terça-feira, 11 de junho de 2013

O viajante, sobretudo se é da variedade garden-club, consagra com frequência pouco tempo aos grandes bosques sagrados que circundam os templos budistas ou shintô. Assistidos cuidadosamente, embora não dispostos pela mão do homem, são muito vastos e desprovidos de ornamentos florais para pertencerem à categoria dos jardins. Em Ise, os veneráveis santuários shintô, delicadamente elaborados, cujo único material é a criptomera [cipreste japonês], são reconstruídos cada vinte e cinco, e a madeira envelhecida converte-se em talismã ou recordações para os peregrinos ou em cavacos para as braseiras do templo. Dispersas na Natureza como cabanas polinésias, por vezes tão sagradas que só imperador tem acesso a elas, as modestas estruturas parecem anãs ao lado das árvores gigantescas, irmãs vivas dos troncos que forneceram os pilares alisados e as vigas bem esquadradas das capelas. Contêm em si a divindade de que os nichos humanos parecem simplesmente albergar ou concentrar uma parcela. Em Nikko, o barroco delirante dos templos, testemunho do fausto dos shôgun, importa menos que a majestade dos bosques. Em Omiva, perto de Nara, o altar erguido ao fundo de uma vasta sala de culto não se perfila, como se esperaria, num santo dos santos nos objectos modelados pela mão do homem, mas directamente na montanha-deus. Em Miyajima, no Mar Interior, perto da fatal Hiroxima, o pórtico sagrado do grande santuário shintô, semi-imerso, abre-se para o mar.
Os mosteiros búdicos também cresceram nos parques, na maioria dos casos doações de imperadores ou de príncipes que aí se enclausuraram antes de morrer e cujos túmulos discretos ainda existem. Em Matsushima, no templo zen do Zuigan-ji, as altas criptomeras projectam uma paz crepuscular na meditação dos monges; no Hôryu-ji, pelo contrário, perto de Nara, as construções mais que milenárias sucedem-se ao longo das alamedas sem sombra e cobertas de saibro, em que aqui e ali cresce, solitária, uma grande árvore, perspectivas secas provenientes da China dos Tangs. Mas o Hôryu-ji, na sua origem, também se enquadrava no seio de uma solidão agreste ou silvestre: a vaga aglomeração muito próxima, as estradas e as garagens são do seu tempo. Essa poderosa natureza é interpretada diferentemente pelo génio budista e pelo shintô. Aqui, o receptáculo de oito milhões de kami, da terra, do ar e da água, aos quais por vezes nem atribuíram nomes, o local puro que, graças à eficácia benéfica do rito o homem também aceita; ali, o imenso universo submetido à miragem da mudança e da duração, por detrás do qual o comtemplador descortina o Vazio, como por detrás das nuvens, o céu. O Kokedera, em Quioto, fechado por todos os lados, mas fundido, dir-se-ia, na natureza ambiente, parece a meio caminho entre a vegetação rasteira e sagrada e o jardim simbólico em que cada forma exemplifica um conceito. “Lutai sem descanso; todas as formações são perecíveis”, dizia o Buda moribundo. Os jardineiros que passam e voltam a passar meticulosamente as suas vassouras pelas quarenta e quatro variedades de musgos do Kokedera parecem obedecer a essa injunção: eliminam piedosamente o mínimo raminho, a mínima folha caída naquele mar verde que foi inicialmente, há séculos, um jardim de areia.
Mesmo no Ryôan-ji, o ilustre jardim das pedras quase usado à força de ter sido contemplado por visitantes, carregado de tantas hipóteses explicativas quantas podem suportar algumas pazadas de areia e alguns rochedos, está encerrado num parque em que se erguem livremente árvores e uma garça real espreita à beira de um tanque sobre um ramo morto. O amplo Byôdo-in, com o seu pequeno lago em que se reflecte o santuário, alongava-se outrora por trinta hectares ao lado do violento rio Uji. Antes de pertencer a um templo, constituiu o prazer de um príncipe ou de um alto funcionário da era Heian. Os jardins do Pavilhão de Ouro e os do Pavilhão de Prata, adjacentes às construções da Quioto moderna, foram concebidos como refúgios em plena solidão; apenas alguns degraus separam a paisagem engenhosamente composta do Pavilhão de Prata de uma colina de vegetações quase virgens. Neste país em que oitenta e cinco por cento do território se compõem de maciços acidentados e encostas eriçadas de pinheiros, refúgio tradicional de macacos, porcos-espinhos, génios de nariz pontiagudo e anacoretas, os impressionantes mosteiros do Kôyasan e do Hieisan constituem fortalezas silvestres.

Hortus conclusus; os mais belos “jardins japoneses” propriamente ditos datam, como o e a cerimónia do chá, do século XIV até princípios do século XVI. São de obediência zen. Renunciantes, ou por vezes voluptuosos, concebera, as cascatas límpidas que se precipitam nas rochas, os lagos cuja forma imita a do carácter chinês que significa coração, mas as plantas pendentes e a propagação dos musgos impedem que se observe com clareza que esse nível das águas é uma caligrafia. Ergueram esses montículos argilosos cujos níveis realçam o efeito do luar, e fizeram cortar essas árvores de maneira a imitar as torções do vento. Os shôgun Ashikaga, pouco dotados para o poder, mas maravilhosamente inclinados para as artes e prazeres do século, fizeram do Pavilhão de Ouro e do Pavilhão de Prata refúgios fora da capital devastada pelas guerras civis, fome e peste; decerto os mesmos flagelos impeliram, ou mantiveram, os fiéis para a paz dos conventos e dos jardins zen. Graças a um estranho paralelismo, mas frequentemente observável, em tempo em que a Europa e a Ásia pareciam separadas uma da outra, o momento em que a suave austeridade zen impregna todas as artes no Japão, desde o teatro à horticultura, é também aquele em que os místicos da Renânia e da Flandres, nos seus mosteiros semiprotegidos dos horrores do tempo, praticam a “teologia negativa”, ou seja, especulações muito próximas das do budismo.
É igualmente a época em que os pintores flamengos pintam nos jardins fechados, sob árvores de fruta ou entre as rosas, santas e anjos, enquanto no Japão os virtuosos do jardim compõem o equivalente de mandalas hindus, não já na seda ou no papel de arroz, mas na própria terra, um microcosmo mineral e floral encerrado entre paliçadas de bambus e muros baixos. Habituados como estavam a meditar sobre a relatividade das coisas, os monges amarelos viram nos rochedos do Ryôan-ji não apenas um símbolo de resistência, mas os outros cimos das montanhas da China e da Índia; através de uma espécie de metáfora invertida, as linhas circulares traçadas na areia foram vagas; um tanque figurou o oceano. Os jardins herméticos do poeta e do pintor cristãos são Paraísos ou então emblemas da virgindade de Maria, enquanto os do monge zen atestam simultaneamente o melancólico “Ah!” das coisas e a budeidade oculta no fundo deles. Para os adeptos de seitas mais populares do budismo, cada nenúfar é o lótus sagrado no qual ele espera renascer no país da Terra Pura.
Não surpreende que esses jardins de contemplação se tornassem para nós o espelho perfeito da alma japonesa – como o haiku, nascido mais ou menos na mesma época, em que todo o universo contido numa folha que treme ou uma rã que mergulha na água, nos parece hoje a forma suprema da poesia nipónica. Mesmo nas ruelas estreitas das cidades, por vezes apertadas entre duas casas à ocidental quase novas, embora já o não pareçam, nos três degraus húmidos que separam a sombra interior do exterior, dois ou três crisântemos em vasos, eriçados, muito conseguidos, ou pelo contrário rígidos de caule e de corola, símbolos da dinastia solar, dois ou três lírios na Primavera, em qualquer época um ou dois emblemas bonsais de perenidade conferem a essas existências citadinas um pouco de natureza estilizada e, não obstante, viva. A arte do jardim japonês encontra-se já inteiramente nesses vasos de crisântemos e bonsais.
Jardins exóticos, mas nãos de delícias, como os que se vêem nas miniaturas iranianas ou mongóis, de que a Índia conservou pelo menos vestígios. Ainda menos jardins de prestígio, como as avenidas de Versalhes, ou os terraços e escadarias monumentais dos jardins de Itália ou mesmo as longas perspectivas dos Tangs. Percorremo-los com dificuldade; as lajes desiguais que conduzem o visitante de um ponto ao outro dos jardins imperiais do Katsura, obrigam o passeante a partilhar a atenção entre o espectáculo que lhe é oferecido e o lugar onde pôr os pés. Sem margem para a mínima dúvida, os espaçosos jardins Heian e os dos shôgun serviram de cenário a festividades, algumas das quais ficaram lendárias pelo seu fausto e multidão que acudia. Não obstante, as pinturas da época mostram-nos sempre os convidados a conversar em pavilhões semifechados que se abrem simultaneamente para a paisagem e separam delas os seus ocupantes, ou ainda a ouvir música em embarcações que flutuam num lago aberto pela mão do homem.
A Natureza, aqui, é mais para ver do que para tocar. Não se vêem nos jardins japoneses namorados deitados na relva ou a tomar banho na fonte e ainda menos, se possível, o sentimento de descontracção e de indiferença que se apodera de todos nós em semelhantes locais, guarnecidos de bancos longos nos quais uma pessoa se estende ou as crianças e cães se perseguem na relva. Esses lugares estritos e delicados destinam-se sobretudo a ser contemplados do interior de uma casa de paredes móveis, sentado, de pernas cruzadas, na orla do pavimento liso, deixando absorver-se em si o crepúsculo ou o lugar. A parte do olfacto é assaz reduzida: os lírios, as peónias, os crisântemos, flores caracteristicamente japonesas, ou as cerejeiras ainda mais sumptuosas que as nossas, não dão frutos. As flores, com sagacidade, mas na aparência plantadas com negligência, não têm a abundância sensual dos nossos canteiros e respectivas guarnições, nenhum amante das flores, nem de resto, qualquer amante simplesmente conseguiria colher aqui os ramos abundantes de um Degas, de um Fantin-Latour ou de Breughel, o Jovem – semelhante prodigalidade seria sacrílega. As flores, tão estimadas, não o são somente por nós: discípulos ocidentais do ikebana, a arte japonesa das composições florais, notaram com frequência que a flor, antes de tomar o seu lugar num arranjo exacto e sóbrio, apenas é considerada pelo Mestre e seus alunos como um material. O bonsai, obra-prima nipónica de colaboração com a Natureza, é dobrado, podado, ávido de fazer a pouco e pouco dele a maravilha que durará séculos: é tratado com o mesmo rigor que um homem do bushidô [via do guerreiro, código de honra dos samurais].
Nada de menos nipónico que o gesto do escritor Yukio Mishima numa das mais belas e célebres das suas fotografias: esse homem absorvido numa rosa, o rosto apaixonadamente mergulhado numa corola como para a beijar ou comer, não corresponde ao que julgamos compreender da ilusória sensibilidade japonesa. Pelo contrário, no seu filme Patriotismo, Mishima oferece-nos por várias vezes um símbolo quase inquietante das posições recíprocas do homem e da Natureza em terras japonesas. Na modesta casa de uma ruela de Tóquio, onde o tenente e a esposa põem em prática o seu suicídio, ele, por uma questão de honra, para não sobreviver a amigos presos durante uma revolta, ela por fidelidade ao homem que se mata, vemos desenrolar-se o ritual das últimas carícias, a prece perante o altar doméstico e, por fim, a morte atroz do homem e o suicídio mais breve da mulher. No entanto, de vez em quando, o aparelho de tomadas de vistas desloca-se e observamos, no exterior, na estreita moldura do pequeno jardim que circunda a casa, um jovem abeto coberto de neve. Enquanto na residência humana se faz amor, reza, sofre e morre, a pequena árvore continua presente, assim como, também efémero, o seu manto de neve branca.


Marguerite Yourcenar, Uma Volta pela Prisão (cap.XII)

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