terça-feira, 13 de março de 2012

A VIDA POBRE

Necessitamos das artes para não morrermos.
As artes falam conosco, as artes dizem-nos coisas, não se calam, não se calam, não nos deixam no silêncio, não nos deixam naquele silêncio em que se morre de tédio... vejo as artes como um resíduo, aquilo que resta de uma série de coisas que o ser humano gosta de fazer para manter o seu espírito num determinado ponto de possibilidade. Talvez não só de possibilidade como de interesse. Um ponto em que é possível e interessante existir... o ser humano precisa de não estar sempre no cotidiano, precisa de sair do cotidiano e entrar noutros níveis, noutra sensação do mundo. Precisa de fazer coisas não produtivas, sair da lógica da produção, ter objetivos diferenes desses, precisa de voltar a saber que não há só um caminho entorpecedor e mecânico, que a vida é mais sutil do que isso, mais rica de redes e nós de sentidos e sensações, de linhas que se cruzam e que embaralham e iluminam, é preciso reconhecer essas coisas, assinalá-las, sublinhá-las, não só através do discurso mas também com o corpo, em ações, associando sentidos e elementos, virando de vez em quando as coisas ao contrário, desorganizando e reogarnizando.
É preciso olear o espírito, olear o ser. É preciso também pensar com o corpo, deixar o corpo falar, pobre corpo. É preciso sair de dentro do porta-malas e entrar na associação, no delírio, na sujidade... na acoplagem, acoplagem de elementos ao nosso corpo, acoplagem de sentidos ao nosso corpo, ou acoplagem de objetos e sentidos entre si. É preciso entrar na transformação. É preciso entrar no êxtase, na contemplação, na calma, nos sentidos do corpo, no corpo, na poesia, em visões, no espanto, no assombro, no gozo, no inconsciente, na perda, no esvaziamento, no desprendimento, na queda. É preciso tirar os sapatos. É preciso deitarmo-nos no chão. É preciso entrarmos na imaginação, nas histórias, no pensamento, nas palavras, no humor, no pensamento, em relação com os outros.
Nós precisamos muito disto, precisamos muito disto tudo, e estamos a ter muito pouco disto e é por isso que, como disse no início, o espírito está em erosão, a cultura está em erosão e nós às vezes estamos muito tristes ou temos a sensação de que a vida desapareceu de cá de dentro.

(Vera Mantero - Elipse - uma gazeta improvável, 1998)

Um comentário:

  1. A arte é o melhor remédio para o caos. Fico sem mim quanto estou longe desse olhar. A arte salva porque nos constrói e nos arremessa no abismo... É por aí : "É preciso olear o espírito, olear o ser. É preciso também pensar com o corpo, deixar o corpo falar, pobre corpo."

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