sexta-feira, 1 de novembro de 2013

O Banquete

Existem técnicas do acabado, como existem técnicas do inacabado. As
técnicas do acabado são eminentemente dogmáticas, afirmativas sem
discussão, e é por isto que a escultura, que é por psicologia do
material a mais acabada de todas as artes, foi a mais ensinadora das
artes ditatoriais e religiosas de antes da Idade Moderna. Bíblias de
pedra... Pelo contrário: o desenho, o teatro, que são as artes mais
inacabadas, por natureza as mais abertas e permitem a mancha, o
esboço, a alusão, a discussão, o conselho, o convite, e o teatro ainda
essa curiosa vitória final das coisas humanas e transitórias com o
"último ato", são artes do inacabado, mais próprias para o
intencionismo do combate. E assim como existem artes mais propícias
para o combate, há técnicas que pela própria insatisfação do
inacabado, maltratam, excitam o espectador e o põem de pé. (...) As
técnicas do inacabado são as mais próprias do combate. Você repare a
evolução da dissonância e da escala dissonante por excelência que é a
escala cromática. O cromatismo na Grécia era só permitido aos
granfinos da virtuosidade, inculcado de sensual e dissolvente, proibido
aos moços, aos soldados, aos fortes; e Pitágoras já descobrira a
sensação da dissonância, a "diafonia" como ele falou no grego dele.
Mas a repudiou. E de fato o ditatorialismo, o dogmatismo grego não
quis saber das dissonâncias. Nem o Cristianismo primitivo, criador do
dogmatismo em uníssono do cantochão. Por quê? Porque a
dissonância era eminentemente revolucionária, era, por assim dizer,
uma consonância inacabada, botava a gente de pé. (...) Toda obra de
circunstância, principalmente a de combate, não só permite mas exige
as técnicas mais violentas e dinâmicas do inacabado. O acabado é
dogmático e impositivo. O inacabado é convidativo e insinuante. É
dinâmico enfim. Arma o nosso braço.

Mário de Andrade

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