
O meu pai que sempre foi um homem de estatura pequena, baixinho, de pouco mais de metro e meio, quis um dia ser carreteiro. E foi ser. Quando subia na sua Scania branca, um carro-tanque imenso de comprido, carregando álcool, melaço e açúcar pelo país a fora, quando se sentava naquela cadeira de motorista e punha as mãos na direção, virava de repente, passe de mágica, um gigante. Ficava irreconhecível. Dominava a máquina como se fossem um só, ela e ele. A face transbordava de satisfação. Lembro que eu tinha um orgulho danado dele ser o meu pai. Era bonito de vê-lo ali tão vivo, tão pleno, por que era ali que ele parecia encontrar o motivo primordial de sua existência. Ali ele se completava, ali estava inteiro.
Há coisas assim que parecem ter sido inventadas para a gente e que, ao mesmo tempo, a gente parece ter sido inventado para elas. É quando faz sentido estar lá, quando há alegria na feitura, na confecção, na urdidura, no trabalho; é quando a luta está longe de ser um castigo, quando vira prazer, quando excede o suor, quando o suor vira um prêmio, um gozo, uma alegria, um ápice, um símbolo de festejo, um regozijo. E o tempo passa a galopes e com ele passamos sem sentir, galopamos em seu dorso, viajamos submersos na aventura de fazer, sem ver que as horas escoam. Construir o próprio ser ao fazer concomitantemente uma determinada obra, ação, atividade, de coração tão inteiro, de alma tão presente, é tão prazeroso, acredito, quanto receber a obra. Tinha essa impressão quando eu era criança e abria um livro, qualquer livro, do Monteiro Lobato. De repente toda a turma do Pica-Pau Amarelo vinha se aconchegar em meu quarto, tarde da noite, altas horas. Tudo silenciava e o sono desaparecia só porque havia emoção aos montes nas páginas do paulista. Era desse jeito, curiosíssimo, apegado a cada ação descrita, escravo de cada riso e arrepio, que eu sentia o coração bater mais veloz e a vida valer mais a pena. Dimensionava o tamanho da felicidade que ele, Lobato, deve ter sentido ao escrever aquelas palavras pelo tamanho da minha em lê-las, em devorá-las horas a fio até quase amanhecer o dia, até tombar finalmente vencido pelo sono.
Quem está assim inebriado pelo prazer de construir alguma coisa, nos seus detalhes mínimos, da sua estrutura micro à sua grandeza macro, deve mesmo ficar em “estado de graça”, como diziam os antigos.
E porque não basta ser apaixonado, porque a paixão não deve servir só a quem a sente, é preciso ser também apaixonante, ser também cativante, ou seja, não basta ter uma candeia acesa, é preciso colocar fogo no lampião alheio, virar luz, incendiar. E tão simplesmente porque não se guarda uma coisa dessas só para si, não se esconde isso de ninguém, disso se faz archotes, se quer gritar aos ventos, se disseminar sementes.
A gente olha e vê e sabe que é verdade: “essa obra aí foi feita com amor, com cuidados, com paixão; essa obra aí tem alma, não está vendo?!” Penso isso quando vejo Aleijadinho, Michelângelo e Rodin; quando levo Proust comigo; quando leio Corção, Whitman e Woolf; quando ouço Piazzola, Bach, Morricone e Dylan; quando vejo Bergman, Mizoguchi, Tarkovski e Fellini. Há coisas lá que denunciam uma entrega sincera à paixão, à alegria de criar um ser que trilhará caminhos que não se saberia dizer quais, porque tem vida própria, vontade própria, desígnios próprios.
Há pessoas na vida, no nosso dia a dia, que a gente vê e sente que foram talhadas para determinado fim, para determinada atividade, feito conta aquele filme do Roberto Berliner (“A Pessoa É Para o Que Nasce”). Ver as obras dessas pessoas, mesmo que poucas ainda, já aponta para o que há de ser. No meu pouco entendimento, Lourenço, você nasceu para a escrita, para emocionar pela palavra. Não deve, portanto, temer escrever e escrever e escrever, porque escrever é onde sinto que você de fato É. Seja, portanto, você... sem receios... e escreva mais, escreva muito, escreva sempre. E toque de leve em todos nós e nos comova o quanto puder! Fique à vontade! Estamos todos muito precisados!