quinta-feira, 23 de agosto de 2012

sobre "Vivermos e pensarmos como porcos", de Châtelet

"O livro é um panfleto, claro. E isso justifica o título, bastante demagógico: "Vivermos e pensarmos como porcos". Quanto à capa, nem falamos: é um desses monumentos de "kitch" em que não sabemos se o mau gosto é denunciado, se é exposto com alguma complacência. E se tivermos em conta que o autor, Gilles Châtelet, não é minimamente conhecido entre nós, e, para além deste, o único livro que publicou em França é de uma leitura extremamente difícil, então podemos supor que uma obra como esta, agora lançada entre nós pela Temas e Debates, está praticamente condenada ao fracasso. Mas seria muito injusto. Gilles Châtelet começou por ser um matemático altamente sofisticado que associa ao seu saber específico uma sólida formação profissional. Nesse aspecto aproxima-se do perfil de um dos grandes nomes do actual pensamento francês (e basta vermos a atenção que o mundo anglo-saxónico lhe dedica): Alain Badiou. Não será por isso um acaso que a última vez que vi Gilles Châtelet foi no restaurante Balzar, em Saint-Michel. conversando precisamento com Badiou. Parecia de tal modo entusiasmado que custa a imaginar que algumas semanas depois o jornal traria a notícia do seu suicídio.  Mas o entusiasmo era a marca de Gilles Châtelet. Não posso esquecer algumas das suas intervenções públicas, com uma voz poderosa, um ar possuído, numa espécie de transe mental que nos deixava estupefacto. Gritava certas fórmulas, que depois repetia, num eco insólito de quem ganhava fôlego para novo cometimento, atacava ferozmente os adversários, criava uma permanente encenação do seu próprio discurso. Neste livro-panfleto, o título "Vivermos e pensarmos como porcos", introduz um tom. Para um desejo óbvio de revolução, Gilles Châtelet não vai buscar as categorias tradicionais da sociologia. Para ele, existe um adversário, que é o "homem médio", abstracção construída para uma adequação aos mecanismos niveladores do mercado. Produto das estatísticas (que são, como o nome indica, técnicas com que o Estado tenta regular o real). O homem médio é aquele que aceita viver "como os porcos" - sem sentido de singularidade, sem um ideal que o apaixone, sem o valor da heroicidade. A formação do "homem médio" cria o individualismo metodológico e a teoria dos jogos aplicada às ciências sociais. Mas cria sobretudo a obsessão do consenso. O homem médio articula três realidades: "Foi ao articular essas três entidades temíveis - o número ventríloquo da "opinião", o número pestanejante dos "grandes equilíbrios socioeconómicos", e finalmente o número cifra da estatística matemática - que ele se tornou a peça principal da cretinização" que domina as sociedades contemporâneas. Ao homem médio contrapõe-se o "homem qualquer"; aquele é igual a qualquer um, mas igual pela singularidade absoluta de que cada um é capaz. O homem qualquer está no campo dos heróis, anónimo e singular: é ele apenas porque é ele, mas nesta diferença absoluta está tudo aquilo que faz que certos homens continuem a ser, no meio do estupidificante individualismo de massas, "florestas que caminham"."

Eduardo Prado Coelho, em  "O fio do horizonte"

segunda-feira, 11 de junho de 2012

Dois Haicais

Saí na chuva
Coração do inverno
Buscando você.

 
Alma delira
Quando
outra encontra
Beijos sem conta

terça-feira, 5 de junho de 2012

Recife: O passado já é passado (e, em breve, esquecido)

Tempo de transformações desfila em Recife urgências tardias. Morrem jardins e, do dia para noite e da noite para o dia, velhas construções vêem abaixo indiscriminadamente. É o progresso que chega, com atraso de décadas. Novos Haussmans alargam ruas, sobem viadutos, sucumbem o passado em destroços e metralhas, contra o relógio que não cessa de correr.
A cidade, organismo vivo, é como alguém que tendo passado muito, muito tempo sem se alimentar, de repente se empanturrasse de comida em poucos minutos, com sérios riscos de indigestão. Ou um doente que exagerasse nos remédios, com riscos de entrar em coma.
Assim é que transformamos tudo sem nos ligar a nada.

segunda-feira, 4 de junho de 2012

VOCAÇÃO LITERÁRIA


Se vai tentar, vá até o fim.
Caso contrário, nem comece.
Se vai tentar, vá até o fim.
Pode perder namoradas, esposas, parentes, empregos e talvez até a cabeça.
Vá até o fim.
Pode ficar sem comer por três ou quatro dias.
Pode congelar no banco do parque.
Pode ser preso.
Pode receber escárnio, gozações, isolamento.
Isolamento é um presente, todo o resto é um teste da sua resistência, de quão forte é a sua vontade.
E você fará a despeito da rejeição e dos piores azares e será melhor do que qualquer coisa que possa imaginar.
Se vai tentar, vá até o fim.
Não há outra emoção como essa.
Você estará sozinho com os deuses e as noites queimarão como fogo.
Faça, faça, faça. faça,
até o fim, até o fim.
Você cavalgará a vida diretamente para o riso perfeito.
Essa é a única boa luta que existe.
Charles Bukowski

Tradução: Leda Beck, extraido de Viva Babel

quarta-feira, 30 de maio de 2012

Ser Artista

Diz muito pouco hoje alguém ser artista, porque todo mundo, exceto os que se recusam, se veem no direito de se autodenominarem assim. O sujeito bate um pau na lata e é músico já... “genial”, dirão os especialistas dos “Eu quero tchu”; outro sobe no palco, diz dois versos de trevez e é ator consagrado, com direito a fã-clube e tudo.
Oh, meu Deus! Tão difícil encontrar um artista mesmo, um que nos lance na cara as nossas dores e idiossincrasias. Artista era Proust. E Deleuze soube artisticamente esmiuçar a obra do Tempo Perdido. Artista era Celine, que batia sem piedade o politicamente correto. Artista era Van Gogh, que para além do que o mundo queria ver, sabia do que precisava ele, sozinho, fazer emergir da noite estrelada. Artista é a Fernanda Montenegro, que torna o mistério visível em seu Viver Sem Tempos Mortos”, artista é o Antunes Filho que faz parecer simples e fácil o que é desafiador e eterno no humano. Artista é o Nelson Freire, que no leva para mundos profundos com seu piano negro. Artista era Quitana, que nem gostava de dar entrevistas.
Bom é ler, ouvir e ver alguém senhor de seu ofício (Borges, Otávio Paz, Joyce, Mann). Outro dia tive o prazer de ver uma demonstração de trabalho do Carlos Simioni, cheíssimo de graça e encantamento. Simplesmente bárbaro, verdadeiro, enternecedor. E só vendo-o se percebe que não se chega ali sem esforço, suor e sacrifício, sem dedicar a vida, o tempo, a alma.
A maioria que se diz artista não sofre as intempéries das tempestades, as solicitações dos ritos difíceis que a arte requer.  Vemos isso em suas mãos, nos rostos, na forma como falam e lidam com a própria existência.
A Marina Colasanti falava outro dia pra gente de projeto de vida, de que ser era para ela mais importante que o parecer ser. Ô Marininha, quem nos dera ter como meta estabelecer e correr os riscos que um plano de vida pressupõe, aos artistas e aos não artistas. Por ora, impera o mau gosto com respaldo dos estudiosos e tudo é igual a tudo, poucas diferenciações habitando o mundo sensível de agora. Escritores ruins ganham prêmios e se consagram, encenadores excelentes, como Almir Rodrigues, são esquecidos e deixados a resmungar no fundo da sala escura, sem ter quem, infelizmente, os ouça.
Se me perguntam se sou artista, costumo dizer que não, nego. Não quero ser. Me recuso. Deixo isso aos meus pares, de coração menos doído, de alma e semblantes mais leves, absolutamente despreocupados com as fatais dores do mundo.