"Gostaria de antecipadamente esclarecer
um mal-entendido. Pessoalmente, não sou a favor da arte subjetiva
demais. Minha poesia sempre foi um meio de conferir a mim mesmo. Por
meio dela, poderia apurar o limite a partir do qual a falsidade de
estilo testemunha a falsidade da posição do artista; tentei não cruzar
essa linha. Os anos de guerra me ensinaram que um homem não deve pegar
uma caneta meramente para comunicar aos outros o próprio desespero e
derrota. Essa é uma comodidade barata demais; leva muito pouco esforço
possibilitar ao homem que se orgulhe por ter feito isso. Quem viu como
muitos viram uma cidade reduzida a escombros_ quilômetros de ruas nas
quais não sobrou nenhum sinal de vida, nem mesmo um gato ou cachorro de
rua_ saiu dessa experiência com uma atitude irônica para com as
descrições do inferno na própria alma. Um verdadeiro "depósito de lixo" é
mais terrível que qualquer cenário imaginário. Quem não viveu em meio
ao horror e pânico não pode saber o quão fortemente uma testemunha ou
participante protestam contra si mesmos, contra sua própria negligência e
egoísmo. A destruição e o sofrimento são a escola do pensamento social."
quarta-feira, 17 de abril de 2013
Fé
Fé
Fé, é quando vemos
A gota de orvalho ou a folhinha pelo rio fluir
E sabemos que existem pois têm de existir.
E ainda que de olhos fechados nos deixemos sonhar
Só haverá no mundo o que havia
E as águas do rio a folhinha vão levar.
Fé, é quando ferimos
O pé na pedra e sabemos que as pedras
Lá estão para que os pés nos firam.
Vejam quão grande é a sombra das árvores,
Assim como a nossa e a das flores,
O que não tem sombra, não tem força para existir.
Czesław Miłosz
Fé, é quando vemos
A gota de orvalho ou a folhinha pelo rio fluir
E sabemos que existem pois têm de existir.
E ainda que de olhos fechados nos deixemos sonhar
Só haverá no mundo o que havia
E as águas do rio a folhinha vão levar.
Fé, é quando ferimos
O pé na pedra e sabemos que as pedras
Lá estão para que os pés nos firam.
Vejam quão grande é a sombra das árvores,
Assim como a nossa e a das flores,
O que não tem sombra, não tem força para existir.
Czesław Miłosz
Czeslaw Milosz
Um texto sobre Czeslaw Milosz
Alguém morre para alguém renascer Os tempos são bárbaros, mas também há espaço para perdão, harmonia e ternura.Na última semana a Polônia e o espírito humano perderam aos 93 anos o Prêmio Nobel de Literatura e um dos ícones da poesia, Czeslaw Milosz.
A noite de 18 de novembro de 2002, marcou um momento nas relações profundas entre o Acontecido e o Oculto. Cinqüenta intelectuais se reuniram para criar o Grupo de Análise Czeslaw Milosz, em São Paulo. Foram lidos seus poemas e discutida sua obra. Bianca Rinaldi, atriz de TV e teatro, Marília Librandi Rocha, doutora em teoria de crítica literária da Universidade de São Paulo, Jadwiga Cichen Dansa, advogada, a professora Julia Kraujalys, o embaixador Krzysztof Jacek Hinz e eu.
Respondendo aos versos de Milosz que transcriei: "O verso do verso. Morrendo, anverso do mundo. Atrás do pássaro, a montanha, expor do sol. A essência, o sentido feito sentido. Ainda que só existia o verso, sem anverso. O sabiá na palmeira, as noites e dias que seguiam a infinita rotina. Tudo, nada mais que o nada. Ainda o verso que ao versejar, protesta nos infinitos."
O essencial correu no entretexto. Meus pais imigraram da Polônia, aproximadamente há um século, vindos de Ostrowiecz. Meu avô materno, o rabino Aron Elwing, com a família, e meu pai, um “outsider”, sozinho no cargueiro Valdívia. Pobres, guardavam da Polônia, a mágoa de judeus desenraizados e uma nostalgia saudosa de amor profundo. Conflito que dilacerava suas lembranças. Nasci em Juiz de Fora e alimentei-me com esses sentimentos ambivalentes por toda minha vida.
Até que deparei-me com a escrita de Milosz. Li e reli seus versos, e atrás das palavras adivinhei o recado. Dividi minha emoção com escritores e artistas. Reação unânime. Relatava meu testemunho biográfico. Convocamos a reunião. Um dia antes do evento, telefonema de Brasília. Jacek Hinz participará com uma conferência. As bandeiras da Polônia e do Brasil ornam a mesa. Vislumbro meus pais falecidos pairando, surpresos e admirados. Fico entre o choro e o riso. Gerações perpassam a fala de Hinz comentando a saga política de Milosz, num pronunciamento político lúcido e corajoso. É lido um poema em lituano. As palavras do cônsul Andrzej Lisowski que destaca o Czeslaw Milosz antitotalitário, espiritualizado, preocupado com as aflicões humanas.
A família de meu pai foi exterminada em campos de concentração. Ao minuto de silêncio do luto, segue-se a viagem de volta. O ódio não prevaleceu. O coro celebra os acordes. Ouviram do Ipiranga às margens plácidas. Jeszcze Polska nie zginela. Tudo é símbolo, e sábio é quem lê em tudo. Plotino. Uma espécie de microcosmo dos grandes conflitos étnicos, religiosos, políticos da Europa e, de certa maneira do próprio Ocidente, culminando na figura carismática de João Paulo II.
Faz a sua ressurreição. Quem lê o poema ao lado e traduz o verso inicial do hino polonês (o país que não morre), verá a saga comum e universal que enrola e desenrola o passado e o futuro. Com The Heart of Darkness, de Joseph Conrad, o coração nas trevas em que, para estancar velhas feridas, no recesso do espírito, alguém morre, para alguém nascer.
Deixei as palavras escorrerem, para retratar os passos peregrinos. Passa no espaço quem não trai seu tempo.
E o nosso tempo tem sido um dos mais bárbaros da presença humana na Terra. Genocídio, guerras, terrorismo, incompreensão. Mas também tem sido a epopéia de perdão e reconciliação, harmonia e ternura, uma construção penosa em que dialogam as tribos de origens multifacéticas mas de horizontes abertos. Até sempre Czeslaw Milosz.
JACOB PINHEIRO GOLDBERG, in O Estado de São Paulo
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