rasgando os olhos da verdade, e faz gritar o sonido dos corações que insistem em querer acelerar silenciosamente. Entre sombra e luz escancara as práticas racistas de forma lúcida e deixa como rastro o fogo consumido nos pingos de vela.
Olhos de café quente. Uma peça com conteúdo e de qualidade inquestionável.
Recomendo a todos que se dedicam e disponibilizam a se sensibilizar com a arte!


Paula Fônseca

domingo, 3 de maio de 2015

"SOBRETUDO ESCUTO BACH ENQUANTO A VIDA ATUA.
LEMBRO SEIXAS SUAS CANÇÕES NOS SOAM TÃO SIMPLES QUE NÃO VEMOS SUA COMPLEXIDADE E A VIDA QUE AS SUSTENTA ONTEM, SÁBADO, ESTIVE PRESENTE AO HERMILO BORBA FILHO E ME DELICIEI COM "OLHOS DE CAFÉ..." A SIMPLICIDADE E O ENCANTO E A BELEZA SE FUNDIRAM COMO SE FUNDEM NAS MÚSICAS DE SEIXAS TORNEI-ME, ONTEM, UM HUMANO UM POUCO MELHOR E ESTOU MAIS PRONTO PARA AS COISAS SIMPLES COMPLEXIDADES DA VIDA OS MEUS AMIGOS E MINHA FAMÍLIA SABEM E CONHECEM MINHA PAIXÃO POR CAFÉ DE HOJE EM DIANTE AO BEBÊ-LO E FAÇO ISSO A TODO INSTANTE BRADAREI - "VAMOS AOS OLHOS DE CAFÉ QUENTE !!" VIU COMO TEATRO É SIMPLES !? MEU AMIGO E TODOS JUNTOS COM VOCÊ NESSA SABEDORIA SIMPLES VVAAALLLLEEEEEUUUUUU !!!!! NESSE MOMENTO ESTOU AOS OLHOS DE CAFÉ QUENTE COM CAROLINA DE JESUS QUE VEIO VISITAR-ME SEM AVISAR TÉ."

Almir Nilson Rodrigues

CARTA A MEU PAI

Pai:

   Este é o primeiro Natal sem você e não está fácil. Agora você foi mesmo embora e nada pôde detê-lo, nem minhas preces nem minhas lágrimas nem o esforço dos médicos. Bem que eu tentei repetir a façanha de trinta anos atrás, você se lembra? Nós morávamos em três cômodos apertados e eu dormia na sala. Só nós três: mamãe, você e eu. Apesar da pobreza da sala -- um guarda-comida velho, uma mesa e quatro cadeiras, minha cama e a cantoneira do filtro --, tínhamos telefone e eu me considerava privilegiada entre os vizinhos daquele fundo de quintal. Mas meu privilégio não parava aí: você trabalhava num escritório e era visto como intelectual pelos operários que moravam em torno de nós. E eu tinha um orgulho danado disso. Eu amava você, porque era bonito, tinha as mãos limpas e sabia mais que os outros. Éramos placidamente felizes e acho que me faltava apenas um quartinho só meu, para que tudo fosse perfeito. Então, quando eu tinha dez anos, as coisas começaram a mudar. Ela era vizinha de seu serviço, ou sei lá o que e telefonava atrás de você quase todo dia. As brigas começaram a ficar freqüentes e mamãe estava sempre chorando pelos cantos. A situação foi piorando e no princípio de dezembro, no calor de uma briga mais feia, você anunciou que ia embora com ela antes do fim do mês. "Antes do Natal?" Perguntei espantada. Você me olhou zangado e saiu batendo a porta: acho que você estava mesmo apaixonado. 
    A partir deste momento eu vivi apavorada com a idéia de sua partida. Minha pobre cabeça de dez anos não concebia a vida sem você e, ao mesmo tempo, não conseguia inventar uma forma de evitar isso. Minha mãe não ajudava nada, entregue à sua tristeza e totalmente desanimada. Naquele tempo, eu era ingenuamente religiosa e acreditava que, se a gente pedisse com fé e a causa fosse justa, fatalmente a graça seria alcançada. Comecei a rezar com todo o afinco de que era capaz e, com o passar dos dias, adquiri a certeza de que tudo daria certo. Sentia uma calma estranha dentro de mim e comecei os preparativos para o Natal, como se nada de errado tivesse acontecido ou fosse acontecer.
  Criei um espaço só meu e passei a ignorar o ambiente cada vez mais tenso entre você e mamãe. Armei nosso pinheirinho de poucas bolas e algumas estrelas de papel e resolvi fazer eu mesma o bolo de Natal, já que mamãe permanecia alheia a tudo. Era um bolo complicado, meio bolo, meio pão, com frutas secas na massa e na cobertura. Você gostava muito e era uma tradição em nossa casa. Eu ajudava mamãe todos os anos, mas nunca fizera sozinha. Juro, pai, foi um sacrifício. Considerando o fogão de lenha, o ponto da massa e a minha inexperiência, o bolo só poderia sair como saiu: torto, duro e embatumado.
  E a noite de Natal chegou. Meu coração já estava miudinho e ficou mais apertado ainda, quando você entrou pisando duro, não quis jantar e foi para o quarto arrumar sua mala. Jogou tudo dentro, de qualquer jeito, despediu-se das coisas com um olhar rápido e me chamou com uma voz esquisita: "Venha dar um beijo no papai". Cega pelas lágrimas eu me pendurei em você e a única coisa que achei para dizer, aos arrancos, foi: "Nem... vai comer... um pedacinho de bolo? Eu fiz pra você... sozinha".
  Houve um momento suspenso no ar e eu senti, de repente, seus ombros descerem, derrotados. Você olhou para mim toda desfeita, para o triste bolo em cima da mesa, examinou a mala como se não fosse sua e colocou-a no chão numa desistência muda. Sentou-se, comeu corajosamente um pedaço de bolo e depois, debruçando-se sobre a mesa, chorou longamente seus planos perdidos. Então você tirou do bolso uma passagem de ônibus e, bem devagar, picou-a em pedacinhos: nossa vida voltava ao normal.
  Esses pedacinhos de papel, pai, que você jogou fora com seus anseios de aventura, eu os guardo até hoje. Houve muitos outros Natais, com bolos bem feitos, risos e alegrias, mas nunca mais recebi de você nem de ninguém um presente que me fizesse tão feliz. Mesmo agora, neste Natal que marca sua ausência física definitiva, aqueles papeizinhos quase desfeitos pelo tempo me consolam e me dão a certeza de que, de uma forma ou de outra, você dará sempre um jeito de continuar eternamente conosco. Feliz Natal.
Sua filha.


Maria Myrtes de Camargo Renesto (diretora da Escola Estadual Professor Alberto José Ismael, São José do Rio Preto).