sexta-feira, 2 de agosto de 2013

O Moinho e a Cruz


Diante da perseguição religiosa e política que os invasores espanhóis impõem à comunidade flamenga na Flandres do século 16, Nicolaes Jonghelinck (Michael York), um rico mercador da cidade de Antuérpia, amaldiçoa a impiedade do tempo. "Se ao menos pudéssemos pará-lo, poderíamos combater esse instante sem sentido até o fim", diz.
Interromper o tempo não deixa de ser uma das vantagens da pintura - e em O Moinho e a Cruz (The Mill and the Cross) o diretor Lech Majewski imagina como teria sido o processo de criação de A Procissão para o Calvário, tela de 1564 de Pieter Bruegel sobre a realidade de Flandres da época. Rutger Hauer  interpreta o pintor no filme, e nele explica a seu mecenas, Nicolaes, as suas escolhas de composição e o sentido que ele busca dar à obra.
Inicialmente, o filme de Majewski parece mesmo uma visita guiada de aula de história da arte. Como tal, deve colocar as coisas em contexto, e O Moinho e a Cruz adere a uma das interpretações recorrentes do quadro: Bruegel, artista obcecado por temas bíblícos (como sua famosa Torre de Babel) mas também pelas trivialidades do seu tempo, transpõe em A Procissão para o Calvário a crucificação de Jesus para Flandres, como forma de equiparar a perseguição religiosa na Roma antiga à opressão dos católicos espanhóis na era das navegações.
Temos aqui, então, não só um filme que desconstrói e renova o eterno discurso da arte-contra-a-barbárie (se a barbárie move o mundo, como a inexorabilidade das pás de um moinho, só uma perspectiva de fora, deslocada no tempo e no espaço, pode impedi-la), mas também uma encenação bastante curiosa de um dos eventos mais retratados da história, a Paixão de Cristo.
É uma pena que O Moinho e a Cruz não tenha sido feito em 3D; a forma como Majewski combina a encenação com fundo falso e as paisagens pintadas teria ainda mais impacto nesse formato. De qualquer forma, é o trabalho de design de som que no fim acaba sobressaindo. Na tela, explica Bruegel, a posição elevada do moinho, entre as nuvens, visa substituir a figura de Deus. O barulho que faz a moenda durante o calvário, que parece mastigar todos os sons do mundo (pelo menos os sons que constituíram aquele mundo ao longo do filme, do vento aos animais), seria a demonstração do desígnio de Deus.
Há um exagero calculado nisso, porém. É como se, ao pintar com cores tão berrantes a professada onipotência divina, Majewski misturasse irreverência e reverência, até o ponto em que esses opostos se tornassem indistinguíveis. É nesse equilíbrio que O Moinho e a Cruz opera (o caos das crianças sobre a cama e os populares se bolinando na rua versus o peso dos passos na escadaria do interior do moinho, que em si já tem muito de cômico), emulando o próprio talento de Bruegel para descontextualizar a religião oficial, e criticá-la.

Por Marcelo Hessel

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