“Uma estrela nasce a milhares de anos-luz da nossa Terra. Sabemos do seu surgimento muito tempo após esse rebentamento, que poderá, ou não, vir a ter influência nas estruturas, nos movimentos macro e microscópicos do nosso planeta, da nossa vida. Ao mesmo tempo, porque não, uma estrela já morta definhe à vista nua numa noite de Verão, um bebé nasce, rebenta uma guerra, é descoberto um fóssil que desestabiliza conceitos dados como certos da paleontologia, da história, porque não, até mesmo da religião. Alguém compõe uma sonata, ou uma sinfonia, cuja primeira nota de abertura nos enche, desde logo, com tamanha alegria, que milhares de fontes irrompem no escuro de uma sala. Um livro é escrito, torna-se um best-seller – mas permitam-nos sonhar, desta vez, com um livro que tenha tudo para não ser a maior venda e por magia, por acaso, se torna nisso – e todo o mundo fica igualmente rendido, um mundo mudo. Ou então, um homem atravessa uma rua, simplesmente isso, mas esse passeio normalíssimo, banal, rotineiro, modifica-o daí em diante... O que afinal aconteceu? E o que é isso, o Acontecimento? Tudo o que acima foi dito, entre tantos exemplos possíveis, trata-se de acontecimentos, ou experiências, ou, ainda, acasos? O que há de singular, de único num determinado evento que o torna a manifestação de um Acontecimento – melhor, mais do que manifestação, designação ou expressão, ser ele Acontecimento – e não de uma experiência? Ou, por outro lado, o que os aproxima, o que faz com que uma experiência se diga acontecimento, do acontecimento?”
Fernando Machado Silva
em “Poiética do Acontecimento: Deleuze e Serres"
quarta-feira, 31 de outubro de 2012
terça-feira, 30 de outubro de 2012
CHUVA
A chuva, no pátio em que a olho cair, desce em andamentos
muito diversos. No centro, é uma fina cortina (ou rede)
descontínua, uma queda implacável mas relativamente
lenta de gotas provavelmente bastante leves, uma precipitação
sempiterna sem vigor, uma fração intensa do meteoro
puro. A pouca distância das paredes da direita e da esquerda
caem com mais ruído gotas mais pesadas, individuadas. Aqui
parecem do tamanho de um grão de trigo, lá de uma
ervilha, adiante quase de uma bola de gude. Sobre o rebordo, sobre
o parapeito da janela a chuva corre horizontalmente ao passo que
na face inferior dos mesmos obstáculos ela se suspende
em balas convexas. Seguindo toda a superfície de um pequeno
teto de zinco abarcado pelo olhar, ela corre em camada muito fina,
ondeada por causa de correntes muito variadas devido a imperceptíveis
ondulações e bossas da cobertura. Da calha contígua
onde escoa com a contenção de um riacho fundo sem
grande declive, cai de repente em um filete perfeitamente vertical,
grosseiramente entrançado, até o solo, onde se rompe
e espirra em agulhetas brilhantes.
Cada uma de suas formas tem um andamento particular; a cada uma corresponde um ruído particular. O todo vive com intensidade, como um mecanismo complicado, tão preciso quanto casual, como uma relojoaria cuja mola é o peso de uma dada massa de vapor em precipitação.
O repique no solo dos filetes verticais, o gluglu das calhas, as minúsculas batidas de gongo se multiplicam e ressoam ao mesmo tempo em um concerto sem monotonia, não sem delicadeza.
Quando a mola se distende, certas engrenagens por algum tempo continuam a funcionar, cada vez mais lentamente, depois toda a maquinaria pára. Então, se o sol reaparece, tudo logo se desfaz, o brilhante aparelho evapora: choveu.
Cada uma de suas formas tem um andamento particular; a cada uma corresponde um ruído particular. O todo vive com intensidade, como um mecanismo complicado, tão preciso quanto casual, como uma relojoaria cuja mola é o peso de uma dada massa de vapor em precipitação.
O repique no solo dos filetes verticais, o gluglu das calhas, as minúsculas batidas de gongo se multiplicam e ressoam ao mesmo tempo em um concerto sem monotonia, não sem delicadeza.
Quando a mola se distende, certas engrenagens por algum tempo continuam a funcionar, cada vez mais lentamente, depois toda a maquinaria pára. Então, se o sol reaparece, tudo logo se desfaz, o brilhante aparelho evapora: choveu.
O Estado das Coisas
O que me sustenta ou me empurra, me obriga a escrever, é a emoção provocada pelo mutismo das coisas que nos cercam. Talvez se trate de uma espécie de piedade, de solicitude, enfim, tenho o sentimento de instâncias mudas da parte das coisas, solicitando que finalmente nos ocupemos delas, que as digamos... Por que não dizer, indo um pouco mais longe (ainda não é muito longe), que os próprios homens, na sua maior parte, nos parecem privados de palavra, são tão mudos quanto as carpas e os pedregulhos?
Francis Ponge
Francis Ponge
segunda-feira, 29 de outubro de 2012
Para a Psicologia do Artista
“Para que
haja a arte, para que haja um fazer e
contemplação estética, é incontornável uma condição fisiológica prévia: a embriaguez.
A embriaguez tem de intensificar primeiro a excitabilidade da máquina inteira: senão
não se chega à arte. Todos os tipos de embriaguez, por muito diferentes que
sejam os seus condicionamentos, têm a força de conseguir isto: sobretudo a
embriaguez da excitação sexual, que é a forma mais antiga e originária de embriaguez.
Do mesmo
modo, a embriaguez que nasce como conseuqencia de todo grande empenho do
desejo, de toda e qualquer afecção forte; a embriaguez da festa, do combate, dos
atos de bravura, da vitória, de todo e qualquer movimento extremo; a embriaguez
da crueldade; a embriaguez na destruição; a embriaguez sob certas condições
meteorológicas, por exemplo a embriaguez primaveril; ou sob a influência de narcóticos;
por fim, a embriaguez da vontade, a embriaguez de uma vontade acumulada e
dilatada.”
Friedrich Nietzsche, in "Crepúsculo dos Ídolos"
Friedrich Nietzsche, in "Crepúsculo dos Ídolos"
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