"O livro é um
panfleto, claro. E isso justifica o título, bastante demagógico:
"Vivermos e pensarmos como porcos". Quanto à capa, nem falamos: é um
desses monumentos de "kitch" em que não sabemos se o mau gosto é
denunciado, se é exposto com alguma complacência. E se tivermos em conta
que o autor, Gilles Châtelet, não é minimamente conhecido entre nós, e,
para além deste, o único livro que publicou em França é de uma leitura
extremamente difícil, então podemos supor que uma obra como esta, agora
lançada entre nós pela Temas e Debates, está praticamente condenada ao
fracasso. Mas seria muito injusto. Gilles Châtelet começou por ser um
matemático altamente sofisticado que associa ao seu saber específico uma
sólida formação profissional. Nesse aspecto aproxima-se do perfil de um
dos grandes nomes do actual pensamento francês (e basta vermos a
atenção que o mundo anglo-saxónico lhe dedica): Alain Badiou. Não será
por isso um acaso que a última vez que vi Gilles Châtelet foi no
restaurante Balzar, em Saint-Michel. conversando precisamento com
Badiou. Parecia de tal modo entusiasmado que custa a imaginar que
algumas semanas depois o jornal traria a notícia do seu suicídio. Mas o
entusiasmo era a marca de Gilles Châtelet. Não posso esquecer algumas
das suas intervenções públicas, com uma voz poderosa, um ar possuído,
numa espécie de transe mental que nos deixava estupefacto. Gritava
certas fórmulas, que depois repetia, num eco insólito de quem ganhava
fôlego para novo cometimento, atacava ferozmente os adversários, criava
uma permanente encenação do seu próprio discurso. Neste livro-panfleto, o
título "Vivermos e pensarmos como porcos", introduz um tom. Para um
desejo óbvio de revolução, Gilles Châtelet não vai buscar as categorias
tradicionais da sociologia. Para ele, existe um adversário, que é o
"homem médio", abstracção construída para uma adequação aos mecanismos
niveladores do mercado. Produto das estatísticas (que são, como o nome
indica, técnicas com que o Estado tenta regular o real). O homem médio é
aquele que aceita viver "como os porcos" - sem sentido de
singularidade, sem um ideal que o apaixone, sem o valor da heroicidade. A
formação do "homem médio" cria o individualismo metodológico e a teoria
dos jogos aplicada às ciências sociais. Mas cria sobretudo a obsessão
do consenso. O homem médio articula três realidades: "Foi ao articular
essas três entidades temíveis - o número ventríloquo da "opinião", o
número pestanejante dos "grandes equilíbrios socioeconómicos", e
finalmente o número cifra da estatística matemática - que ele se tornou a
peça principal da cretinização" que domina as sociedades
contemporâneas. Ao homem médio contrapõe-se o "homem qualquer"; aquele é
igual a qualquer um, mas igual pela singularidade absoluta de que cada
um é capaz. O homem qualquer está no campo dos heróis, anónimo e
singular: é ele apenas porque é ele, mas nesta diferença absoluta está
tudo aquilo que faz que certos homens continuem a ser, no meio do
estupidificante individualismo de massas, "florestas que caminham"."
Eduardo Prado Coelho, em "O fio do horizonte"
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