quinta-feira, 24 de novembro de 2016

SOBRE “NÓS” PAIRA O IMPONDERÁVEL


Nunca morri de paixão pelo GRUPO GALPÃO, de Minas Gerais. “Morrer de paixão” aqui é ser cego no sentido em que alguns apaixonados se deixam ficar, a ponto de se maravilhar com qualquer coisa que o objeto de sua paixão venha a fazer, sem ver ali o que há de bom ou ruim, porque tudo tudo, de antemão, “parece bom”. Para o apaixonado clássico tudo é lindo quando se trata de sua paixão.
Então, como ia dizendo, eu nunca morri de paixões pelo Galpão. Embora uma das coisas mais belas que lembro ter visto em teatro tenha vindo do grupo. Era a primeira parte (a segunda parte não, era um pé no saco) da RUA DA AMARGURA. Durava pouco, mas ainda permanece em mim. O Nascimento de Jesus, as canções, as cores, a movimentação, a alegria, era absolutamente pungente, belo mesmo, maravilhoso até. Depois disso, daí em diante, tudo o que vi do grupo me soou como uma variante mais pobre deste momento fulminante.
Nem o Romeu e Julieta, aclamado mundo a fora, me foi tão precioso como aqueles 15 minutos de prólogo da Rua da Amargura.
Entendam, não estou aqui desfazendo a trajetória ou a poética do grupo. Tenho o maior respeito mesmo por ele, por que faz coisas de um esmero e cuidados que impressionam. Mas é que nada me tocada, me afetava, me comovia. Ver o Galpão era como observar com olhos pouco devotos, de longe, uma santa no altar. Se admira a beleza, se respeita o que representa, mas com pouca comoção por qualquer outro aspecto, sem maior estupefação.
Mas ontem... ontem fui ver “Nós”, o novo trabalho do grupo, que está em Recife, participando do FESTIVAL RECIFE DO TEATRO NACIONAL. Fui porque é bom participar. Fui para ver o belo (e isso hoje já seria por si só muito bom). Mas sabe, quando você entra com pouca expectativa e de repente percebe uma força maior que você, que lhe absorve, provoca, agride, transtorna, emociona, desafia?
Pela primeira vez vi um Galpão que está fora, absolutamente fora, de seus parâmetros estéticos, que aposta numa renovação incomum de sua poética. Para além das canções, da luz, da dramaturgia, o espetáculo vale por um elenco afiado, disposto, dono do espaço e dos tempos, vale por Teuda Bara, vale por não menosprezar a nossa inteligência, por comungar a “sopa” dos dias, vale por que é preciso, mesmo sem saber para onde ir, não deixar que a inércia, a preguiça, a desculpa, nos imobilize. Ali, sem sair da cadeira, o público se move, se translada, se agita, se comove.
Feliz pelo grupo, por mim (que tive esta oportunidade) e por Ana Paula, a quem vim o trajeto inteiro de volta para casa tentando acalentar. Ela bem sabe que não há palavras que açambarque o imponderável e que a poesia morre quando tentamos disseca-la.
Quem não viu vá ver. Hoje ainda tem. Às 20h30.
Imperdível.

QUE EMOÇÃO!

“Todos choramos. Nascemos chorando. Ninguém se lembra, mas que emoção dever ser, uma enorme emoção, essa de nascer, de vir ao mundo. Até onde posso me lembrar, sei que chorei muito quando pequeno. Chorei por um sim e por um não. Minha irmã mais velha ficava parada na minha frente me olhando fixamente e me dizia: ‘Chore!’. E eu chorava. Chorei de desgosto, chorei de tristeza, chorei de amor, chorei de raiva (foi minha mãe quem me explicou isso, e esse foi um dia importante, quando compreendi que podemos chorar de raiva como um primeiro passo para TOMAR A DECISÃO DE AGIR, de NÃO SE DEIXAR EXPLORAR, de se REVOLTAR). Talvez houvesse também um prazer secreto em chorar. Um dia, enquanto chorava, cruzei por acaso com o meu reflexo no espelho: vi minha própria imagem toda enrugada, meus lábios todo contraídos, minhas lágrimas. E nesse dia eu parei de chorar. Mas ainda hoje acontece, até com alguma frequência, que eu tenha vontade de chorar quando uma emoção toma conta de mim, me submerge. Por exemplo, quando ouço certas músicas. ”

Georges Didi-Huberman