quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

NOTICIAS DA ANTIGUIDADE IDEOLOGICA - O CAPITAL MARX, EISENSTEIN, 'O CAPITAL'

é um filme multimídia do cineasta alemão Alexander Kluge baseado no projeto inacabado do diretor Sergei Eisenstein de filmar 'O Capital', de Karl Marx, a partir da estrutura literária de 'Ulisses', de James Joyce. A obra é apresentada em sua versão integral em uma embalagem especial com 3 DVDs, e ainda traz extras, incluindo entrevista com Jean-Luc Godard. Inclui participações do filósofo Peter Sloterdijk, do escritor Hans Magnus Enzensberger, do poeta Durs Grünbein, do cineasta Tom Tykwer, entre outros intelectuais e artistas.

HANS MAGNUS ENZENSBERGER


HANS MAGNUS ENZENSBERGER (Kaufbeuren, 1929) é um poeta, ensaista, tradutor e editor alemão. Faz parte da geração de intelectuais daquele país cuja formação se iniciou durante o nacional-socialismo. Hans Magnus entrou para a Juventude Hitleriana na adolescência para logo depois ter sido expulso: "Sempre fui incapaz de ser um bom camarada. Não sou de ficar na fila. Não é do meu carácter." Estudou literatura e filosofia nas Universidades de Erlangen, Freiburgo, Hamburgo, e também na Sorbonne, em Paris, onde se doutorou em 1955. Entre 1965 e 1975 foi membro do Grupo 47 e criou a revista "Kursbuch", e desde 1985 edita a série literária Die Andere Bibliothek, em Frankfurt, agora com quase 250 títulos. Enzensberger é um excelente poeta europeu ao qual as minhas parcas versões não fazem justiça. A sua poesia tem um tom sarcástico e irónico, designadamente quando escreve sobre a típica classe média europeia, nomeadamente sobre as questões económicas que afectam a sociedade civil. Em 2009, Enzensberger recebeu o Prémio Griffin de poesia. Os quatro poemas que se seguem fazem parte do livro “A History of Clouds – 99 Meditations”



POR VEZES

Quando conheces alguém
mais inteligente ou mais estúpido do que tu -
não faças caso disso.
As formigas e os deuses,
acredita, sentem o mesmo.
Que exista mais gente na China,
digamos, que em San Marino,
não é uma desgraça.
A maioria das pessoas, sem dúvida, é
mais negra ou mais branca que tu.
Por vezes és um gigante,
qual Gulliver, ou um anão.
Em algum lugar ou outro estás sempre a descobrir
uma beleza ainda mais radiante,
alguém ainda pior.
És medíocre,
felizmente. Aceita-o!
Sete graus centígrados a mais
ou a menos no termómetro -
e estarias além da salvação.

Arame farpado - ferramenta rudimentar mas ainda eficaz


Na era das câmeras de vigilância e da identificação biométrica, poderíamos achar que o arame farpado se tornaria obsoleto. Porém, ele continua sendo largamente utilizado em todo o mundo. Inventariar seus múltiplos empregos ou seus substitutos pode ser um exercício rico em ensinamentos.

 por Olivier Razac 

Inventado em 1874 por um fazendeiro norte-americano, Joseph Glidden, para cercar as propriedades das Grandes Planícies, o arame farpado se tornou imediatamente um instrumento político de primeira importância. Em menos de um século e meio, ele serviu para cercar as terras e assim afastá-las dos índios norte-americanos, e para encerrar populações inteiras durante a guerra de independência de Cuba (1895-1898) e a segunda guerra dos bôeres na África do Sul (1899-1902); além disso, alimentou as trincheiras da Primeira Guerra Mundial e forneceu a cerca incandescente dos campos de concentração e exterminação nazistas.
Essencialmente, o arame farpado do tipo “Glidden” destina-se apenas a uso agrícola. Quando se trata de afastar homens, ele é substituído pelo arame farpado dito “lâmina”: pequenas lâminas cravadas no fio central, que podem ao mesmo tempo cortar e furar o intruso, substituem as farpas. A forma da lâmina muda de acordo com a utilização prevista e pode servir tanto à simples dissuasão como ter a capacidade de ferir mortalmente.
A persistência de um objeto tão pouco elaborado pode surpreender. Em um século de progressão tecnológica fulgurante, ele continua eficiente para realizar o que se espera dele: delimitar o espaço, traçando no solo as linhas de uma partilha ativa. Nesse papel, ele é excelente. Sua leveza permitiu cobrir distâncias extraordinárias e sua flexibilidade responde a todas as necessidades: proteger, fortificar, fechar... Tudo isso com um fio de metal cheio de pequenas pontas. A distância entre a simplicidade do objeto e a importância de seus efeitos mostra que a perfeição de um instrumento de exercício do poder não se mede por seu refinamento técnico, que seu poder não passa necessariamente por um gasto de energia ou ainda que a maior violência não é forçosamente a mais impressionante.
Mesmo que o arame farpado tenha abandonado amplamente a paisagem das democracias liberais – teríamos muita dificuldade em imaginá-lo cercando escritórios, supermercados e jardins, ou sendo utilizado pelas forças da ordem para bloquear ruas durante manifestações –, ele não desapareceu. Continua sendo utilizado em todos os países, mas não em qualquer lugar. Em volta das plantações e pastos, no campo; na cidade, acima dos muros das fábricas consideradas estratégicas, dos quartéis, das prisões e em algumas residências; ao longo das fronteiras tensas, nos campos de batalha...
Nesses casos, o arame farpado funciona como um revelador das diferenças políticas. Por que é comum encontrá-lo sobre os muros das mansões ricas da África do Sul, ao passo que na França isso “não se faz”? Por que a polícia ou o exército podem facilmente parar os manifestantes desenrolando rolos de concertina1 nas ruas das Filipinas, enquanto os soldados franceses se protegem atrás de finos escudos de acrílico?
A resposta é, pelo menos, tripla. É preciso em primeiro lugar considerar o nível de violência das sociedades em questão. A fortificação das residências privadas relaciona-se com a brutalidade das desigualdades sociais, que ela inclusive contribui para piorar. O nível de sensibilidade à violência sofrida e percebida deve também ser levado em conta. Por fim, a variabilidade geográfica da força simbólica dos instrumentos utilizados: a percepção do arame farpado não é a mesma na Europa, na China e na África, em particular porque existe uma relação diferente com os objetos históricos que o arame farpado simboliza – na Europa, os campos de concentração, o genocídio, a guerra.
Esses três fatores desenham, finalmente, uma geografia política do arame farpado que também é uma cartografia dos grandes tipos de governo que coexistem no mundo – que não corresponde, em absoluto, aos recortes políticos mais convencionais (democracia versus ditadura). A resposta à questão “arame farpado ou não?” é um indicador bem confiável da tecnologia política e do tipo de relações entre governantes e governados.
Criar jardins de sonho
No Ocidente, o arame farpado simboliza a opressão, com relação às suas utilizações históricas catastróficas. Assim, “as cercas, os fios de arame farpado, as barragens, as forcas, as câmaras de gás e os fornos crematórios” do campo de concentração e exterminação de Auschwitz-Birkenau estão inscritos na lista do patrimônio mundial como o “símbolo da crueldade do homem contra o homem no século XX”.2 De modo significativo, no logotipo da Anistia Internacional, associação fundada no Reino Unido para combater a prisão e a tortura, figura uma vela enrolada num fio de arame farpado. Há que se notar que, por outro lado, a conotação negativa pode ser invertida quando se trata de destruir o dispositivo. Em 1989, a Hungria decidiu dar um passo significativo em direção ao Ocidente: “Num gesto simbólico, [o ministro das Relações Exteriores] cortou, com seu colega austríaco, os fios de arame farpado que marcavam a existência da cortina de ferro entre a Áustria e a Hungria”.3
A forte carga simbólica do arame farpado fez dele um instrumento ainda mais custoso politicamente por existir uma sensibilidade exacerbada à violência e um desejo de imunidade dos corpos, opiniões e afetos. Noli me tangere[Que ninguém me toque!], diz a expressão latina. “Nas sociedades ocidentais”, escreve o filósofo Alain Brossat, “o crescimento do paradigma imunitário tende a se desenvolver em verdadeira fobia do toque, do contato.”4 Nesse contexto, o arame farpado representa uma maneira intolerável de repartir os corpos no espaço. O risco de sofrer o contato cortante de suas pontas ou de suas lâminas, assim como a obrigação de suportar sua vista parecem inaceitáveis.
No entanto, até mesmo nos espaços onde o arame farpado é cada vez mais difícil de ser utilizado as delimitações não desaparecem: elas são apenas mais discretas, suavizadas. Pois existe um jogo de oposição entre, de um lado, as táticas de eufemização da violência espacial que necessitam da ausência de instrumentos agressivos como o arame farpado e, por outro lado, a persistência de táticas dissuasivas que se apoiem sobre uma brutalidade visível.
A eufemização é a princípio uma tática de discurso pela qual se substitui um termo por outro que diz indiretamente a mesma coisa. É assim que as fronteiras militarizadas se tornam “zonas desmilitarizadas”, “zonas tampão” ou “barreiras de segurança”. Mas, longe de ser apenas um linguajar, a eufemização também é estética, procedimental, tecnológica, arquitetônica, geográfica. Tomemos como exemplo as prisões para menores construídas nesses últimos anos: do lado de fora, indica o Ministério da Justiça, “a imagem carcerária é voluntariamente atenuada por um tratamento arquitetônico adaptado que garanta uma melhor integração ao ambiente”.5 A violência espacial se exerce, mas economizando o custo político de seu exercício direto e sem maquiagem.
Daí a fascinação atual, ao mesmo tempo anedótica e sintomática, pela cerca vegetal. Uma empresa francesa, Sinnoveg, patenteou em 2005 o conceito de “trepadeira defensiva trançada natural”. “Uma inovação completamente ecológica, decorativa e instransponível”, vangloria-se o panfleto publicitário da empresa. Graças a uma escolha de essências vegetais com espinhos particularmente agressivos, esse novo tipo de barreira permite criar um obstáculo tão eficiente quanto uma cerca de arame farpado, por um custo parecido e com um retorno estético neutro, até mesmo agradável. Como se fosse arame farpado, com a vantagem de dar flores na primavera...
Assim, “os locais são protegidos sem para isso parecerem agressivos ou até mesmo chocantes vistos de fora”. Outra vantagem dessas trepadeiras: elas são adaptáveis e moduláveis. Ao lado das escolas, os vegetais que as compõem são desprovidos de espinhos; por outro lado, nas localidades “sensíveis”, as plantas servem para camuflar e reforçar as cercas clássicas de arames farpados e grades. Nessas combinações de flores e espinhos se entrelaçam a tática e a poesia do poder. Jardins de sonho seguros: “A Sinnoveg possui um savoir-fairepara criar jardins de sonho, de descanso em harmonia com a casa e seus mestres, oferecendo ao mesmo tempo o conforto da tranquilidade e da segurança por meio de um conceito decorativo e discreto de cerca vegetal intransponível, assim como vegetais excepcionais e únicos”.
Refinados meandros da violência política
Em outros casos, a eufemização está a serviço de um aumento da potência repulsiva. Ela consiste em camuflar os instrumentos violentos – a trepadeira florida que dissimula grades e rolos de arames farpados laminados – ou em mascarar a própria ação de delimitação a fim de capturar mais facilmente aqueles que a transgridem. Mesmo suavizadas, as demarcações do espaço não desaparecem: elas se modulam segundo as necessidades técnicas, em função de um equilíbrio sutil entre eficiência do instrumento utilizado e sua aceitabilidade simbólica. O arame farpado não vai desaparecer das sociedades ocidentais, mas em breve ele será utilizado somente para níveis de segurança muito elevados (prisões, campos militares...), em situações em que poderá ser escondido ou ainda em locais afastados, pouco habitados. Nas cidades modernas, a eficiência e a discrição das delimitações são obtidas preferencialmente por meios tecnológicos virtualizados: câmeras, portões eletrônicos, sensores...
A carga simbólica negativa e inconsciente do arame farpado pode agir como um instrumento de dissuasão, seguindo o cálculo – político e pragmático – que decide por sua utilização. Assim, o bairro de New Willington, na periferia considerada perigosa de Compton, no sul de Los Angeles, foi cercado para colocar um fim aos enfrentamentos entre gangues. Ali há de tudo: arame farpado, grades com ponta de lança, barreiras, desvios, guaritas, guardas. “As conotações militares da arquitetura desse dispositivo de filtragem não são suavizadas. Ao contrário, essa estética defensiva torna visíveis a segurança e o controle que foram reencontrados nessa comunidade.”6
O aspecto agressivo da delimitação serve aqui para prevenir as tentativas de transposição ao mesmo tempo que produz uma diferença hierárquica entre dois espaços e duas populações. O interior é valorizado (principalmente em termos imobiliários) pela aparência chamativa da segurança, ao mesmo tempo que o exterior é desvalorizado e seus habitantes são designados como indesejáveis. Em outro local, em contrapartida, num município fechado da Califórnia, reservado a moradores com mais de 55 anos, a agressividade da cerca serve essencialmente para tranquilizar os habitantes, sem repousar sobre uma verdadeira utilidade operacional: “Aqui, a aparência de segurança é mais importante do que a segurança efetiva”.7
Todas essas possibilidades de agenciamento dos instrumentos de delimitação do espaço desenham um leque estratégico de grande riqueza: multiplicação e reforço dos limites graças a uma suavização simbólica, mas também endurecimento da segregação graças à sua brutalidade, real ou espetacular. O objetivo das divisões do espaço hoje não é binário: não se trata de uma “grande reclusão” da qual o arame farpado e a multiplicação das fronteiras blindadas seriam o sintoma, tampouco de uma simples liberação da circulação dos fluxos em razão da utilização de tecnologias virtuais.
O objetivo reside em uma diversificação estratégica que permite todas as misturas, todas as articulações e todas as ambiguidades. Paradoxalmente, um instrumento como o arame farpado, sobre o qual poderíamos pensar que focaliza nossa atenção em objetivos arcaicos da violência – a visibilidade de uma brutalidade intensa exercida sobre a carne –, nos leva, ao contrário, a deslocar nosso olhar. As formas atuais da violência política se reconhecem menos por sua intensidade manifesta do que por seus meandros refinados.
Olivier Razac
Filósofo, é autor da Histoire politique du barbelé [História política do arame farpado], Flammarion, Paris, 2009.


Ilustração: Samuel Casal

1 “Concertina” porque esse arame farpado do tipo lâmina se desenrola como um acordeão.
2 Disponível em: .
3 Entrevista com Gÿula Horn, Le Monde, 5 nov.1999.
4 Alain Brossat, La démocratie immunitaire [A democracia imunitária], La Dispute, Paris, 2003.
5 “Les établissements pénitentiaires pour mineurs” [Os estabelecimentos penitenciários para menores], Ministère de la Justice, Paris, 31 jan. 2005.
6 Gérard Billard, Jacques Chevalier e François Madoré, Ville fermée, ville surveillée. La sécurisation des espaces résidentiels en France et en Amérique du Nord [Cidade fechada, cidade vigiada. A segurança dos espaços residenciais na França e na América do Norte], Presses Universitaires de Rennes, 2005.
7 Ibidem.
http://www.diplomatique.org.br/artigo.php?id=1494

Palavras, palavras, palavras...

 “Conversas de Algumas Horas e Muitos Anos”, de Vladimir Capella;
“Rumo a Damasco”, de Strindberg;
“O Carnaval de Romains”, de
“Crítica e Crise”, de Reinhart Koselleck;
“A Primeira Vista”, de Daniel Macivor;
“Cinema, Vídeo, Godard”, de Philippe Dubois;
“O Que há de político na política?”, de Oscar Negt;
“O Orgasmo e o Ocidente”, de Robert Muchembled;
“O Conto e as Classes Subalternas”, de
“Se Não Agora Quando?”, de Primo Levi;
“Lady MacBeth do Distrito de Mtzensk”, de Nikolai Leskov;
“ME-TI, o livro das reviravoltas”, de Brecht;
“Memórias: Poesia e verdade”, de Goethe;
“Máximas e reflexões”, de Goethe;
“Shakespeare”, de A.C. Bradley;
 “Sobre o Prazer de Odiar”, de William Hazlitt (Serrote n.º 09);
“O Continente Sombrio”, de Mark Mazower;
“A Arte Mágica’, de Amleto e Donato Sartori;
Olivier Razac;
“A Menina Sem Qualidades”, de Juli Zeh;
“Leituras de Brecht”, de Bernard Dort;
“Dissidente: o programa de Televisão”, de Michel Vinaver;
“O Futuro do Drama”, de Sarrazac;
“Incidentes”, de Barthes;
“A Preparação do Romance II”, de Barthes;
“A Imitação dos Modernos: ensaios sobre Arte e Filosofia”, de Philippe Lacone-Labarthe;
“Universos Mínimos”, de Jo Takahashi;
“O Processo Ritual”, de Victor Turner;
“Repensando a Antropologia”, de Edmund Leach (especialmente o capítulo “Dois Ensaios Sobre a Representação Simbólica do Tempo”;
“O Zen na Arte da Cerimônia das Flores”, de Gusty Herrigel;
“O Zen na Arte da Cerimônia do Chá”, de Horst Hammitzsh;
“Teatro Experimental: Liminaridade e Mercado”, de Cassiano Quilici;
“Mistura de Cores”, de Ian Sidaway;
Jon Fosse;
“A Dança da Realidade”, de Jodorowsky;
“O Encantador”, de
“Kikk Off”, de Shawkat Amin Korki (Filme);
“A Palavra Operária”, de Ranciere;
“O Livro das Passagens”, de Walter Benjamim;
“El Arte de Ilustrar Libros Infantiles”, de Martin Salisbury;
“O projeto Gráfico do Livro Infantil e Juvenil”, de Odilon Morais;
“Fuga Sem Fim”, de Joseph Roth;
“Um homem apaixonado”, de Martin Walser;
“Todos Contra Zucker”, de Dany Levy (filme);





A vigilância do desejo


Em texto de 1980,o crítico Roland Barthes destaca "a incerteza do sentido" na cinematografia de Antonioni

ROLAND BARTHES

Em sua tipologia, Nietzsche distingue duas figuras: o sacerdote e o artista. Sacerdotes temos hoje para dar e vender: de todas as religiões e até sem religião; mas e artistas?
Gostaria, caro Antonioni, que você me emprestasse por um instante algumas características de sua obra para que eu possa fixar as três forças ou, se preferir, as três virtudes, que, a meu ver, constituem o artista.
Denomino-as já: vigilância, sabedoria e -a mais paradoxal de todas- fragilidade.
Ao contrário do sacerdote, o artista surpreende-se e admira; seu olhar pode ser crítico, mas não é acusador: o artista não conhece o ressentimento.
Porque você é artista é que sua obra está aberta para o Moderno. Muitos tomam o Moderno como uma bandeira de luta contra o velho mundo, seus valores comprometidos; mas, para você, o Moderno não é o termo estático de uma oposição fácil; o Moderno é, ao contrário, uma dificuldade ativa em seguir as mudanças do Tempo, não mais apenas no nível da grande História, mas por dentro dessa pequena história cuja medida é a existência de cada um de nós.
Iniciada no imediato pós-guerra, sua obra foi-se encaminhando, de momento em momento, num movimento de dupla vigilância, para o mundo contemporâneo e para você mesmo.
Cada um de seus filmes foi, na sua escala pessoal, uma experiência histórica, ou seja, o abandono de um problema antigo e a formulação de uma nova questão.
Isso quer dizer que você viveu e tratou a história destes últimos 30 anos com sutileza, não como a matéria de um reflexo artístico ou de um engajamento ideológico, mas como uma substância cujo magnetismo você tinha de captar de obra em obra.
Para você, conteúdos e formas são igualmente históricos; os dramas, como você disse, são indiferentemente psicológicos e plásticos. [...]

Utopista
Sua preocupação com a época não é a de um historiador, de um político ou de um moralista, mas sim a de um utopista que procura perceber em pontos precisos o mundo novo, porque deseja esse mundo e quer já fazer parte dele.
A vigilância do artista, que é a sua, é uma vigilância amorosa, uma vigilância do desejo.
O que chamo de sabedoria do artista não é uma virtude antiga, muito menos um discurso medíocre, mas, ao contrário, o saber moral, a acuidade de discernimento que lhe possibilita nunca confundir sentido e verdade.
Quantos crimes a humanidade já cometeu em nome da Verdade!
E, no entanto, essa verdade sempre só era um sentido. Quantas guerras, quantas repressões, quantos terrores, quantos genocídios para o triunfo de um sentido! O artista, porém, sabe que o sentido de uma coisa não é sua verdade; esse saber é uma sabedoria, uma louca sabedoria, poderíamos dizer, pois o retira da comunidade, do rebanho de fanáticos e arrogantes.
Nem todos os artistas, porém, têm essa sabedoria: alguns hipostasiam o sentido. Essa operação terrorista geralmente se chama realismo.
Por isso, quando você declara (numa conversa com Godard) "sinto a necessidade de exprimir a realidade em termos que não sejam totalmente realistas", está demonstrando um sentimento justo do sentido; não o impõe, mas não o abole.
Essa dialética dá a seus filmes (vou usar de novo a mesma palavra) uma grande sutileza: sua arte consiste em sempre deixar o caminho do sentido aberto e como que indeciso, por escrúpulo.
É nisso que você realiza com muita precisão a tarefa do artista de que nosso tempo precisa: nem dogmática nem insignificante.
Assim, nos primeiros curtas-metragens sobre os lixeiros de Roma [...], a descrição crítica de uma alienação social vacila, sem se apagar, em proveito de um sentimento mais patético, mais imediato, do corpo no trabalho.
No filme "O Grito", o sentido forte da obra é, se assim se pode dizer, a própria incerteza do sentido: a perambulação de um homem que em nenhum lugar consegue confirmar sua identidade e a ambigüidade da conclusão (suicídio ou acidente) levam o espectador a duvidar do sentido da mensagem.
Essa fuga ao sentido, que não é sua abolição, lhe permite abalar as fixidades psicológicas do realismo: em "O Dilema de uma Vida", a crise já não é de sentimentos, como em "O Eclipse", pois os sentimentos aí são seguros (a heroína ama o marido).
Tudo se urde e dói numa segunda zona, onde os afetos -o mal-estar dos afetos- escapa a essa armação do sentido que é o código das paixões.
Por fim -para abreviar- seus últimos filmes levam essa crise do sentido ao cerne da identidade dos acontecimentos ("Blow-Up") ou das pessoas ("Profissão: Repórter").
No fundo, ao longo de sua obra, há uma crítica constante, ao mesmo tempo dolorosa e exigente, dessa marca forte do sentido, que se chama destino.

Braque e Matisse
Essa vacilação -eu diria, com mais precisão, essa síncope- do sentido segue caminhos técnicos propriamente cinematográficos (cenário, planos, montagem), que não me cabe analisar, pois não tenho competência para tanto; estou aqui, parece-me, para dizer em que a sua obra envolve, além do cinema, todos os artistas do mundo contemporâneo: você trabalha para tornar sutil o sentido daquilo que o homem diz, conta, vê ou sente, e essa sutileza do sentido, essa convicção de que o sentido não pára grosseiramente na coisa dita, mas vai indo cada vez mais longe, fascinado pelo extra-sentido, é a convicção, creio, de todos os artistas cujo objeto não é esta ou aquela técnica, mas um fenômeno estranho, a vibração.
O objeto representado vibra, em detrimento do dogma. Penso nestas palavras do pintor Braque: "O quadro está acabado quando apagou a idéia".
Penso em Matisse desenhando uma oliveira, de sua cama e, ao cabo de certo tempo, observando os vazios existentes entre os galhos, para descobrir que, com essa nova visão, escapava à imagem habitual do objeto desenhado, ao clichê "oliveira".
Matisse descobria assim o princípio da arte oriental, que quer sempre pintar o vazio, ou melhor, que capta o objeto figurável no momento raro em que o pleno de sua identidade cai bruscamente num novo espaço, o do Interstício.
De certa maneira, sua arte também é uma arte do Interstício ("A Aventura" seria a demonstração cabal dessa afirmação), portanto, de certa maneira também, sua arte tem alguma relação com o Oriente. [...]
Caro Antonioni, tentei dizer com minha linguagem intelectual as razões que fazem de você, para além do cinema, um dos artistas de nosso tempo.
Esse cumprimento não é simples, você sabe, pois ser artista hoje é uma situação não mais sustentada pela bela consciência de uma grande função sagrada ou social; já não é assumir, serenamente, um lugar no Panteão burguês dos Luminares da Humanidade; é, no momento de cada obra, precisar enfrentar em si mesmo os espectros da subjetividade moderna -pois já não se é sacerdote-, que são o desalento ideológico, a consciência social pesada, a atração e a aversão pela arte fácil, o tremor da responsabilidade, o incessante escrúpulo que dilacera o artista entre a solidão e o gregarismo.
Cabe-lhe hoje, portanto, aproveitar este momento tranqüilo, harmonioso, reconciliado, em que toda uma coletividade está de acordo no reconhecimento, na admiração, no amor à sua obra. Pois amanhã recomeça o trabalho duro.

Este texto foi escrito para a entrega do prêmio "Archiginnedio d"Oro", em 1980, e publicado na íntegra na "Cahiers du Cinéma" (maio/1980) e reproduzido em Roland Barthes, "Inéditos Vol. 3 - Imagem e Moda" (ed. Martins Fontes). Tradução de Ivone Benedetti.

http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs0508200708.htm

quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

Incompreensibilidade e esperança

por Eugenio Barba

Já me disseram várias vezes que meus espetáculos não são muito compreensíveis. Então penso em uma reflexão de Niels Bohr: o contrário da verdade não é a mentira, mas a clareza. A verdade é que normalmente eu gosto da clareza. Aprecio a complexidade nos livros, mas se eles são irremediavelmente obscuros, começo a ficar entediado. No teatro é diferente. Às vezes assisto a um espetáculo compreensível e acabo pensando num panorama petrificado: uma grande extensão de gelo. Vivo esta sensação: um panorama imóvel é um panorama desesperado. Não há esperança quando temos certeza de que não há nada a fazer. O desespero, antes de ser um estado de espírito, é a aceitação mais ou menos dolorosa do status quo. É a admissão das forças que estão em jogo, de tudo o que é evidente, do que é sensato. E, no final das contas, é tudo aquilo a que nos submetemos. O desespero é a inação que deriva não apenas do entender bem, mas do entender bem até demais o que nos circunda, o que está por trás dos acontecimentos e o que se prospecta diante de nós, no futuro. Um vínculo misterioso liga a esperança à incompreensibilidade, digo a mim mesmo. Talvez não seja um mistério. A esperança é apenas um modo de conservar a possibilidade de se iludir. Mas acho que é algo mais: uma indecifrável força obscura que me ajuda a ver detalhadamente o que quero recusar, sem me refugiar na condenação genérica e na resignação. E sem me iludir de ter encontrado a chave que torna claro o que, ao contrário, eu experimento como uma complexidade que confunde. Gostaria que meus espetáculos fossem como correntes marinhas e não como panoramas imóveis. Acabei de finalizar outro espetáculo. Olho para ele, parece ser diferente dos outros. Uma pergunta me angustia: será que não é imóvel? Surge em minha mente a imagem de Fridtjof Nansen: cientista, diretor do Comitê Internacional para os Refugiados da Liga das Nações, Prêmio Nobel da Paz, morreu em 1930, aos 70 anos. Durante a vida adulta, foi um explorador polar, o mais criativo de todos os exploradores noruegueses. Nos longos períodos gelados, os navios que abriam caminho para o Polo Norte ficavam presos pelo gelo. Não era possível fazer nada. A única esperança era ser capaz de não sucumbir e esperar que o clima mudasse. Porque o tempo não é imóvel, e até a noite mais longa, como cantará Brecht, não é eterna. Nansen não se contentou em esperar. Sonhou contra o desespero com os olhos bem abertos. Sonhou um contrassenso: a navegação de um navio aprisionado pelo gelo invencível. Seu navio se chamava Fram (‘pra frente’), um nome que podia virar piada. Nansen estudou o gelo e as condições da resistência física e psíquica dos homens que viviam na angústia assassina das estações geladas. Calculou as correntes. Porque até o mar gelado se move e muda. Deixou-se aprisionar pelo gelo e aproveitou sua lentíssima deriva, sua desesperadamente longa deriva. Transformou-a em uma navegação paradoxal e aparentemente estática. Estava pronto para retomar a iniciativa à primeira mudança de estação. Nansen é o grande mestre da esperança profunda. Um navio aprisionado pelas garras do gelo: faço teatro para transformar este navio numa minúscula e precária ilha de resistência para mim e para uns poucos companheiros, atores e espectadores. Em cima dessa pequena ilha, ligada à geografia circunstante por milhares de trilhas de mar, tecemos espetáculos que parecem ser e são obscuros. Tento trazer à luz as forças escuras que me habitam, que habitam a minha biografia, a história em que estou mergulhado, a minha conquistada diferença, as diferenças que outras pessoas souberam conquistar para si. Gostaria de recompensar os espectadores pelo esforço de terem vindo ao teatro, fazendo-lhes explorar um navio que está preso no gelo, que parece imóvel, mas que, todavia, se desloca, seguindo escuras correntes submarinas, tão profundas que sua existência parece não ser possível. Além do efêmero enxame das milhares de pequenas esperanças cotidianas, existe a esperança profunda, aquela que está para além dos confins do Grande Gelo e de seu medo. Talvez o único meio de manter viva a esperança profunda seja guardá-la pelo lado do avesso, fixando o lado escuro de sua negação. Manter viva a esperança – negar o desespero – é uma tarefa difícil, e em certos momentos históricos sabe-se disso muito bem. A ação de esperar, na verdade, é tão árdua quanto a ação de resistir. Significa reagir em primeira pessoa, muitas vezes com atos incompreensíveis segundo os critérios do ofício e as expectativas dos demais. Não devemos nos deixar enganar pelos títulos. Esse meu último espetáculo, A vida crônica, não é um espetáculo desesperado. A esperança está aninhada ali dentro, assim como o sim está aninhado no não. Ninguém vive sem esperança. Isso significa que a esperança pode ser uma virtude ou uma condenação. Pode alimentar ilusões medíocres, crenças perniciosas e ferozes. Pode inspirar as “verdades” que os líderes das várias doutrinas proclamam ser eternas e que os filósofos chamam de “ídolos das tribos” ou “mentiras vitais”. De repente me vejo refletindo sobre um dos totalitarismos mais refinados do nosso tempo: a obrigação da clareza, o desprezo pelo estado do “não-entendo”, a geral e compartilhada desvalorização da experiência da incompreensão e de seus efeitos secretos, que levam a escolhas decisivas em nossa vida. O culto da clareza, que foi útil para iluminar as mentes, hoje contribui para ofuscá-las. Cada vez que ligamos a televisão, que abrimos um jornal ou que escutamos um político ou um especialista, o mundo nos é apresentado como algo que foi compreendido e pode ser explicado. Cada informação nos oferece fatos coerentemente interpretados, comentados, prontos para serem classificados. Ou então expõe a impaciente espera pela solução dos enigmas da política e da crônica. Uma explicação deverá existir. Mas, se demora a chegar, o fato lentamente acabará no lixo das notícias que ficaram sem explicação e então foram destinadas ao esquecimento. Quem fala ou escreve teme, acima de tudo, não ser claro. A necessidade de sermos compreendidos nos leva a ocultar o que nós mesmos experimentamos, mas não somos capazes de compreender completamente. Até no comportamento linguístico, as expressões que não podem ser traduzidas com clareza de uma língua para outra são abandonadas. O dom da clareza perde vigor quando enterra o dom da ambiguidade e a experiência de não compreender tudo. Se eu me pergunto: “O que é o teatro?”, posso encontrar várias respostas brilhantes. Mas nenhuma me parece concretamente útil para agir no mundo que me circunda e para tentar mudar ao menos um cantinho dele. No entanto, se me pergunto em que paradoxal recinto do tempo e do espaço é possível fazer brotar as forças obscuras que governam a História e a interioridade do indivíduo, se me pergunto como torná-las perceptíveis em sua fisicidade sem produzir violência, destruição e autodestruição, a resposta me parece evidente: é um recinto que se chama teatro. Até agora, fiz espetáculos que se referiam a acontecimentos e experiências do passado ou do presente. Pela primeira vez, A vida crônica é imaginada num futuro próximo, simulado, simultâneo. A peça se passa na Dinamarca e na Europa: vários países ao mesmo tempo. A história se desdobra nos primeiros meses após uma guerra civil. Para que essa ambientação fosse menos crível (o que não significa “consoladora”), escolhi uma data relativamente próxima, 2031. O espetáculo final não pode ser compreendido por meio da razão. Muitas vozes, dia e noite, das mais variadas formas, tentam nos explicar os diferentes porquês da história que assedia nossas vidas e ameaça arrastá-las ao caos. As respostas inteligíveis fazem emudecer as perguntas que nos dizem respeito profundamente, diluem suas urgências, transformam-se em pílulas tranquilizantes. Sabemos de tudo isso, mas não podemos viver sem essas coisas. A ficção da compreensibilidade conforta. Não acho que minha missão no teatro consista em oferecer uma interpretação confiável dos acontecimentos contados pelos outros. Também não acho que consista em apontar saídas para escapar das angústias que sentimos e que nos aprisionam. Mesmo que eu quisesse fazer isso, não seria capaz. Acredito no compromisso com uma outra missão: dar forma e credibilidade ao incompreensível e aos impulsos que são um mistério inclusive para mim, transformando-os em um novelo de ações-em-vida que deve ser oferecido à contemplação, ao incômodo, à repugnância e à misericórdia dos espectadores. Esse é o compromisso que ainda hoje me ata ao ofício do teatro. Eu gostaria que esse novelo de ações-em-vida infectasse a zona onde, em cada um de nós, a descrença se mistura com a ingenuidade. Acredita-se que a missão de um espetáculo teatral seja, antes de mais nada, comunicar. Isso é verdade até certo ponto. Para mim, sua missão primária consiste em criar relações e condições de vida potencializada. Para quem? Para o espectador? Para o ator? Entre as várias repercussões do teatro que eu amo, chega o momento em que surge uma pergunta bizarra: o que está escondido por trás do que nos parece ser totalmente claro? A clareza é uma forma de cegueira, manipulação ou censura? Mais um espetáculo incompreensível? Eu gostaria que A vida crônica abrisse uma fresta no magma escuro e incandescente do indivíduo, assim como em seu laborioso e vital zigue-zague para se livrar de um abraço gelado: o implacável e indiferente abraço da Grande Mãe dos Abortos e dos Naufrágios, Nossa Senhora História.


Temas e Nomes Para Pesquisas Futuras



•    Peter Stein
•    Klaus-Michael Grüber
•    Edith Clever
•    Bruno Ganz
•    Jutta Lampe
•    Jean Jourdheuil
•    Jean-Romain Vesperini
•    Ferdinand Wögerbauer
•    William Forsythe
•    Wooster Group
•    Magazzini (Grupo Italiano)
•    Andrei Serban
•    Einar Schleef
•    Jochen Horich (“O Furor Da Interpretação”)
•    Paul De Man
•    Joey Mckneel
•    Jerome Robbins

segunda-feira, 13 de janeiro de 2014

TUDO É E NAO É de Manuel Alegre

«Estarei acordado, estarei a sonhar? Nunca mais conseguirei saber. Shakespeare sabia: "Somos feitos da mesma matéria de que são feitos os sonhos."» António Valadares, escritor, vive submerso num sonho obsessivo e recorrente, de onde não há fuga possível. Numa derradeira tentativa de encontrar um sentido naquilo que não o tem, aventura-se a escrever sobre a sua vida onírica. Tem assim início uma viagem a um mundo repleto de situações ilógicas e incontroláveis, de intrigas e contradições; um mundo onde personagens reais e fictícias convivem e se fundem. O que ele não prevê é que o seu empenho em narrar o inenarrável o aprisionará num caleidoscópio de sonhos e obsessões onde realidade e sonho, sonho e ficção já não se distinguem e o próprio espaço e tempo são subvertidos, desde a discussão com Lenine e Trotsky em plena revolução russa até às manifestações em Lisboa e à Mão Invisível que invade a vida e o sonho.

Depois do Branco



“Quem sabe o que na página se esconde
e se dentro do branco está um muro
e se depois do muro não há onde
e se depois do branco é tudo escuro?

Quem sabe o que pode acontecer
quando ao verso já escrito outro se junta
e tudo está no verso por escrever
e o que se escreve é só uma pergunta?

Quem sabe o que se vê e não se vê
se por dentro do branco apenas cabe
esse nome que nunca ninguém lê
e o verso que se sabe e não se sabe?

(Manuel Alegre in NADA ESTÁ ESCRITO, 2012 )

quarta-feira, 8 de janeiro de 2014

“No decorrer dos últimos séculos, pode-se observar que a ideia da morte vem perdendo, na consciência coletiva, sua onipresença e sua força de evocação. Esse processo se acelera em suas últimas etapas. Durante o século XIX, a sociedade burguesa produziu, com as instituições higiênicas e sociais, privadas e públicas, um efeito colateral que inconscientemente talvez tivesse sido seu objetivo principal: permitir aos homens evitarem o espetáculo da morte. Morrer era antes um episódio público na vida do indivíduo, e seu caráter era altamente exemplar: recordem-se as imagens da Idade Média, nas quais o leito de morte se transforma num trono em direção ao qual se precipita o povo, através das portas escancaradas. Hoje, a morte é cada vez mais expulsa do universo dos vivos. Antes não havia uma só casa e quase nenhum quarto em que não tivesse morrido alguém. Hoje, os burgueses vivem em espaços depurados de qualquer morte e, quando chegar sua hora, serão depositados por seus herdeiros em sanatórios e hospitais. Ora, é no momento da morte que o saber e a sabedoria do homem e, sobretudo sua existência vivida – e é dessa substância que são feitas as histórias – assumem pela primeira vez uma forma transmissível. Assim como no interior do agonizante desfilam inúmeras imagens – visões de si mesmo, nas quais ele se havia encontrado sem se dar conta disso -, assim o inesquecível aflora de repente em seus gestos e olhares, conferindo a tudo o que lhe diz respeito aquela autoridade que mesmo um pobre-diabo possui ao morrer, para os vivos em seu redor. Na origem da narrativa está essa autoridade.”

Walter Benjamim
“Contar histórias sempre foi a arte de contá-las de novo, e ela se perde quando as histórias não são mais conservadas. Ela se perde porque ninguém mais fia ou tece enquanto ouve a história. Quanto mais o ouvinte se esquece de si mesmo, mais profundamente se grava nele o que é ouvido. Quando o ritmo do trabalho se apodera dele, ele escuta as histórias de tal maneira que adquire espontaneamente o dom de narrá-las. Assim se teceu a rede em que está guardado o dom narrativo.”

Walter Benjamim
“Cada manhã recebemos notícias de todo o mundo. E, no entanto, somos pobres em histórias surpreendentes. A razão é que os fatos já nos chegam acompanhados de explicações. Em outras palavras: quase nada do que acontece está a serviço da narrativa, e quase tudo está a serviço da informação. Metade da arte narrativa está em evitar explicações. Nisso Leskov é magistral. (Pensemos em textos como A fraude, ou A águia branca). O extraordinário e o miraculoso são narrados com a maior exatidão, mas o contexto psicológico da ação não é imposto ao leitor. Ele é livre para interpretar a história como quiser, e com isso o episódio narrado atinge uma amplitude que não existe na informação.”

Walter Benjamim