quarta-feira, 31 de outubro de 2012

Acontecer

“Uma estrela nasce a milhares de anos-luz da nossa Terra. Sabemos do seu surgimento muito tempo após esse rebentamento, que poderá, ou não, vir a ter influência nas estruturas, nos movimentos macro e microscópicos do nosso planeta, da nossa vida. Ao mesmo tempo, porque não, uma estrela já morta definhe à vista nua numa noite de Verão, um bebé nasce, rebenta uma guerra, é descoberto um fóssil que desestabiliza conceitos dados como certos da paleontologia, da história, porque não, até mesmo da religião. Alguém compõe uma sonata, ou uma sinfonia, cuja primeira nota de abertura nos enche, desde logo, com tamanha alegria, que milhares de fontes irrompem no escuro de uma sala. Um livro é escrito, torna-se um best-seller – mas permitam-nos sonhar, desta vez, com um livro que tenha tudo para não ser a maior venda e por magia, por acaso, se torna nisso – e todo o mundo fica igualmente rendido, um mundo mudo. Ou então, um homem atravessa uma rua, simplesmente isso, mas esse passeio normalíssimo, banal, rotineiro, modifica-o daí em diante... O que afinal aconteceu? E o que é isso, o Acontecimento? Tudo o que acima foi dito, entre tantos exemplos possíveis, trata-se de acontecimentos, ou experiências, ou, ainda, acasos? O que há de singular, de único num determinado evento que o torna a manifestação de um Acontecimento – melhor, mais do que manifestação, designação ou expressão, ser ele Acontecimento – e não de uma experiência? Ou, por outro lado, o que os aproxima, o que faz com que uma experiência se diga acontecimento, do acontecimento?”

Fernando Machado Silva
em “Poiética do Acontecimento: Deleuze e Serres"

terça-feira, 30 de outubro de 2012

CHUVA


A chuva, no pátio em que a olho cair, desce em andamentos muito diversos. No centro, é uma fina cortina (ou rede) descontínua, uma queda implacável mas relativamente lenta de gotas provavelmente bastante leves, uma precipitação sempiterna sem vigor, uma fração intensa do meteoro puro. A pouca distância das paredes da direita e da esquerda caem com mais ruído gotas mais pesadas, individuadas. Aqui parecem do tamanho de um grão de trigo, lá de uma ervilha, adiante quase de uma bola de gude. Sobre o rebordo, sobre o parapeito da janela a chuva corre horizontalmente ao passo que na face inferior dos mesmos obstáculos ela se suspende em balas convexas. Seguindo toda a superfície de um pequeno teto de zinco abarcado pelo olhar, ela corre em camada muito fina, ondeada por causa de correntes muito variadas devido a imperceptíveis ondulações e bossas da cobertura. Da calha contígua onde escoa com a contenção de um riacho fundo sem grande declive, cai de repente em um filete perfeitamente vertical, grosseiramente entrançado, até o solo, onde se rompe e espirra em agulhetas brilhantes.
Cada uma de suas formas tem um andamento particular; a cada uma corresponde um ruído particular. O todo vive com intensidade, como um mecanismo complicado, tão preciso quanto casual, como uma relojoaria cuja mola é o peso de uma dada massa de vapor em precipitação.
O repique no solo dos filetes verticais, o gluglu das calhas, as minúsculas batidas de gongo se multiplicam e ressoam ao mesmo tempo em um concerto sem monotonia, não sem delicadeza.
Quando a mola se distende, certas engrenagens por algum tempo continuam a funcionar, cada vez mais lentamente, depois toda a maquinaria pára. Então, se o sol reaparece, tudo logo se desfaz, o brilhante aparelho evapora: choveu.

Francis Ponge (Trad: Júlio Castañon Guimarães)

O Estado das Coisas

O que me sustenta ou me empurra, me obriga a escrever, é a emoção provocada pelo mutismo das coisas que nos cercam. Talvez se trate de uma espécie de piedade, de solicitude, enfim, tenho o sentimento de instâncias mudas da parte das coisas, solicitando que finalmente nos ocupemos delas, que as digamos... Por que não dizer, indo um pouco mais longe (ainda não é muito longe), que os próprios homens, na sua maior parte, nos parecem privados de palavra, são tão mudos quanto as carpas e os pedregulhos?


Francis Ponge

segunda-feira, 29 de outubro de 2012

Para a Psicologia do Artista




Para que haja a arte, para que haja um fazer  e contemplação estética, é incontornável uma condição fisiológica prévia: a embriaguez. A embriaguez tem de intensificar primeiro a excitabilidade da máquina inteira: senão não se chega à arte. Todos os tipos de embriaguez, por muito diferentes que sejam os seus condicionamentos, têm a força de conseguir isto: sobretudo a embriaguez da excitação sexual, que é a forma mais antiga e originária de embriaguez.
Do mesmo modo, a embriaguez que nasce como conseuqencia de todo grande empenho do desejo, de toda e qualquer afecção forte; a embriaguez da festa, do combate, dos atos de bravura, da vitória, de todo e qualquer movimento extremo; a embriaguez da crueldade; a embriaguez na destruição; a embriaguez sob certas condições meteorológicas, por exemplo a embriaguez primaveril; ou sob a influência de narcóticos; por fim, a embriaguez da vontade, a embriaguez de uma vontade acumulada e dilatada.”

Friedrich Nietzsche, in "Crepúsculo dos Ídolos"

segunda-feira, 22 de outubro de 2012

"O silêncio está tão repleto de sabedoria e de espírito em potência 
como o mármore não talhado é rico em escultura".
 Aldous Huxley

sábado, 20 de outubro de 2012

Sexta Ímpar



 Ontem, sexta-feira, foi um dia ímpar. Não por ter sido um 19, neste outubro de pouca graça. Não. Falo da singularidade, da estranha atmosfera, da esquisitice mesmo do dia. Terá sido assim para todo mundo? Ou somente para mim? Ontem, esta sexta-feira singular, foi aniversário do meu irmão (difícil falar com ele quando ele não tá afim).
Também foi dia de pensamentos esparsos sobre o retorno ou a extinção definitiva de minha carreira com a banda musical (Zambiola) depois da Feira do Empreendedorismo, no Centro de Convenções.
Também foi dia em que chegou ao fim a novela do João Emanuel Carneiro (Avenida Brasil), com uma trama torta, cheia de problemas e barrigas, mas de direção e fotografias surpreendentes.   Sem falar no trabalho da Adriana, que Esteve completa, absoluta, endemoniada (logo eu que detesto novelas e não acompanho nenhuma desde a obra-prima do Cassiano Gabus Mendes, “Que Rei Sou Eu?”, em 1989!).
Foi ontem também que descobri a inclassificável Maria Gabrilea Llansol, uma escritora portuguesa que tem um sangue poético do Fernando Pessoa na veia.
E, por fim, teve a estreia de “Avesso”, espetáculo de Ana Flávia e Igor Lopes, da Cia. Cicuta Sem Estricnina, no SESC Casa Amarela, em Recife, às 20h. Dois textos inteligentes, dois atores com apetite. Realmente é muito bom ver que alguns grupos e companhias teatrais desta cidade andam à procura de outras possibilidades para além dos besteiróis e dos espetáculos de adolescentes revoltados. Curto e grosso, o trabalho de Flavia e Igor são um tapa no bom comportamento, no politicamente correto, sem perder a austeridade.
É isso. Foi assim a minha sexta absurda. Talvez achemos ao término desta fala toda que não há nada de verdadeiramente excepcional no que foi dito. Pode ser. Mas sabem aquela sensação esquisita de que é muito, muito esquisito quando tudo, tudo, tudo no parecer assim tão no lugar, tão comum, tão normal? Que será que é isso?
Eu, heim?! Sei lá!

quinta-feira, 18 de outubro de 2012

Resistência da poesia

"É preciso contar com a poesia. É preciso contar com ela em tudo o que fazemos e pensamos fazer, nos discursos, no pensamento, na prosa e na arte em geral. O que quer que haja atrás desta palavra, e mesmo supondo que não haja nada que não seja datado, terminado, deslocado, eliminado, mesmo assim resta a palavra. Uma palavra com a qual há que contar porque assim ela exige. Podemos suprimir o «poético», o «poema» e o «poeta» sem grandes prejuízos ( talvez). Mas com a poesia com toda a indeterminação do seu sentido, e não obstante toda essa indeterminação, não há nada a fazer. Ela lá está, e sempre estará mesmo que a rejeitemos, que desconfiemos dela e que a detestemo". 

 Jean Luc-Nancy


"Não há mais sublime sedução do que saber esperar alguém.
Compor o corpo, os objectos em sua função, sejam eles
A boca, os olhos, ou os lábios. Treinar-se a respirar
Florescentemente. Sorrir pelo ângulo da malícia.
Aspergir de solução libidinal os corredores e a porta.
Velar as janelas com um suspiro próprio. Conceder
Às cortinas o dom de sombrear. Pegar então num
Objecto contundente e amaciá-lo com a cor. Rasgar
Num livro uma página estrategicamente aberta.
Entregar-se a espaços vacilantes. Ficar na dureza
Firme. Conter. Arrancar ao meu sexo de ler a palavra
Que te quer. Soprá-la para dentro de ti -------------------
----------------------------- até que a dor alegre recomece."

Maria Gabriela Llansol in "O Começo de Um livro é Precioso"

segunda-feira, 15 de outubro de 2012

O CAMINHO DA FLORESTA


Do portão do Jardim do Castelo estende-se até as planícies úmidas do Ehnried. Sobre o muro, as velhas tílias do Jardim acompanham-no com o olhar, estenda ele, pelo tempo da Páscoa, seu claro traço entre as sementeiras que nascem e as campinas que despertam, ou desapareça, pelo Natal, atrás da primeira colina, sob turbilhões de neve. Próximo da cruz do campo, dobra em busca da floresta. Sauda, de passagem, à sua orla, o alto carvalho que abriga um banco esquadrado na madeira crua.
Nele repousava, às vezes, este ou aquele texto dos grandes pensadores, que um jovem desajeitado procurava decifrar. Quando os enigmas se acotovelavam e nenhuma saída se anunciava, o caminho do campo oferecia boa ajuda: silenciosamente acompanha nossos passos pela sinuosa vereda, através da amplidão da terra agreste.
O pensamento sempre de novo às voltas com os mesmos textos ou com seus próprios problemas, retorna à vereda que o caminho estira através da campina. Sob os pés, ele permanece tão próximo daquele que pensa quanto do camponês que de madrugada caminha para a ceifa.
Mais freqüente com o correr dos anos, o carvalho à beira do caminho leva a lembrança aos jogos da infência e às primeiras escolhas. Quando, às vezes, no coração da floresta tombava um carvalho sob os golpes do machado, meu pai logo partia, atravessando a mataria e as clareiras ensolaradas, à procura do estéreo de madeira destinado à sua oficina. Era lá que trabalhava solícito e concentrado, os intervalos de sua ocupação junto ao relógio do campanário e aos sinos, que, uns e outros, mantêm relação própria com o tempo e a temporalidade.
Os meninos, porém, recortavam seus navios na casca do carvalho. Equipados de banco para o remador e de timão, flutuavam os barcos no Mettenbach ou no lago da escola. Nesses folguedos, as grandes travessias atingiam facilmente seu termo e facilmente recobravam o porto. A dimensão de seu sonho era protegida por um halo apenas discernível, pairando sobre todas as coisas. O espaço aberto era-lhe limitado pelos olhos e pelas mãos da mãe. Tudo se passava como se sua discreta solicitude velasse sobre todos os seres. Essas travessias de brinquedo nada podiam saber das expedições em cujo curso todas as margens ficam para trás. Entrementes, a consistência e o odor do carvalho começavam a falar, já perceptivelmente, da lentidão e da constância com que a árvore cresce. O carvalho mesmo assegurava que só semelhante crescer pode fundar o que dura e frutifica; que crescer significa: abrir-se à amplidão dos céus, mas também deitar raízes na obscuridade da terra; que tudo que é verdadeiro e autêntico somente chega à maturidade se o homem for simultaneamente as duas coisas: disponível ao apelo do mais alto céu e abrigado pela proteção da terra que oculta e produz.
Isto o carvalho repete sempre ao caminho do campo, que diante dele corre seguro de seu destino. O caminho recolhe aquilo que tem seu ser em torno dele; e dá a cada um dos que o percorrem aquilo que é seu. Os mesmos campos, as mesmas encostas da colina escoltam o caminho em cada estação, próximos dele com proximidade sempre nova. Quer a cordilheira dos Alpes acima das florestas se esbata no crepúsculo da tarde, quer de onde o caminho ondeia entre os outeiros a cotovia da manhã se lance no céu de verão, que o vento leste sopre a tempestade do lado em que jaz a aldeia natal da mãe, quer o lenhador carregue, ao cair da noite, seu feixe de gravetos para a lareira, quer o carro da colheita se arraste em direção ao celeiro oscilando pelos sulcos do caminho, quer apanhem as crianças as primeiras primaveras na ourela do prado, quer passeie a neblina ao longo do dia sua sombria massa sobre o vale, sempre e de todos os lados fala, em torno do caminho do campo, o apelo do Mesmo.
O Simples guarda o enigma do que permanece e do que é grande. Visita os homens inesperadamente, mas carece de longo tempo para crescer e amadurecer. O dom que dispensa está escondido na inaparência do que é sempre o Mesmo. As coisas que amadurescem e se demoram em torno do caminho, em sua amplitude e em sua plenitude dão o mundo. Como diz o velho mestre Eckhart, junto a quem aprendemos a ler e a viver, é naquilo que sua linguagem não diz que Deus é verdadeiramente Deus.
Todavia, o apelo do caminho do campo fala apenas enquanto homens nascidos no ar que os cerca forem capazes de ouví-lo. São servos de sua origem, não escravos do artifício. Em vão o homem através de planejamentos procura instaurar uma ordenação no globo terrestre, se não for disponível ao apelo do caminho do campo. O perigo ameaça, que o homem de hoje não possa ouvir sua linguagem. Em seu ouvido retumba o fragor das máquinas, que chega a tomar pela voz de Deus. Assim o homem se dispersa e se torna errante. Aos desatentos o Simples parece uniforme. A uniformidade entedia. Os entendiados só vêem monotonia a seu redor. O Simples desvaneceu-se. Sua força silenciosa esgotou-se.
O número dos que ainda conhecem o Simples como um bem que conquistaram, diminui, não há dúvida, rapidamente. Esses poucos, porém, serão, em toda a parte, os que permanecem. Graças ao tranqüilo poder do caminho do campo, poderão sobreviver um dia às forças gigantescas da energia atômica, que o cálculo e a sutileza do homem engendraram para com ela entravar sua própria obra.
O apelo do caminho do campo desperta um sentido que ama o espaço livre e que, em momento oportuno, transfigura a própria aflição na serenidade derradeira. Esta opõe-se à desordem do trabalho pelo trabalho: procurado apenas por si, o trabalho promove aquilo que nadifica.
Do caminho do campo ergue-se, no ar variável com as estações, uma serenidade que sabe, e cuja face parece muitas vezes melancólica. Esta gaia ciência é uma sagesa sutil [1]. Ninguém a obtém sem que já a possua. Os que a têm, receberam-na do caminho do campo. Em sua senda cruzam-se a tormenta do inverno e o dia da messe, a irrupção turbulenta da primavera e o ocaso tranqüilo do outono; a alegria da juventude e a sabedoria da maturidade nela surpreendem-se mutuamente. Tudo porém se insere placidamente numa única harmonia, cujo eco o caminho do campo em seu silêncio leva de um para outro lado.
A serenidade que sabe é uma porta abrindo para o eterno. Seus batentes giram nos gonzos que um hábil ferreiro forjou um dia com os enigmas da existência.
Das baixas planícies do Ehnried, o caminho retorna ao Jardim do Castelo. Galgando a última colina, sua estreita faixa transpõe uma depressão e chega às muralhas da cidade. Uma vaga luminosidade desce das estrelas e se espraia sobre as coisas. Atrás do Castelo alteia-se a torre da Igreja de São Martinho. Vagarosamente, quase hesitantes, soam as badaladas das onze horas, desfazendo-se no ar noturno. O velho sino, em suas cordas outrora mãos de menino se aqueciam rudemente, treme sob o martelo das horas, cuja silhueta jocosa e sombria ninguém esquece.
Após a última batida, o silêncio ainda mais se aprofunda. Estende-se até aqueles que foram sacrificados prematuramente em duas guerras mundiais. O Simples torna-se ainda mais simples. O que é sempre o Mesmo desenraiza e liberta. O apelo do caminho é agora bem claro. É a alma que fala? Fala o mundo? Ou fala Deus?
Tudo fala da renúncia que conduz ao Mesmo. A renúncia não tira. A renúncia dá. Dá a força inesgotável do Simples. O apelo faz-nos de novo habitar uma distante Origem, onde a terra natal nos é devolvida.

 Por Martin Heidegger



[1] Literalmente: "Este alegre saber é das Kuinzige". Este termo dialetal, próprio da Suábia do Sul (onde se encontra Messkirch, cidade natal de Heidegger), corresponde etimologicamente a Keinnützig, "bom para nada", "próprio para nada", cujo sentido passou para o de "travesso", "malicioso", e finalmente hoje designa um estado de serenidade livre e alegra, que gosta de se ocultar, marcada por uma ironia afetuosa e por um toque de melancolia: melancolia sorridente, sabedoria que apenas se comunica discretamente nas palavras. Estas informações foram dadas pelo próprio autor a Adré Préau, tradutor francês deste texto, que em seu trabalho opta pela forma "sagesse malicieuse" (vide Martin Heidegger, "Questions III", Éditions Gallimard, 1966, Paris). Ao propor em português a tradução "sageza gentil", quisemos ressucitar um velho vocábulo corrente na língua do século XVI, cuja afinidade com o francês "sagesse" comunica um pouco do indefinível conteúdo da expressão dialetal preferida por Heidegger [NOTA DO TRADUTOR].

quinta-feira, 4 de outubro de 2012

Vai!

Vai, escreve aí algo de tua lavra, de tua cabeça, nascida de teus próprios pensamentos e considerações sobre tudo, desde as pequenas coisas ao incomensurável universo em que navega o planeta azul. Fala do que crês e do que gostarias de depositar fé, do que há de luz e de sombras em teu redor, fora de ti e nos abismos que te vai por dentro, teu coração. Erige assim uma obra sincera.
Se não lidas bem com as palavras, faz um filme (curto, médio ou longo, de animação ou documental, sisudo ou cheio de humor), esculpe, pinta, dança, canta, vive, mas expressa.
Se te dás bem com o manejo da palavra, pode ser, quem sabe, um poema, um conto, uma novela, uma crônica, um sermão, um tratado de metafísica... Não carece que seja algo politicamente correto, aceito por todos os bons lutadores engajados por um mundo melhor. Mas tem de ser, ou deve ser, ou pelo menos que seja (peço!), algo não apegado às formas de pensar já concebidas, já mastigadas, já vomitadas, que se retroalimentam e tornam tudo e todos um só pastiche, que nos aparenta a papagaios que vociferam as palavras e frases feitas dos outros, que repetimos sem termos com elas um comprometimento de força pensante.
Deve ser algo mais profundo que um “Que nada!”, pois que um “que nada!” nada diz, embora expresse a superfície de coisas sem profundidades em que tu põe a tua existência, mas nada dizem de realmente vivo. Te irrita, te proclama, te insurge (é um direito teu, como é da natureza do cão latir e do gato miar), mas te diferencia do patamar da natureza e diz mais e melhor que o cão e o gato. Te compromete, constrói argumentos (não para convencer ninguém de coisa nenhuma, mas para que possamos sentir que teu sangue habita as tuas falas).
Põe a tua alma (que palavrinha fora de moda, essa!) nas coisas, já que o corpo é perecível e um dia não estaremos mais presentes. Talvez a alma nas coisas possa perpetuar as coisas e a nós mesmos depois que nos formos. E a tua alma (leia-se: teu pensamento) talvez possa ser sentida por outras almas. Buliçosa, possa bulir com as outras e tirá-las da inércia. Quando tu não mais estiveres ainda serás necessário.
Fui um dia à Capela Sistina e lá vi que o Papa-Grana e os seus lacaios de prontidão tratam as pessoas como bichos em nome do que chamam de Sagrado. Eles não se humanizaram, os senhores do Vaticano, mesmo tendo à vista a obra de Miguel Ângelo, que levou quatro anos para conclui-la e não se deixou abater apesar da tarefa hercúlea. E permanece lá há séculos, a nos inquirir sobre o que fazemos com o tempo que nos é dado.
Sim, eu sei, isso se parece mais um Manifesto Romântico datado. Sim, pode ser. Mas sente que em cada palavra há fogo, força e um pouco de veneno. Espero ter te alcançado e, de alguma maneira, te inoculado um pouco disso que pode nos tirar da torpeza e da inestética que nos ronda.