Será que quando a morte – ou algo que a ela se pareça – está em jogo, as palavras agem do modo mais vital? Ou será que, ao contrário, quando as palavras se agitam até se desarticularem é que o leitor mergulha num abismo em certa medida fatal?
Michel Leiris
segunda-feira, 24 de setembro de 2012
terça-feira, 18 de setembro de 2012
O Devir-Criança do Pensamento
"Ninguém sai ileso do encontro. Cada um à sua maneira, em sua singularidade, ao se defrontar com a invenção, a arte, sente os limites do universal na produção e não na reprodução, no ato de experimento e não de imitação".
Daniel Lins in: "O Devir-Criança do Pensamento"
Daniel Lins in: "O Devir-Criança do Pensamento"
sexta-feira, 14 de setembro de 2012
Imagens à espera dos teus olhos
«Quanto mais interpretações uma imagem provocar (conotação) levando o receptor a ultrapassar o que materialmente representa (denotação), mais forte será o seu poder evocativo e maior simbolismo possuirá.»
C. Beauvalet in L’Homme et L’Image (1966)
(ver http://www.bitaites.org/paginas/169/)
C. Beauvalet in L’Homme et L’Image (1966)
(ver http://www.bitaites.org/paginas/169/)
quinta-feira, 13 de setembro de 2012
Simone: um conto a caminho
Ah, sim! Bonita lá era, a danada da menina Simone chamada. Cachos ruivos na fronte de sardas; sorriso largo, alvíssimo, olhos grandes caprichados no castanho-puxado-pro-amarelo, quase damascoso. Nem alta, nem baixa. 12 anos de enxerimento, 12 anos somente, meu Deus!, mas já cheia de graças e trejeitos, seios rascunhando espevitamentos no corpo da mulher por vir, já nutrindo querências.
Ela tinha gosto em ser vista, a desgraçada. Dava pra sentir isso nos olhos dela, no sorriso de canto de boca, no pseudo-desdém. O que tinha de bonita, tinha de tinhosa. Faceira, desmedida nas sinuosidades, bamboleava pelas ruas, toda dona do ser. As inocências, começava a perder todas, uma a uma, safaaaaaada que era demais, um cãozinho com cara de arcanjo, a fazer descobertas, experimentando façanhas, andares, biquinhos, modos de endoidar homens ainda meninos e também os homens-homens feitos, barbudos, prontos, testados.
Costumava, nos fins de tarde, caçar pão na padaria, a mando da avó. Pegava a bicicleta da prima e lá se ia numa roupinha curta, um short, uma saia miúda por demais, as pernas grossas de fora, os pêlos finos, blusas sem mangas de número bem maior que o dela, sem sutiã, atraindo, feito um imã, as fantasias dos seres, que alimentavam as suas. Ela se ria gostoso, imaginando as intumescências... um sorriso safado, mal disfarçado, matreiro, rascunhado no rosto.
Na hora do recreio, pátio da escola, pino do meio-dia, à la normalista, ela tinha o hábito de armar arapucas para os de quem se engraçava. Era um espelho redondo, desses de bolso, antigamente usados pelos mais velhos. De propósita malícia, deixava-o no chão com a face espelhada para cima, a refletir o céu. E como quem lança convite, pedia ingenuamente que um menino ou outro apanhasse para ela o tal objeto. E no imediato com que o escolhido se baixava, ela abria um tantinho mais as pernas no intento de que mais luz pudesse deixar o gentil cavalheiro entrever as suas partes púbicas, desnudas, penugens nascentes, no fundo semi-escuro da saia refletida na lâmina de vidro.
Certa vez, Antônio Amaro foi pego no banheiro masculino, fazendo safadezas com as mãos. Foi levado à secretaria aos empurrões, que nem criminoso. Perguntado do porquê tinha feito aquela coisa pecaminosa, não titubeou: “Simone!” As professoras ficaram aterradas. Os professores também, embora no fundo escuro de si mesmos, compreendessem os motivos de Toinho. A notícia se espalhou ligeira. Simone era só sonsice. Fingia que não era com ela lá, que não tinha nada a ver com aquilo, mas gostava. E se ria por dentro. Risadas das grandes segredadas somente para si. Mas a gente, de fora, via lá dentro que para ela aquilo era um gozo só só.
Um dia (quem se lembrará quando?) Simone se foi. Ela, que morava com a mãe, Dona Genoveva, na casa de junto, de repente não estava mais lá. Estivera mesmo algum dia? Ou fora miragem, visagem, alucinação? Disseram que tinha ido morar com a tia noutras paragens, na lonjura, ôco do mundo. Toinho lastimou por demais, jurava que nunca mais que ia vê-la de novo, que a perdera das vista pra sempre, como vez ou outra acontece aqui e acolá com um amigo, um conhecido, alguém que está perto e num segundo se some, sem achar caminho de regresso.
Ele lamentou, mas que ia de fazer? Pequeno como era ainda, nem que podia correr atrás, dizer para ela que não se fosse, que ficasse, ou então, que levasse ele com ela, mas que não se separassem por que não era direito. Que eles se conheciam de há muito, desde miúdos. E que foi por causa do brincar no terreiro, ver as noites de lua, conversar besteira, que o amor por ela foi aumentando de tamanho sem que ele desconfiasse. E agora que ela era quase uma mocinha, não era uma covardia que ela tivesse ido embora sem nem deixar um adeus por despedida?
E porque diabo nunca que tinha tido coragem para dizer a ela o seu amor? O coração sempre batendo no descompasso quando dava com ela, às vezes dentro de sua casa mesmo, quando ela vinha a mando da mãe ou da avó em busca de uma caneca de açúcar. Por que não dizia nada? Por que não a agarrara nem que fosse um tanto à força para que ela soubesse que ele a queria? E se dissesse ou fizesse coisas desse naipe, não corria o risco de ela dar uma risada e depois sair por ali pela vila a mangar com o coração dele? Não queria passar por essas coisas. Achou por bem ficar mudo.
Mas e agora? O fato é que Toinho passou a sentir falta de Simone. Muita falta! Falta mesmo, das grandes, das fortes, de machucar. Se pegava imaginando outros tempos, quando estavam juntos. Se viu de novo no enterro do avô Simão. Ela junto, pegando a sua mão, tentando consolar a sua dor, fazendo um cafuné. Se pegou a lembrar do cajueiro, vistoso e sozinho, plantado feito um rei no alto da serra do capim. Eles costumavam ir por lá com outros amigos chupar caju na época. E depois iam ao riacho lavar as mãos, tomar banho, perturbar as betas. Agora não mais. Os cajus ficavam por lá, eram pegos por outras meninices, outras inocências, outros mistérios. Ou então apodreciam. Ele que não os queria mais... tinham perdido o sabor... faziam lembrar dela.
No meio de tantas Marias, tantas Anas, Fernandas, Antônias, por que, meu Deus, tinha justo se apaixonado pela Simone? Agora era tarde. Melhor conformar.
Os tempos foram mudando, veio o inverno e o verão, os rios encheram e minguaram, outro inverno e outro verão, cheias e esvaziamentos, e tantos outros invernos e verões e tantas outras águas passaram, que parecia que não ia ter fim.
Até que uma vez, de manhã cedo, ainda deitado na cama, mal tinha ainda saído o sol, ele escutou a voz da Dona Genoveva falando braba:
- Vai menina, levanta e vai buscar o rapador de côco na casa de tua tia! Tenho muita coisa por fazer hoje! É sexta-feira santa, sujeita! Vai t’embora!
- Já vou, Mainha! Já vou! Oxe! Oxe!
Será que era ela? A voz, o jeito da fala, a música, parecia a mesma sendo que diferente. Sentiu um frio na espinha, o coração aos pinotes. Correu na jarra, encheu d’água uma caneca e foi se postar na janela com a desculpa de lavar o focinho. Foi quando a porta dos fundos da casa da vizinha se escancarou e lá de dentro ela veio, em passo manso, pro mundo de cá de fora. Não podia acreditar! Depois de tantos tempos! Era ela! E era linda!
Ela tinha gosto em ser vista, a desgraçada. Dava pra sentir isso nos olhos dela, no sorriso de canto de boca, no pseudo-desdém. O que tinha de bonita, tinha de tinhosa. Faceira, desmedida nas sinuosidades, bamboleava pelas ruas, toda dona do ser. As inocências, começava a perder todas, uma a uma, safaaaaaada que era demais, um cãozinho com cara de arcanjo, a fazer descobertas, experimentando façanhas, andares, biquinhos, modos de endoidar homens ainda meninos e também os homens-homens feitos, barbudos, prontos, testados.
Costumava, nos fins de tarde, caçar pão na padaria, a mando da avó. Pegava a bicicleta da prima e lá se ia numa roupinha curta, um short, uma saia miúda por demais, as pernas grossas de fora, os pêlos finos, blusas sem mangas de número bem maior que o dela, sem sutiã, atraindo, feito um imã, as fantasias dos seres, que alimentavam as suas. Ela se ria gostoso, imaginando as intumescências... um sorriso safado, mal disfarçado, matreiro, rascunhado no rosto.
Na hora do recreio, pátio da escola, pino do meio-dia, à la normalista, ela tinha o hábito de armar arapucas para os de quem se engraçava. Era um espelho redondo, desses de bolso, antigamente usados pelos mais velhos. De propósita malícia, deixava-o no chão com a face espelhada para cima, a refletir o céu. E como quem lança convite, pedia ingenuamente que um menino ou outro apanhasse para ela o tal objeto. E no imediato com que o escolhido se baixava, ela abria um tantinho mais as pernas no intento de que mais luz pudesse deixar o gentil cavalheiro entrever as suas partes púbicas, desnudas, penugens nascentes, no fundo semi-escuro da saia refletida na lâmina de vidro.
Certa vez, Antônio Amaro foi pego no banheiro masculino, fazendo safadezas com as mãos. Foi levado à secretaria aos empurrões, que nem criminoso. Perguntado do porquê tinha feito aquela coisa pecaminosa, não titubeou: “Simone!” As professoras ficaram aterradas. Os professores também, embora no fundo escuro de si mesmos, compreendessem os motivos de Toinho. A notícia se espalhou ligeira. Simone era só sonsice. Fingia que não era com ela lá, que não tinha nada a ver com aquilo, mas gostava. E se ria por dentro. Risadas das grandes segredadas somente para si. Mas a gente, de fora, via lá dentro que para ela aquilo era um gozo só só.
Um dia (quem se lembrará quando?) Simone se foi. Ela, que morava com a mãe, Dona Genoveva, na casa de junto, de repente não estava mais lá. Estivera mesmo algum dia? Ou fora miragem, visagem, alucinação? Disseram que tinha ido morar com a tia noutras paragens, na lonjura, ôco do mundo. Toinho lastimou por demais, jurava que nunca mais que ia vê-la de novo, que a perdera das vista pra sempre, como vez ou outra acontece aqui e acolá com um amigo, um conhecido, alguém que está perto e num segundo se some, sem achar caminho de regresso.
Ele lamentou, mas que ia de fazer? Pequeno como era ainda, nem que podia correr atrás, dizer para ela que não se fosse, que ficasse, ou então, que levasse ele com ela, mas que não se separassem por que não era direito. Que eles se conheciam de há muito, desde miúdos. E que foi por causa do brincar no terreiro, ver as noites de lua, conversar besteira, que o amor por ela foi aumentando de tamanho sem que ele desconfiasse. E agora que ela era quase uma mocinha, não era uma covardia que ela tivesse ido embora sem nem deixar um adeus por despedida?
E porque diabo nunca que tinha tido coragem para dizer a ela o seu amor? O coração sempre batendo no descompasso quando dava com ela, às vezes dentro de sua casa mesmo, quando ela vinha a mando da mãe ou da avó em busca de uma caneca de açúcar. Por que não dizia nada? Por que não a agarrara nem que fosse um tanto à força para que ela soubesse que ele a queria? E se dissesse ou fizesse coisas desse naipe, não corria o risco de ela dar uma risada e depois sair por ali pela vila a mangar com o coração dele? Não queria passar por essas coisas. Achou por bem ficar mudo.
Mas e agora? O fato é que Toinho passou a sentir falta de Simone. Muita falta! Falta mesmo, das grandes, das fortes, de machucar. Se pegava imaginando outros tempos, quando estavam juntos. Se viu de novo no enterro do avô Simão. Ela junto, pegando a sua mão, tentando consolar a sua dor, fazendo um cafuné. Se pegou a lembrar do cajueiro, vistoso e sozinho, plantado feito um rei no alto da serra do capim. Eles costumavam ir por lá com outros amigos chupar caju na época. E depois iam ao riacho lavar as mãos, tomar banho, perturbar as betas. Agora não mais. Os cajus ficavam por lá, eram pegos por outras meninices, outras inocências, outros mistérios. Ou então apodreciam. Ele que não os queria mais... tinham perdido o sabor... faziam lembrar dela.
No meio de tantas Marias, tantas Anas, Fernandas, Antônias, por que, meu Deus, tinha justo se apaixonado pela Simone? Agora era tarde. Melhor conformar.
Os tempos foram mudando, veio o inverno e o verão, os rios encheram e minguaram, outro inverno e outro verão, cheias e esvaziamentos, e tantos outros invernos e verões e tantas outras águas passaram, que parecia que não ia ter fim.
Até que uma vez, de manhã cedo, ainda deitado na cama, mal tinha ainda saído o sol, ele escutou a voz da Dona Genoveva falando braba:
- Vai menina, levanta e vai buscar o rapador de côco na casa de tua tia! Tenho muita coisa por fazer hoje! É sexta-feira santa, sujeita! Vai t’embora!
- Já vou, Mainha! Já vou! Oxe! Oxe!
Será que era ela? A voz, o jeito da fala, a música, parecia a mesma sendo que diferente. Sentiu um frio na espinha, o coração aos pinotes. Correu na jarra, encheu d’água uma caneca e foi se postar na janela com a desculpa de lavar o focinho. Foi quando a porta dos fundos da casa da vizinha se escancarou e lá de dentro ela veio, em passo manso, pro mundo de cá de fora. Não podia acreditar! Depois de tantos tempos! Era ela! E era linda!
Assinar:
Postagens (Atom)