quarta-feira, 30 de abril de 2014



"Um filósofo produz idéias, um poeta poemas, um pastor sermões, um professor tratados etc. Um criminoso produz crimes [...]. O criminoso não produz somente crimes, ele produz também o Direito Penal e, em conseqüência, também o professor que produz cursos de Direito Penal e, além disso, o inevitável tratado no qual este mesmo professor lança no mercado geral suas aulas como ‘mercadorias’. [...] O criminoso produz, além disso, toda a polícia e toda a justiça penal, os beleguins, juízes, carrascos, jurados etc. [...] Enquanto o crime retira uma parte da população supérflua do mercado de trabalho e assim reduz a competição entre os trabalhadores [...] a luta contra o crime absorve outra parcela dessa mesma população [...]. O crime, pelos meios sempre renovados de ataque à propriedade, dá origem a métodos sempre renovados de defendê-la e, de imediato, sua influência na produção de máquinas é tão produtiva quanto as greves"

Karl MARX. Teorias da Mais-Valia

“Como se opera em nossa vitalidade o torniquete que nos leva a tolerar o intolerável, e até a desejá-lo? Por meio de que processos, nossa vulnerabilidade ao outro se anestesia? Que mecanismos de nossa subjetividade nos levam a oferecer nossa força de criação para a realização do mercado? E nosso desejo, nossos afetos, nosso erotismo, nosso tempo? Como todas estas nossas potências são capturadas pela fé na promessa de paraíso da religião capitalista? Que práticas artísticas têm caído nesta cilada? O que nos permite identificá-las? O que faz com que elas sejam tão numerosas? (...) Como liberar a vida destes seus novos impasses? O que pode nossa força de criação para enfrentar este desafio? (...) Em suma, como reativar nos dias de hoje, em suas distintas situações, a potência política inerente à ação artística?”

Suely Rolnik

quinta-feira, 24 de abril de 2014

Procura-se um amigo

Não precisa ser homem, basta ser humano, basta ter sentimentos, basta ter coração. Precisa saber falar e calar, sobretudo saber ouvir. Tem que gostar de poesia, de madrugada, de pássaro, de sol, da lua, do canto, dos ventos e das canções da brisa. Deve ter amor, um grande amor por alguém, ou então sentir falta de não ter esse amor.. Deve amar o próximo e respeitar a dor que os passantes levam consigo. Deve guardar segredo sem se sacrificar.

Não é preciso que seja de primeira mão, nem é imprescindível que seja de segunda mão. Pode já ter sido enganado, pois todos os amigos são enganados. Não é preciso que seja puro, nem que seja todo impuro, mas não deve ser vulgar. Deve ter um ideal e medo de perdê-lo e, no caso de assim não ser, deve sentir o grande vácuo que isso deixa. Tem que ter ressonâncias humanas, seu principal objetivo deve ser o de amigo. Deve sentir pena das pessoa tristes e compreender o imenso vazio dos solitários. Deve gostar de crianças e lastimar as que não puderam nascer.

Procura-se um amigo para gostar dos mesmos gostos, que se comova, quando chamado de amigo. Que saiba conversar de coisas simples, de orvalhos, de grandes chuvas e das recordações de infância. Precisa-se de um amigo para não se enlouquecer, para contar o que se viu de belo e triste durante o dia, dos anseios e das realizações, dos sonhos e da realidade. Deve gostar de ruas desertas, de poças de água e de caminhos molhados, de beira de estrada, de mato depois da chuva, de se deitar no capim.

Precisa-se de um amigo que diga que vale a pena viver, não porque a vida é bela, mas porque já se tem um amigo. Precisa-se de um amigo para se parar de chorar. Para não se viver debruçado no passado em busca de memórias perdidas. Que nos bata nos ombros sorrindo ou chorando, mas que nos chame de amigo, para ter-se a consciência de que ainda se vive.


Vinicius de Morais

terça-feira, 15 de abril de 2014

Sentido e contra-senso da revolta



“Os grandes momentos da arte e da cultura no século XX são momentos de revolta formal e metafísica. (...) Estamos atualmente entre dois impasses: fracasso das ideologias revoltadas, por um lado, enxurrada da cultura-mercadoria, por outro. (...)
Qual é a necessidade dessa cultura-revolta? Por que se encarniçar em ressuscitar formas de cultura cujos antecedentes descobri entre dúvida cartesiana e negatividade hegeliana, entre inconsciente freudiano e “vanguarda”? Tudo não está simplesmente perdido para sempre? Por que não nos contentarmos, após a morte das ideologias, com a cultura-divertimento, com a cultura-show e com os comentários complacentes?
A questão que desejo tratar é a da necessidade de uma cultura-revolta numa sociedade que vive, se desenvolve e não estagna. Com efeito, se essa cultura não existisse em nossa vida, seria o mesmo que deixar essa vida se transformar numa vida de morte. (...)
Há urgência em desenvolver a cultura-revolta a partir da nossa herança estética e a encontrar para ela novas variações. Heidegger pensava que somente uma religião podia ainda nos salvar; diante dos impasses religiosos e políticos de nossa época, podemos pensar hoje que somente uma experiência de revolta seria capaz de nos salvar da robotização da humanidade que nos ameaça.
(...)
Nosso mundo moderno atingiu um ponto de seu desenvolvimento onde certo tipo de cultura e de arte, se não toda a cultura e toda a arte, está ameaçada, até mesmo impossibilitada. Como lhes disse, não a arte ou a cultura-show, nem a arte ou a cultura-informação consensuais favorecidas pelas mídias, mas justamente a arte e a cultura-revolta.
(...)
Em vez de adormecer na nova ordem normalizadora, tentemos reanimar a chama, que tem tendência a se apagar, da cultura-revolta.”

Julia Kristeva

sexta-feira, 11 de abril de 2014



Vocês não têm a menor idéia de quantas e tantas vezes pensei em desistir. Não ir mais a teatro, não pensar mais em teatro, não passar mais nem na frente de um teatro. Cheio até o talo, até não mais poder! A falta de tato de tantos, a correria atrás de financiamentos, o não ter grana, os atropelos, os especialistas de olhar voltado para uma estética decadente mas endeusada, a escassez de crítica decente, a burocracia dos equipamentos públicos, a idiotização de boa parte dos que têm assento nos Quatro Poderes...
Fora a insônia e o sonhar acordado com cenas, ideias que vêm na hora do banho, na hora do sono bom, na hora da trepada e nos legam a travessia dura de uma noite inteira na frente do computador, escrevendo e reescrevendo textos, pretextos, protestos...
E mais o desejo de fazer melhor, querer fazer diferente das cartilhas, correr mais riscos para ver algo vivo vingar, tomar forma, ficar de pé, ganhar voz e ressoar poderoso nos presentes...
Fora o querer descobrir procedimentos mais eficazes de treinar os seus atores e participar mais efetivamente da proposta honesta de transformações  humanas...
O pensar e repensar o próprio percurso (todo santo dia!), se questionar sobre os caminhos tomados e os a tomar...
E a vontade de se capacitar a fim de não se permitir a cristalização, nem da alma e nem do corpo, nem das ideias...
Além de muitas vezes se sentir sugado até o limite do humano, o cansaço, a frustração de tantas coisas queridas que morrem na praia...
Fora o se sentir ignorante de tantas coisas...
Fora o querer saber um tantinho mais a cada dia... descobrir coisas novas
Ai a gente se despede do teatro
E fica com uma agonia no peito
Uma sensação (nada vaga) de vazio perpétuo
O tempo escoando sem nada se fazer, nada pelo menos que dê um valor ao existir
Que dê sabor ao saber
Uma sensação de sozinho
Ai toca o telefone e alguém te convida para um projeto irrecusável
E o corpo todo treme
E tudo retorna com fome mais voraz
E o cara que tinha antes jurado desistir
Mais uma vez se ergue para o delírio