terça-feira, 27 de março de 2012

Bibliofilia


Semanalmente eu ia à biblioteca (aquela do Parque 13 de Maio, a Estadual Presidente Castelo Branco), não para conseguir livros novos exatamente. Mas para pegar os velhos, os de páginas amarelecidas pelo tempo, os riscados, os com marcas e histórias, os esquecidos. Certa vez notei que em um exemplar de Kramer Versus Kramer alguém tinha se dedicado a sublinhar todos os palavrões impressos no livro. Achava engraçado isso. Teria sido um puritano religioso? Ou um sacana desses sem jeito para ter se dado a tal trabalho? Teria sido homem ou mulher? Eu ia nas fichas de empréstimo, coladas na última página do livro e ficava tentando desvendar as datas e as assinaturas. Quem deles, teria sido? Muitas vezes percebia que o livro não saia das prateleiras em décadas.

Com poucos dinheiros no bolso, adolescente dos chatos, eu comia livros, varava as noites, madrugadas. Eu Sou o Queijo, de Robert Cormier , Um Belo Verão Perdido, de William Inge, O Velho Bairro, de Avery Cormann, Ouvi a Coruja Chamar Meu Nome, de Margareth Craven (com tradução da Clarice Linspector), A Ilha do Tesouro, de Stevenson, Os Três Mosqueteiros, de Alexandre Dumas, Bartleby, de Melville, Seminário dos Ratos, de Lygia Fagundes Telles, Feliz Ano Velho, de Marcelo Rubens Paiva... Estava tudo lá: aventuras, mortes, romances, encontros, partidas, desfechos e tramas surpreendentes...

No inverno, com a desculpa de não ter levado guarda-chuva, ficava tardes inteiras, esquecido de mim, na Circulante. Voltava para casa à noite e ficava trancado no quarto comendo palavras, instigado. "Vai dormir, menino!", dizia a minha mãe. E eu nem nem, entretido com outros mundos.

terça-feira, 13 de março de 2012

A VIDA POBRE

Necessitamos das artes para não morrermos.
As artes falam conosco, as artes dizem-nos coisas, não se calam, não se calam, não nos deixam no silêncio, não nos deixam naquele silêncio em que se morre de tédio... vejo as artes como um resíduo, aquilo que resta de uma série de coisas que o ser humano gosta de fazer para manter o seu espírito num determinado ponto de possibilidade. Talvez não só de possibilidade como de interesse. Um ponto em que é possível e interessante existir... o ser humano precisa de não estar sempre no cotidiano, precisa de sair do cotidiano e entrar noutros níveis, noutra sensação do mundo. Precisa de fazer coisas não produtivas, sair da lógica da produção, ter objetivos diferenes desses, precisa de voltar a saber que não há só um caminho entorpecedor e mecânico, que a vida é mais sutil do que isso, mais rica de redes e nós de sentidos e sensações, de linhas que se cruzam e que embaralham e iluminam, é preciso reconhecer essas coisas, assinalá-las, sublinhá-las, não só através do discurso mas também com o corpo, em ações, associando sentidos e elementos, virando de vez em quando as coisas ao contrário, desorganizando e reogarnizando.
É preciso olear o espírito, olear o ser. É preciso também pensar com o corpo, deixar o corpo falar, pobre corpo. É preciso sair de dentro do porta-malas e entrar na associação, no delírio, na sujidade... na acoplagem, acoplagem de elementos ao nosso corpo, acoplagem de sentidos ao nosso corpo, ou acoplagem de objetos e sentidos entre si. É preciso entrar na transformação. É preciso entrar no êxtase, na contemplação, na calma, nos sentidos do corpo, no corpo, na poesia, em visões, no espanto, no assombro, no gozo, no inconsciente, na perda, no esvaziamento, no desprendimento, na queda. É preciso tirar os sapatos. É preciso deitarmo-nos no chão. É preciso entrarmos na imaginação, nas histórias, no pensamento, nas palavras, no humor, no pensamento, em relação com os outros.
Nós precisamos muito disto, precisamos muito disto tudo, e estamos a ter muito pouco disto e é por isso que, como disse no início, o espírito está em erosão, a cultura está em erosão e nós às vezes estamos muito tristes ou temos a sensação de que a vida desapareceu de cá de dentro.

(Vera Mantero - Elipse - uma gazeta improvável, 1998)

quarta-feira, 7 de março de 2012

Simone!






Ah, sim! Bonita lá era, a danada da menina Simone chamada. Cachos ruivos na fronte de sardas; sorriso largo, alvíssimo, olhos grandes caprichados no castanho-puxado-pro-amarelo, quase damascoso. Nem alta, nem baixa. 12 anos de enxerimento, 12 anos somente, meu Deus!, mas já cheia de graças e trejeitos, seios rascunhando espevitamentos no corpo da mulher por vir, já nutrindo querências.

Ela tinha gosto em ser vista, a desgraçada. Dava pra sentir isso nos olhos dela, no sorriso de canto de boca, no pseudo-desdém. O que tinha de bonita, tinha de tinhosa. Faceira, desmedida nas sinuosidades, bamboleava pelas ruas, toda dona do ser. As inocências, começava a perder todas, uma a uma, safaaaaaada que era demais, um cãozinho com cara de arcanjo, a fazer descobertas, experimentando façanhas, andares, biquinhos, modos de endoidar homens ainda meninos e também os homens-homens feitos, barbudos, prontos, testados.

Costumava, nos fins de tarde, caçar pão na padaria, a mando da avó. Pegava a bicicleta da prima e lá se ia numa roupinha curta, um short, uma saia miúda por demais, as pernas grossas de fora, os pêlos finos, blusas sem mangas de número bem maior que o dela, sem sutiã, atraindo, feito um imã, as fantasias dos seres, que alimentavam as suas. Ela se ria gostoso, imaginando as intumescências... um sorriso safado, mal disfarçado, matreiro, rascunhado no rosto.

Na hora do recreio, pátio da escola, pino do meio-dia, à la normalista, ela tinha o hábito de armar arapucas para os de quem se engraçava. Era um espelho redondo, desses de bolso, antigamente usados pelos mais velhos. De propósita malícia, deixava-o no chão com a face espelhada para cima, a refletir o céu. E como quem lança convite, pedia ingenuamente que um menino ou outro apanhasse para ela o tal objeto. E no imediato com que o escolhido se baixava, ela abria um tantinho mais as pernas no intento de que mais luz pudesse deixar o gentil cavalheiro entrever as suas partes púbicas, desnudas, penugens nascentes, no fundo semi-escuro da saia refletida na lâmina de vidro.

Certa vez, Antônio Amaro foi pego no banheiro masculino, fazendo safadezas com as mãos. Foi levado à secretaria aos empurrões, que nem criminoso. Perguntado do porquê tinha feito aquela coisa pecaminosa, não titubeou: “Simone!” As professoras ficaram aterradas. Os professores também, embora no fundo escuro de si mesmos, compreendessem os motivos de Toinho. A notícia se espalhou ligeira. Simone era só sonsice. Fingia que não era com ela lá, que não tinha nada a ver com aquilo, mas gostava. E se ria por dentro. Risadas das grandes segredadas somente para si. Mas a gente, de fora, via lá dentro que para ela aquilo era um gozo só só.